Fazendo as pazes com a Dona Morte

A Morte é parte da vida. Mas, na prática, ninguém gosta dela.

Regiane Folter
Revista Subjetiva

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Recebê-la de braços abertos é um desafio. Eu mesma prefiro imaginar a Morte como a divertida personagem das histórias de Maurício de Souza, tratando de minimizar assim a carga negativa que sempre associo à ela. Com a capa negra e as expressões cômicas, a Dona Morte da minha imaginação é mais simpática, mesmo que sua tarefa seja um tanto tétrica.

Qual será a sua verdadeira face? Bom, seja ela uma ceifadora de histórias de terror ou a simpática Dona Morte dos quadrinhos, sua chegada está sempre associada a algo ruim. Provavelmente porque o que mais vemos na Morte é a perda e isso pesa no nosso egoísmo. “Como posso superar essa dor?”, pensamos. Mas será essa a melhor maneira de lidar com algo tão inevitável?

Dona Morte no horizonte

Tudo é uma questão de perspectiva. Quando leio a notícia de uma tragédia ou descubro que algum conhecido distante faleceu, não me assusto tanto. A distância entre esse fato e a minha vida faz com que seja mais fácil pra mim aceitar que morrer é parte de viver.

“Pelo menos fulano descansou” ou “agora eles estão em paz” são frases comuns nesse tipo de situação, e soam vazias para mim porque aquela morte em particular não me afetou tanto. Está lá, longe, como algo que acontece com os outros, e não comigo.

É uma maneira fria de pensar no assunto, eu sei. Mas o instinto de sobrevivência que levamos no peito é forte e talvez com essa atitude meu inconsciente somente queira me preparar, me poupar. Porque claramente em algum momento a Morte vai se aproximar de mim também.

Dona Morte aqui em casa

Na realidade, ela já se aproximou, e muito. Anos atrás, a Morte levou meu pai embora depois de um período intenso de expectativa e tentativas de prolongar seu tempo conosco. Quando seu diagnóstico apenas saiu, anos antes, os médicos deixaram bem claro desde o início que não haveria solução: no final da luta, ele perderia. E olha que ele lutou, viu. Por cada momento, por cada respiro extra. Mas, no final das contas, a Morte saiu campeã. Embora acredito que ninguém, nem mesmo ela, tenha se sentido vitoriosa.

Naquela época eu era criança e não conseguia entender muito, só podia enxergar minha própria dor. A tristeza e a frustração tomaram conta de mim e não tive espaço pra pensar em outra coisa. Durante um bom tempo, traumatizada por essa perda tão fundamental, eu temi voltar a me encontrar com a Morte em cada esquina. Não tanto por mim, porque ainda era jovem e quando somos jovens pensamos que somos invencíveis. Não, eu temia a morte dos outros, dos meus familiares, da minha mãe. Lembro de pensar que não queria terminar sozinha, como se a Morte estivesse à espreita, pronta pra levar todos aqueles que eu amava e me deixar aqui, eu e somente eu, pra curar essas feridas que não têm cura.

Foi um período de muito luto, muitas lágrimas e muita terapia. O tempo foi fazendo sua mágica, transformando dias em meses e meses em anos, e eu fui esquecendo. Me esqueci da sensação de incredulidade que acompanhou a morte de meu pai, me esqueci da profundidade da dor, do sofrimento que parecia não ter fim. Esqueci de como perder alguém significa perder partes de nós mesmos e quanto mais longe a Morte foi ficando no meu horizonte, mais eu fui esquecendo. Isso foi fundamental para que eu pudesse seguir em frente, encontrar novas fontes de alegria e não me entregar ao desespero. Outra vez, meu instinto de sobrevivência colocando panos quentes!

Cresci, vivi outras coisas, boas e más, mas nunca tão más quanto aquela perda. A Morte voltou a estar distante, voltou a ser uma notícia sobre desconhecidos ou uma fatalidade que passava com pessoas com quem eu não tinha contato. Até que ela decidiu se aproximar de novo.

