Varanda de uma casa, noite. Ao fundo, um casal de namorados se abraça, estático com a notícia de que ela está grávida. De dentro da casa, surge Bento (Irandhir Santos) por uma porta. Ele anda na direção do espectador sem tirar os olhos da câmera/de nós e finalmente pergunta, num sorriso: “O que você tá fazendo sozinho aqui fora, mano velho? Tá todo mundo lá dentro esperando.” A câmera executa um giro de 90 graus na direção da janela. Por entre as cortinas, vemos 3 mulheres conversando animadamente à mesa. É a senha para o espectador entender que, a partir dali, ele será os olhos de um dos protagonistas da trama. Foi esta a solução que o diretor Luiz Fernando Carvalho e os autores (Benedito Ruy Barbosa e Bruno Luperi) de Velho Chico (2016) deram para manter em cena, na reta final da novela, o personagem Santo após a trágica morte de seu intérprete, Domingos Montagner, no dia 15 de setembro. Operando o “olho de Santo”, o diretor de fotografia Leandro Pagliaro usa bastante luz, provocando um efeito de auréolas coloridas que evocam a íris do olho humano. Assim, Velho Chico chega ao fim usando o mais cinematográfico dos truques para fazer o público imergir na história: fazê-lo vestir a pele do personagem.
A câmera subjetiva ou de ponto-de-vista é tão velha quanto o cinema. No épico inacabado de Abel Gance, Napoléon (1927), o operador de câmera Jules Kruger amarrou uma câmera ao peito para que os atores pudessem socá-la durante uma sequência de briga na neve entre garotos. “A câmera se defende como se fosse o próprio [Napoleão] Bonaparte”, escreveu Gance no roteiro. “Ela escala a parede de neve e salta, como se fosse humana.” Ele poderia ter acrescentado: como se fosse nós.
Esta técnica para o público ver com os olhos do personagem principal seria, com mais frequência, usada no cinema e na TV para replicar a perspectiva de alguém que ameaça o herói. É o famoso assassino que se aproxima por trás da vítima sem que possamos fazer nada, como se pode ver em nove entre dez filmes de terror. É o olhar cibernético do terrível Exterminador do Futuro (Terminator, 1984), de James Cameron. Muitas vezes, o truque é usado para esconder a identidade do criminoso, o que serve para dissociar o espectador do personagem-câmera. O resultado é uma espécie de prazer sádico em que “cometemos” o crime na tela, mas podemos nos eximir de toda a culpa porque o artifício está claro. John Carpenter criou a variação mais perturbadora desse clichê no início de Halloween (1978): uma steadicam faz as vezes do assassino enquanto ele vigia uma jovem por uma janela, entra na sua casa, pega uma faca, sobe as escadas e põe uma máscara para matá-la. Quando ele sai da casa e removem sua máscara, há um corte acusatório para o rosto do criminoso, um garoto chamado Michael Myers.
Hitchcock utilizava a subjetividade pelo suspense mas também pelo potencial sádico da situação. Em Quando fala o Coração (Spellbound, 1945), ficamos na delicada posição de ter Ingrid Bergman na nossa mira enquanto sofremos na torcida para que o assassino não aperte aquele gatilho. Somos tão reféns quanto ela! E ele não pára aí. Logo a seguir, na mesma cena, a arma se volta para a nossa direção. Você vai apertar o gatilho ou não?
