O reality show que vence quem não for cancelado na internet

Victor Hugo Liporage
Revista Subjetiva
Published in
3 min readJun 10, 2020

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Montagem da arte original de Christopher Noel

Pra começar, “O reality show que vence quem não for cancelado na internet” quase foi cancelado, porque usaram a palavra “canceladO”, com O, e não X, E ou A. A comunidade não binária não se pronunciou oficialmente, porque estavam ocupados com pautas necessárias de fato.

No primeiro dia, rolou um churrasco. A participante Mila gritou de felicidade, dizendo que amava espetinho de coração. Caiu de boca. Os demais participantes — com vasta experiência de cancelamento na internet — perceberam a pegadinha. Só Mila comeu. Foi cancelada por alguns veganos e eliminada.

No segundo dia, rolou festinha. Todos dançavam alegremente, até que começou a tocar “Movimento da Sanfoninha”, da artista com vasta experiência de cancelamento Anitta. Todos pararam de dançar na mesma hora. Fabi, não. Fabi não apenas continuou dançando, como cantou junto. Cancelada e eliminada.

No terceiro dia, cineminha. A produção separou uma lista de dez filmes e os participantes deveriam escolher um. Momento de grande tensão. Ignoraram Tarantino, Lars Von Trier, Gaspar Noé e Petra Costa até que, quando chegou em “Azul é a cor mais quente”, o participante Theo falou “esse filme é muito sensível, explora o romance lésbico com sensibilidade e visceralidade.” Foi cancelado, obviamente. Não se sabe se por gostar do filme ou pelo uso da palavra “visceralidade”.

No quarto dia, os participantes deviam escolher um ex-participante do BBB20 para visitar a casa. Todos foram sábios e selecionaram Thelma. Contudo, um perfil no Twitter fez leitura da linguagem corporal do participante Fábio, que demonstrou excitação ao ver a imagem de Felipe Prior. Subiram a hashtag #ForaFabio. A produção analisou as imagens e deu razão ao levante virtual. Quarto eliminado.

No quinto dia, um desastre total, mostrando o quanto pequenas atitudes definem caráter. O participante Luan colocou feijão por cima do arroz e foi cancelado. A participante Leila apareceu com um vestido da Farm e foi cancelada. O participante Guilherme dividiu opiniões na internet, ao falar que Friends era uma merda. Foi cancelado e descancelado.

No sexto dia, a participante Victoria surtou e deu discurso, falando que aquilo era doentio e um desserviço, pois a cultura de cancelamento era tóxica, reduzia as pessoas a ideia de bom e mau, que por sua vez, reproduz uma moral cristã iluminista e vai contra todos os ideais de desconstrução e amadurecimento. Emendou dizendo que os canceladores de internet eram hipócritas, porque “todo mundo erra”.

Surgiram várias frentes de cancelamento da participante Victoria. Os acadêmicos queriam cancelar pelo uso irresponsável do conceito “cultura do cancelamento”; os liberais queriam cancelar pelo ataque ao iluminismo; os poetas queriam cancelar porque a máxima “todo mundo erra” era cafona demais e, por fim, as maquiadoras queriam cancelar porque Victoria exagerava na base e fazia “um delineado horrível”.

No final, a produção deu a vitória à Victoria, sob o argumento de que o verdadeiro propósito do reality show era fazer os participantes refletirem de maneira crítica sobre o cancelamento, propondo um debate público sobre o linchamento virtual e o extremismo ideológico.

A internet ficou em polvorosa: de um lado, aplausos ao reality show, o consagrando como inovador e transgressor. Do outro, cancelamentos; argumentando que expuseram desnecessariamente as pessoas canceladas.

Ao fim, uma jornalista descobriu que o criador do reality show tinha votado no Bolsonaro (apesar de ter se arrependido meses depois).

Cancelaram o reality show. Na internet e na grade da TV.

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