Dois pares de meias por apenas R$9,99

Gabriel Piazentin
Revista Subjetiva
Published in
4 min readDec 23, 2020
Imagem de jplenio @ Pixabay

Gosto da madrugada. Ela é calma, quieta. É mais fresca que o dia, em que o asfalto absorve e reflete o calor que vem do sol. Se dou a sorte de, por algum momento em que olho pela janela, ver algum carro passando, eu me pergunto pra onde vão. Os semáforos, tristes e quase que trabalhando pra ninguém, seguem a rotina, apesar de tudo. Caramba, são 4 da manhã. Ainda não dormi, mas tem gente que já tá acordando. Eu queria viver nesse frame de tempo.

O dia é ruim, tem muita claridade, muitos carros — aí não me cabe mais perguntar pra onde vão. Não interessa para onde se vai quando todo mundo também está indo. É diferente da madrugada, quando não tem mais ninguém na rua e, surpresa!, surge uma alma. E o barulho, ah o comércio, sempre ruidoso, se pavoneando com seus artifícios para fisgar consumidores. Compradores. Não existe indivíduo, e nem sujeitos. O deus Mercado demanda sacrifícios.

Bom, ultimamente, sacrifício é o que não falta.

Os tempos estão atípicos. Ainda que, para muita gente, isso não signifique nada. “A vida tem que continuar”. Quem antes não podia sorrir, agora se permite — mesmo que não deva. A busca pela saída, uma vacina-bala-de-prata, tem percorrido o imaginário de quem ainda sobreviveu (pelo menos por enquanto). Tá certo que a vida não é nada sem sonhos e objetivos a serem alcançados, só não precisava ser tão difícil. Como, por exemplo, ter absolutamente todo mundo que seria responsável pela nação negando as nossas chances de sonhar.

Apesar de tudo, não se fala em crise. Não é como se não estivéssemos em uma, apenas tal denominação não circula. Nomear, na condição de um efeito de sentidos — de um trabalho de linguagem — , não é pouca coisa. Não vivemos sem dar sentidos àquilo que nos interpela, que nos faz pensar: “que diabéisso?”. E aí se tem um jogo duplamente interessante, que é o de nomear algo a partir daquilo que ele não é; e ainda, não nomear algo a partir daquilo que ele é. Podemos pensar nos diversos usos da linguagem, das palavras, da informação e dos sentidos nesses tempos recentes. Golpe, gripezinha, racismo (que não existe), o vírus (que é chinês), o gigante que acordou, o pato que não seria pago… acho que me perdi na história. Alguém aí se sente seguro para dizer que entende onde estamos?

Em se tratando de relacionamentos abusivos, tem-se o termo gaslighting, cuja possível definição seria: “distorção e omissão de informações a ponto de fazer com que a vítima duvide de sua percepção, memória e até sanidade mental, com a finalidade de manipulação”. As palavras pesam. E não somente isso, mas, inclusive, o que se tem são as possibilidades de abertura de sentidos que elas carregam. Então, não bastava apenas uma pandemia para que ficássemos todos, de alguma forma, abalados. Ainda existiria a oportunidade de jogar com os sentidos e com as vidas de centenas de milhares de inocentes. É o novo normal, afinal de contas. Seja lá o que isso queira dizer.

Diziam salvar vidas e a economia. Que 12mil mortos não significariam nada para o total de habitantes do Brasil. Que a covid não mataria mais que a H1N1 ano passado. Que, veja só, o destino mesmo de todo mundo é morrer, então, que seja! Mais do que um trabalho de sentidos, o que se tem, me parece, é um estado de presente perpétuo, como se o amanhã não existisse. Afinal, tais declarações ocorreram quando as curvas ainda estavam no início da ascensão.

QUEM DIRIA QUE DALI MESES AS CURVAS CONTINUARIAM A SUBIR?

Todo mundo que entende um mínimo de ciência e de saúde diria.

Se alguém quiser me corrigir, não parece haver bote salva-vidas nem para as vidas e nem para a economia. Ora, não pense em crise — trabalhe! Pois bem, ao custo de, por enquanto, 160 mil mortes subnotificadas, ouço à distância (durante o dia) uma loja anunciar: “dois pares de meias por apenas R$9,99!”. Entre outras promoções, essa foi a que mais me marcou. Afinal, pessoas ficam doentes, morrem, os testes não são feitos, as vacinas são politizadas e não há o menor sinal de quando elas chegarão aos brasileiros (já que não existe consenso de qual delas comprar, como se fosse o caso de esperar a vacina perfeita que atenda a todas as vontades dos responsáveis). APESAR DE TUDO, o comércio não pode parar, onde já se viu quebrar a economia só por causa de uma pandemia em que nada é feito para controlá-la?

E vamos fazer isso, o país vai sair do buraco: com dois pares de meias a R$9,99.

Talvez eu esteja querendo de mais. A ordem da natureza é, enfim, o caos. Querer organizar o mundo é pedir para sofrer. Enquanto isso, eu sigo como posso (o que, infelizmente, quer dizer muito). Tento me refugiar na quietude fresca da madrugada, quando o mundo parece parar. Existe um sentimento de organização, de coisas no lugar. E que, mesmo assim, não dura, pois amanhã já é outro dia, com tudo de novo.

Foge-se da realidade como uma maneira de se salvar nesses tempos errados.

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