Dona Morte conhecida

Não acredito que seja realmente opção da Morte, não acho que ela se sinta feliz em sair em busca de almas para levar. Penso nela mais como um ser que tem empatia, que sofre um pouquinho com cada pessoa que precisa ceifar, mas que aceita que tem uma missão a cumprir. Pelo menos prefiro ter essa imagem da Morte quando penso em meu gatinho que foi embora com ela no ano passado.

Quando nosso gatinho morreu, eu desabei novamente e dessa vez até pareceu que a queda foi mais dura. A perda de um ser amado antes não me preparou para aceitar ou digerir a morte mais facilmente, como eu tinha pensado. A única coisa que realmente me ajudou, e que eu repetia pra mim mesma como um mantra, era saber que com o tempo ia se tornar mais fácil. Eu já tinha passado por isso, sabia que respirar ia se tornar natural de novo. Mas o sofrimento não foi menor, e me entreguei àquela dor que parece esmagar a gente. Nessa ocasião eu já era adulta e a inocência havia ficado lá atrás. Por isso, junto com a tristeza outros sentimentos obscuros apareceram, tais como a culpa, a raiva, a impotência.

Parte desse novo luto foi (e ainda é) o medo constante de que a Morte continue perto, dando voltas no quarteirão, cercando aqueles que amo. Vejo sua sombra ameaçadora por todos os lados e sinto um aperto no coração só de pensar que talvez aconteça de novo e antes do que eu imagino. Talvez os novos gatinhos que adotamos há tão pouco tempo também nos deixem. Talvez alguém que amo, perto ou longe, termine indo embora. Talvez, talvez, talvez… Talvez eu termine sozinha como sempre temi.

Entendendo a Dona Morte

A coisa com a Morte é que não há tantos “talvez”, já que ela é a única certeza que podemos ter da vida. Pra tudo há uma solução, menos para ela.

Aceitar isso poderia ser o primeiro passo para começar uma relação mais saudável com a Dona Morte. Se ela nos visitará durante toda a jornada e no fim será nossa companheira também, não seria melhor tratar de entendê-la? Aceitá-la como alguém mais que vamos conhecer e receber em nossas casas, ao menos uma vez com toda a certeza?

Não acho que um dia vou encarar a morte como algo maravilhoso e morrer de rir ao saber que ela está por perto, claro que não. O fim quase sempre vem acompanhado de tristeza, porque significa que algo mudou e nunca mais será igual. Seja por nostalgia, seja por medo ou pela razão que for, terminar um ciclo nunca é fácil, nunca é só positivo. Mas também não é só negativo. Deixar de ver a Morte como vilã pode nos ajudar a lidar com a perda.

Tudo isso ainda é teoria pra mim. Não sei como vou reagir da próxima vez que a Morte tocar a campainha. Mas reflito sobre essas coisas com o objetivo de que, no futuro, possa lidar com ela de uma forma mais leve. Na próxima vez, espero abrir a porta e cumprimentar a Morte como uma velha conhecida. Ela fará o que tem que fazer, e eu vou acompanhá-la. Chorando sim, quebrada; com aquela sensação de que sorrir nunca mais será possível, que só quem já foi visitado por ela sabe como é. Mas espero que meu coração esteja mais tranquilo. Machucado sim, sensível, frágil. Mas também consciente de que é somente um passo mais, uma parte mais da jornada, e que enquanto esse ciclo termina, outros continuam. Outros vão começar.

Para nós, que ficamos, o que nos resta é celebrar o que foi bom, pra transformar o luto em saudade, e imaginar que por um caminho invisível a Dona Morte está levando esse ente querido a um lugar maravilhoso. E um dia nos encontraremos lá, quem sabe?

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Regiane Folter
Revista Subjetiva

Escritora brasileira vivendo no Uruguai 🌎 Escrevendo em português e espanhol 🖋️ Compre meus livros: https://www.regianefolter.com/livros