Em Janela Indiscreta (Rear Window, 1954), ele vai mais longe ao nos vender o melhor de dois mundos. No começo do filme, somos os olhos de James Stewart para o bem e para o mal. Assim, Grace Kelly vem acordá-lo (e a nós) com um beijo. Durante o resto do filme, seremos a teleobjetiva da câmera de Jeff (Stewart) enquanto ele bisbilhota a vida dos vizinhos numa quadra de edifícios de Nova York e, eventualmente, descobre um suposto assassino. Aqui, o diretor inglês faz questão de mostrar a artificialidade da câmera subjetiva — ele não a usa o tempo todo, no equivalente de uma relação sexual com mais provocação do que ação — e de nos punir por estar espiando. Numa sequência longa e tensa, Jeff, de pé engessado, vê Lisa (Kelly) entrar no apartamento vazio do suspeito em busca de uma evidência do crime. Justo naquele momento, o homem volta para casa, abre a porta e cá estamos nós do outro lado do beco, presos a uma cadeira com Jeff, sem poder avisá-la. Vemos Jeff aflito em tomadas de reação, mas as cenas com Lisa são mostradas do seu ponto de vista: à distância ou, quando ele empunha sua câmera com teleobjetiva, vemos por meio dessas lentes. Ao chegar no apartamento de Jeff, a diarista Stella (Thelma Ritter) também empunha um binóculo para acompanhar os acontecimentos. Eis que Hitchcock nos transforma nos personagens para transformá-los em nós, o público que assiste a tudo numa tela sem poder interferir. Até a respiração ofegante de Stewart traduz a nossa. Do desejo ao desespero, Hitchcock levou nossos olhos na coleira o filme inteiro.
Normalmente, na mira da câmera subjetiva de Hitchcock encontrava-se uma mulher (loura), o que realçava o perverso erotismo de seus filmes. No entanto, outro inglês, o diretor Michael Powell (Sapatinhos Vermelhos), levou a relação câmera-espectador voyeur a profundidades maiores com A Tortura do Medo (Peeping Tom, 1960). Neste clássico maldito, um fotógrafo com distúrbios mentais (Carl Böhm) usa uma câmera com uma lâmina embutida para filmar suas vítimas no momento de sua morte. Obviamente, as vítimas são mulheres. Lógico que as mortes são mostradas do ponto de vista da câmera/fotógrafo. O que revoltou a censura e praticamente acabou com a carreira do genial Powell foi a indução à identificação entre o espectador e o assassino, mostrado com piedade. A Tortura do Medo não só nos lança dentro do filme, mas também dentro de um monstro demasiado humano. Décadas depois, Maníaco (Maniac, 2012), de Franck Khalfoun, convidaria o espectador a habitar um assassino serial (Elijah Wood, visto em reflexos) em tempo integral.
Com o tempo, mais e mais cineastas experimentaram novas funções para a tomada de ponto-de-vista. O brasileiro Beto Brant foi menos sensual e mais crítico com a câmera subjetiva em O Invasor (2001). No filme, ela é Anísio (Paulo Miklos), um matador de aluguel da periferia contratado por dois donos de construtora para matar um sócio deles. Nas cenas com Anísio, vemos sempre o mundo por seus olhos até que ele sobe as escadas da construtora para confrontar um dos seus contratantes. Ao entrar na sala de Ivan (Marco Ricca) para se autodeclarar encarregado de segurança da firma, ele está também ascendendo a escada social. Neste ponto, Brant encerra o uso da câmera subjetiva para o personagem. É o fim da sua invisibilidade social: agora que é alguém, Anísio tem um rosto.
O belga Aconteceu Perto da Sua Casa (C’est Arrivé Prés de Chez Vous, 1992) usa a perspectiva em primeira pessoa para nos oferecer um dilema moral do olho cinematográfico. Neste vencedor de prêmios em Cannes e Toronto, uma equipe de filmagens segue Ben (Benoît Poelvoorde), ladrão e assassino frio. Entrevistam seus simpáticos avós, que ignoram os crimes do netinho, e registram os crimes de perto. (“Luzes!”, grita o diretor para o técnico durante a filmagem de um assassinato.) Tudo tem cara de documentário impessoal até que a própria equipe de filmagens começa a participar dos crimes, aparecendo inclusive em frente à câmera (operada por um dos diretores, André Bonzel). Todo o procedimento põe em cheque a imparcialidade dos cineastas mas também do público, que abraça essa violência do conforto de sua poltrona. A lente de Bonzel tira o espectador de sua passividade logo de início: se quisermos a violência como catarse, teremos que assumir nossa responsabilidade por ela. E o que começa como um documentário termina praticamente como um snuff movie sem que tenhamos percebido a transição.
