O que podemos aprender com uma mulher nua em estado de surto sábado à tarde
Um ensaio cansado de tanto correr — sobre ética
Acontece que aquela mulher, que estava nua, entendia estar sendo atacada por répteis que penetravam a sua vagina sem serem convidados — uma interpretação psicodélica conduzida pelo consumo de algum psicotrópico sobre o OB, do qual visivelmente pendia delicado barbante. Foi mais ou menos o que ficou consensualmente entendido quando conversei com sua colega “de noite”, que segurava as roupas e documentos da primeira como se ninasse uma criança, com o mesmo olhar vago, entorpecido e desinteressado de uma mãe insone.
Não, este não é um texto ficcional.
Meu amigo e colega Marcelo Perilo e eu estávamos na metade da condução do nosso Rolê Antropológico sobre um século de ocupação LGBT na cidade de São Paulo quando aconteceu. Estávamos lembrando o fatídico dia onze de janeiro de 2014, na rua Bento Freitas, próximo da esquina com a General Jardim. O prédio que agora ostenta o título de Hotel antes abrigava a festa PZA, Marcelo explicava, quando começamos a ouvir os gritos. Sim, os gritos saíam de dentro do mesmo prédio, e já era possível vislumbrar através do fumê grafite a silhueta da mulher que pranteava.
Sua colega, a que segurava as pobres tralhas, não queria saber de estar ali não, disse que não era “babá” de ninguém. Os funcionários do Hotel se dividiam entre a zombaria e alguma preocupação acerca das proporções que aquilo poderia tomar e estava tomando. Marcelo e eu nos perguntamos o que fazer em uma situação como aquela — sem esquecer que conduzíamos uma excursão pelas ruas da Vila Buarque naquele momento. Algumas pessoas ligaram para o SAMU, outras para a PM. Eu simplesmente optei por fazer aquilo que achei correto, isto é, acudir a moça com vistas a evitar um atropelamento.
Era impossível acalmá-la, ou retirar qualquer informação válida da sua boca. Ao longo dos intermináveis quarenta minutos que se seguiram, ela levantava e sentava, corria, se jogava na frente dos carros, gritava impropérios alucinados, batia em si mesma e espumava.
Mas ela estava surtando, e isso tudo dá pra esperar de uma pessoa que está surtando.
As coisas verdadeiramente hediondas acontecem justamente quando as pessoas detém total controle sobre o que fazem.
O verdadeiro caos começou quando ela sentou na esquina da General Jardim com a Bento. Isto porque seu padecimento se tornou um espetáculo. Pedestres e pessoas que se abasteciam de cerveja nos dois bares de esquina se transformaram em uma alvoroçada audiência de circo dos horrores. A maioria desse povo assistia escandalizada ou escarnecida — uma parte até perplexa. Com exceção de mim e algumas outras poucas pessoas, ninguém estava interessado em intervir para que aquela mulher se expusesse menos. Pelo contrário: algumas pessoas começaram a sacar smartphones e registrar em vídeo o que acontecia — já que, como já comentei antes por aqui, ninguém sabe fazer mais nada sem tirar uma porra de uma foto.
NÃO BRODER, EU NÃO TÔ ZUANDO!
E aí a parada ficou muito mais tosca, porque além de recolher a toalha branca que ela insistentemente recusava e evitar atropelamentos, de repente me flagrei na situação de pedir às pessoas que não filmassem, que aquilo era um desrespeito e que poderíamos estar no lugar dela e blá, blá, blá.
Quem está surtando, sociedade?
Em um momento fugidio de alívio cênico, a moça — que gritava inconsolável pressionando o tampão — sentou-se sobre o chão de asfalto, e então alguém propôs que fizéssemos uma “cabaninha” ao seu redor, de modo a evitar a sua exposição enquanto as autoridades não chegassem. Mas socorro nenhum chegava, e essas pessoas todas desistiram quando a mulher começou a correr em direção a outras ruas, virando esquinas e se aventurando pelo espaço sem se importar muito com a diferença entre calçada e rua.