Bonzel só aparece no fim: sua câmera apontada sempre para a frente, para o outro, até que o outro se torna ele mesmo — uma metáfora perfeita para a simbiose entre a lente e o espectador. A cultura das selfies e dos smartphones, porém, inverteu essa lógica: agora, o olho que tudo olha está mais interessado em ver a si próprio. O que acontece com a narrativa subjetiva nestas condições?
Entra em cena o gênero do found footage, em que fazemos de conta que o filme que vemos foi montado por terceiros, que encontraram as gravações originais dos personagens. Numa cena emblemática, e muito citada, de A Bruxa de Blair (The Blair Witch Project, 1999), Heather Donahue (nome da atriz e da personagem) senta-se no escuro numa tenda, no meio da mata, e liga a camcorder voltada para o rosto. Separada de seus amigos, completamente em pânico, aproveita o que pensa serem seus últimos momentos de vida para desculpar-se por ter insistido naquela expedição fracassada. Ela se desculpa com quem? Conosco ou consigo mesma? A baixa luz da câmera, o foco fechado em seu rosto deformado pelo medo, tudo parece pessoal demais, como uma prece. Não estamos olhando para a personagem, mas para o medo dentro de todos nós.
Aqui e no espanhol [Rec] (2007), ao contrário de Aconteceu Perto da Sua Casa, o cineasta é alçado à condição de herói trágico — e o espectador junto com ele. Mesmo assim, no geral, os filmes de found footage nunca chegam ao extremo de mergulhar totalmente no espírito da câmera subjetiva, isto é, “esconder” totalmente a existência da câmera por trás do olho do personagem principal. A filmadora é uma extensão artificial do corpo, mas nunca o próprio, como mostram os ângulos cada vez mais implausíveis de Cloverfield: Monstro (Cloverfield, 2008) ou Poder Sem Limites (Chronicle, 2012). Hitchcock, Gance e companhia molharam o pé na água, mas nenhum entrou de cabeça numa piscina inteira de primeira pessoa.
Entre os poucos que ousaram nesse sentido, o pioneiro e mais celebrado não é um terror, mas um policial baseado em romance de Raymond Chandler. Em A Dama do Lago (Lady in the Lake, 1947), nós somos o detetive Phillip Marlowe em sua busca por uma mulher desaparecida. O diretor-ator Robert Montgomery fornece a voz e o movimento, mas o resto é conosco. Durante quase todo o filme, seduzimos mulheres, corremos perigo e tentamos esclarecer o mistério. Somente ocasionalmente, somos lembrados de quem somos por um reflexo do ator-diretor no espelho. O resultado acaba sendo cansativo porque o filme promete uma interatividade que não pode entregar — e o cineasta tinha consciência disso pois se colocou em cenas convencionais salpicadas ao longo do filme para explicar, olhando para a câmera, pontos-chave das investigações.
“Claro, VOCÊ também não tem a chance de colocar seus braços em volta de Audrey Totter. Apesar de tudo, os produtores, com toda a sua ingenuidade, só podem ir até certo ponto quando o assunto é realismo”, escreveu o crítico do The New York Times sobre o filme de Montgomery. Em breve, nem mais a tela será um empecilho para isso. Já existem câmeras estereoscópicas que filmam em 360 graus com áudio binaural — e cineastas já começam a testar esses equipamentos. Em dezembro de 2014, Spike Jonze (Quero Ser John Malkovich) levou uma câmera VR (virtual reality) para uma passeata do movimento Black Lives Matter. O resultado são 10 minutos em que você está dentro dos acontecimentos, interagindo com os manifestantes, com uma câmera na mão e o mundo em volta da sua cabeça. Alejandro González Iñarritu, um diretor acostumado a usar uma cartola cheia de truques visuais (basta ver Birdman e O Regresso) se aliou à divisão de realidade virtual da Lucasfilm para produzir um curta sobre a experiência de imigrantes ilegais na fronteira entre o México e os Estados Unidos. Como o truque é só metade dos requisitos, aguarda-se para ver se o filme de Iñarritu terá impacto narrativo ou funcionará apenas como pornografia de sofrimento.
Ainda é cedo para afirmar se, como o 3D, a realidade virtual será apenas mais uma moda cinematográfica de apelo limitado. Por outro lado, seu potencial lúdico, realçado pela subjetividade, promete ser cumprido em outro meio narrativo em expansão, os videogames. Jogos de tiro em primeira pessoa (ou FPS no inglês) usam a linguagem da câmera subjetiva para ampliar a imersão dos jogadores há décadas. Na série de ficção científica Portal, onde a mecânica básica consiste em se teleportar pelo cenário, as fugas de armadilhas e soluções do quebra-cabeça frequentemente provocam um efeito vertiginoso. A heroína é uma tábula rasa para que o jogador se sinta em sua própria pele, porém seu oponente é uma das inteligências artificiais mais complexas e fascinantes desde HAL 9000 em 2001 — Uma Odisseia no Espaço (2001-A Space Odyssey, 1968). A interações entre o jogador e ela criam um verdadeiro drama para além da comicidade dos diálogos. Em jogos de narrativa complexa como o atmosférico Year Walk, o jogador ganha um passado que o impele a desvendar os mistérios à sua frente. Assim, ele se torna um detetive de verdade na história alheia, como Montgomery quis mas não conseguiu de fato em A Dama do Lago.
Talvez esta imersão cinética, calcada principalmente no movimento, não seja o melhor uso da câmera subjetiva no cinema, embora alguns continuem tentando nesse sentido. Hardcore — Missão Extrema (Hardcore Henry, 2015) nos traz um ciborgue que acorda sem memória e sem voz. Enquanto tenta desvendar o seu passado com a ajuda de um estranho (Sharlto Copley), é perseguido por um vilão tão sem charme quanto o Sylar do seriado Heroes. Apesar do imenso apuro técnico nas cenas de ação, o filme padece do mesmo problema que A Dama do Lago: promete uma interatividade que não pode entregar. Pior: a evolução da trama, com pequenas missões se sucedendo, apenas simula o mais mecânico dos videogames sem jamais oferecer a catarse deles — muito pelo contrário, a violência sem tréguas torna-se cada vez mais alienante.
Talvez a câmera subjetiva no cinema e na televisão tenha melhor serventia como mais uma ferramenta poética. Seja no medo de A Bruxa de Blair ou na alegria comovente de Velho Chico, elas tornam as emoções dos personagens mais pessoais. Tão pessoais quanto em O Escafandro e a Borboleta (Le Scaphandre et le Papillon, 2007), a história de Jean-Dominique Bauby (Mathieu Amalric), fotógrafo completamente imobilizado por um derrame. Sua única possibilidade de interação com o mundo são os olhos: uma piscada para não, duas para sim, por exemplo. O diretor Julian Schnabel (Basquiat) usa a câmera para nos prender dentro desses olhos. É desesperador. Pela mesma lente, também nos conduz para as memórias de Bauby, seu rico mundo interior. É libertador. Filmes e séries estão no seu melhor quando nos emprestam os olhos de uma máquina para que possamos enxergar melhor a nós mesmos.
Se gostou da experiência, deixe um comentário abaixo ou compartilhe o artigo nas redes sociais. Deixe seu comentário logo abaixo ou compartilhe sua opinião conosco através do e-mail revistasalsaparrilha@gmail.com. Por fim, não deixe de seguir a Revista Salsaparrilha aqui mesmo no Medium, no Twitter e no Facebook.