Conforme corria atrás dela, e os minutos escorriam com a reologia de um ranho, reparei que as pessoas observavam incrédulas o que acontecia, dos apartamentos, dos estabelecimentos, dos altares morais. Só queria que aquele inferno acabasse. Ao vencer alguma daquelas intermináveis dobras, finalmente foi possível ver a viatura da polícia atrás de uma fila de carros. Como se nos encaminhássemos para o clímax da narrativa, então, a dita moça recostou ofegante sobre a dianteira de um veículo. Então, como se o roteiro não estivesse árido o suficiente, o motorista do carro, num gesto que encarna a expressão máxima da sensibilidade que um ser humano poderia ter em uma ocasião como essa, disse:
“Eu estou com pressa”.
Não achei que fosse precisar explicar naquela altura do campeonato a um homem adulto que não se acelera sobre uma mulher nua que senta no capô de seu carro só porque o farol está aberto, MAS precisei implorar para ele não avançar, dizendo “Você não vê que ela está doente?”. Marcelo mencionou que lembrou da música Sinal fechado quando pensou sobre esta cena — e por isso que a música de Paulinho da Viola infelizmente é um clássico.
Então ela saiu correndo mais uma vez, não mais atrapalhando o tráfego (como também lembrou Marcelo depois). Expliquei com vontade o que acontecia para os PMs, que passaram por mim com o mesmo interesse que alguém tem em fazer aeróbica depois de ingerir oitocentos gramas de picanha. Quando entenderam a situação, chamaram reforços, e se prepararam para levar a mulher para um Pronto-Socorro, com a postura de quem captura um animal selvagem arredio e perigoso. Alguém perguntou sobre o SAMU, um dos guardas riu cinicamente e disse que a ambulância demoraria duas horas para chegar.
Duas horas depois o SAMU ligou para o telefone do Marcelo perguntando sobre a ocorrência.
Mais uma vez censurei um homem que erguia o celular para filmar o que acontecia. “Não filma! Respeito!”, disse. Um outro homem, ao lado dele, branco e musculoso se dirigiu a mim falando “Se ela quisesse respeito não estaria assim”. Como meu cérebro estava aquecido, respondi no momento “Anabolizantes também causam surto psicótico”, e me voltei novamente para a viatura, pois aquele era meu foco, quando ouvi, então, de outro homem que se posicionou ao meu lado, que alucinar com répteis e seres rastejantes eram resultado de problemas com cocaína. Aprendi alguma coisa nova, pelo menos.
Finalmente, cinco homens fardados conseguiram dominar a mulher e, após algumas tentativas, fecharam a porta traseira sem machucá-la — aparentemente. Em seguida, perguntaram se havia alguma mulher disposta a acompanhá-los. Em menos de um minuto apareceu uma jovem, de quem colhi o telefone.
Uma vez encaminhada a situação, ainda tive que lidar com grupos de curiosos que vinham me perguntar o que havia acontecido, como se eu fosse o diretor de uma performance artística. Quando chegamos à porta do Hotel, o cliente e a outra garota de programa me agradeceram imensamente — por tê-los livrado da carga jurídica que lhes faria perder a arejada noite de sábado. Pra mim o que importava era saber onde estavam os objetos da mulher cujo nome ninguém sabia, pois entendia que a salvaguarda deles era um direito dela.
Uma garota que estava consumindo em um dos bares havia ensacado as roupas e documentos, mas não sabia muito bem o que fazer com eles, pois nenhum daqueles estabelecimentos queria guardá-los, de forma a favorecer um reencontro entre eles e sua proprietária original. Uma senhora, finalmente, negociou com um dos funcionários, que cedeu e admitiu que podia guardar as tralhas. O nome dele, ironicamente, era Sorriso.
Todos nos cumprimentamos com aquela cansada mas gratificante cumplicidade de estarmos fazendo a coisa certa, e finalmente pude voltar à atividade do Rolê Antropológico. Marcelo e eu optamos por encerrar aquela sessão e realizar uma segunda edição no fim de semana seguinte.
Fui beber uma cerveja na Peixoto Gomide com meu namorado e amigos pra relaxar. Fomos convidados a sair da região pela Polícia Militar, pois havia risco de conflito armado com traficantes.
Acho que realmente aprendi algumas coisas com essa história, além da relação entre pó e cobras. A mais importante é:
As pessoas são muito mais escrotas na vida real.
Em tempos ultra-modernos é previsível que o individualismo suplante qualquer noção cívica que possa ser evocada nos microscópicos imponderáveis do dia-a-dia: uma criança em horário comercial vendendo balas no farol, um homem maltrapilho estirado na calçada entregue profundamente à ebriedade de seus sonhos, uma mulher acocorada pressionando trêmula um cachimbo de latão na mão calejada.
Experimentamos cotidianamente esse estado de apatia moral toda vez que ignoramos situações como essas — mulheres sendo assediadas em praça pública, homens desfilando nas ruas vestindo camisetas estampadas com representações estilizadas de apologetas da tortura, crianças sendo enxotadas de estabelecimentos comerciais a pontapés, pessoas pobres e idosas sendo desnecessariamente expostas em programas de TV.
Na narrativa que experimentei há dois sábados atrás, contudo, não testemunhei somente esse estado generalizado de negligência passiva que é nossa companheira habitual dos passeios urbanos. É comum, quando ocorrem acidentes em ruas movimentadas, ver um bocado de gente assistindo de camarote os seus desdobramentos, sabendo que já há quantidade suficiente de pessoas engajada ativamente no socorro. [Eu mesmo, depois de assumir e compartilhar parte da responsabilidade com as pessoas que se engajaram momentaneamente (Do It Yourself), finalmente transferi dita incumbência para o Estado — embora, óbvio, definitivamente desconfie da capacidade deste para lidar com uma situação como a narrada.]
Mas e essa mulher, nua, exercendo uma profissão estigmatizada e precarizada, em situação de surto, correndo risco real de sofrer um acidente… Merecia menos socorro por conta da sua própria condição?
Em lugar de estender a mão, os apedrejadores de Madalenas ergueram seus celulares morais, abrindo as pestanas impiedosas do olho do poder. Preocupados exclusivamente com a garantia única de que teriam um travesseiro fofo para repousar os escalpos à noite, os cuspidores de Genis assistiram e praticaram a miséria da miséria da miséria entre um gole e outro de Brahma — que desce quadrado.
Eu nem sei como chamar isso tecnicamente. É tipo um amálgama entre a simulação da experiência mórbida, canibal e sádica de assistir passivamente alguém que necessita de cuidados sendo negligenciado e a subsequente super-exposição de uma pessoa que já se encontra em alto grau de vulnerabilidade.
Não se trata aí de negligência cívica, portanto, mas de sabotagem à ética.
E é de ética, sobretudo, que se trata, pois qualquer pessoa poderia estar no lugar daquela mulher. Como me disse, no mesmo dia, a moça que esteve engajada na elaboração dessa micro-rede instantânea de solidariedade, por voice note:
Numa semana em que a gente tá sofrendo tanto com a história da Marielle, e a gente vê o quanto de gente que não fez nada por essa mulher [a do surto], a gente vê que na verdade quem matou a Marielle foi a sociedade brasileira, porque é conivente com todas essas formas de injustiça.
Enfim, é porque naturalizamos a negligência com o próximo que renunciamos à nossa própria capacidade de cuidar de nós mesmos. A história que narro é uma fábula sobre a triste condição de renúncia à dignidade humana, o processo que acompanha o fetiche do controle e a estratificação hierárquica das vidas que consideramos passíveis de serem cuidadas. O gatilho acionado que mata a democracia é o gesto que encarna o nosso próprio suicídio moral como sociedade.
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