Os filmes de julho, parte 2: A arte polêmica e a moralidade

Carlos Massari
Revista Subjetiva
Published in
9 min readAug 25, 2020
Decameron, de Pier Paolo Pasolini

Pier Paolo Pasolini foi não só uma das figuras mais polêmicas da história do cinema, como também de todo o século XX. Sou comunista, sou homossexual e sou católico romano, disse. Cineasta, escritor, poeta e jornalista, acabou assassinado no dia 2 de novembro de 1975, em circunstâncias até hoje misteriosas.

Por incrível que pareça, boa parte da filmografia de Pasolini era bastante acessível na minha fase de começo de cinefilia, ali por volta de 2005 e 2006. Fosse em videolocadoras, fosse em canais da televisão fechada, era uma missão relativamente fácil encontrar não só seu título mais famoso e polêmico, Salò ou os 120 dias de Sodoma, como também outros trabalhos menores. Pude ver na época ainda a chamada Trilogia da Vida, com adaptações de grandes clássicos literários que têm um pé no erotismo (As Mil e Uma Noites, Decameron, Contos de Cantebury).

O nosso atual contexto de pandemia me fez querer rever Decameron, afinal, é a adaptação de um livro que traz contos supostamente narrados por pessoas abrigadas enquanto esperam a passagem de um surto de peste negra. E essa foi só umas das obras vistas em julho que tangeram temas como moralidade e religião.

Esse é o segundo texto sobre os filmes assistidos em julho de 2020. Para ler o primeiro, com foco principalmente no cinema brasileiro, é só clicar aqui. E nos próximos dias o último deve sair do forno!

Para opiniões mais completas e imediatas sobre os filmes a que eu assisto, você pode me seguir no Letterboxd!

Melhor filme visto no mês: O Mistério de Picasso, de Henri-Georges Clouzot
Pior filme visto no mês: Mommy, I’m Scared, de Reha Erdem

A única das três características auto-citadas por Pasolini que compartilho é o comunismo, mas o catolicismo é algo que desde cedo me apavorou. Nunca tive uma família especialmente religiosa, talvez até pelo contrário, e desde cedo as menções ao caráter extremamente punitivista da religião me causaram grande estranheza.

Decameron é um filme no qual Pasolini foca no sexo, que está longe de ser o único tema do livro de Bocaccio. Quase tudo envolve alguma safadeza, e quase tudo envolve algo proibido.

Para algo que se passa ali no auge do poder da igreja católica, é incrível que a principal comunicação que nós temos ao ver essas histórias, todas adaptadas de contos originais da época, é sobre como o que mantinha as rédeas curtas era justamente o medo das supostas punições divinas.

Voltemos, então, um pouco mais no tempo. Sempre buscando as origens da arte italiana, Federico Fellini fez Satyricon, uma obra sobre pessoas vagando por Roma e encontrando personagens e situações diversas. Nós vemos o teatro, os artistas, os vagabundos, os ricos e os condenados. É uma história que vem e vai pelas entranhas daquela sociedade que parece nos causar tanta surpresa.

Satyricon, de Federico Fellini

Mas em Roma, tudo era sexo. Ou banquetes. Ou, sendo mais claro, excessos. E esses excessos foram uma das causas da sua derrocada. Parece natural então que a igreja católica quisera construir algo baseado justamente no contrário disso, punindo tudo o que é prazer.

Eu não sou um grande fã de Satyricon, filme que também havia alugado nos meus princípios de cinefilia e já recebido com grande estranheza. Dessa vez, meu olhar mais maduro me permitiu ver mais prazer nos primeiros momentos do filme, principalmente pela capacidade da representação dessa arte italiana, um tema sempre tão caro a Fellini. E pelo investimento extremo do mestre italiano em uma obra mais sensorial.

Como boa parte da obra original de Petrônio está perdida, Fellini investe muito menos em uma trama, muito mais em uma viagem pelas sensações dessa Roma insana de orgias e banquetes. E a minha percepção pessoal continua negativa, dessa vez com interesse na primeira meia hora, mas depois um cansaço acumulado e uma sensação de que o filme jamais termina.

Mas se você é alguém que se atrai imensamente por Roma, é uma ótima pedida.

De volta a Pasolini e Decameron: As histórias narradas aqui são parecidíssimas. Há o homem que se disfarça de mudo para “trabalhar” em um convento transando com todas as freiras, já que se não se pode falar sobre aquilo, não há pecado. Há os dois amigos que fazem um pacto para que quem morrer primeiro volte e conte ao outro se sexo é pecado. Há o homem que tenta enganar um casal de camponeses inocentes para praticar sexo anal com a esposa enquanto o marido pensa que aquilo é apenas um ritual para transformá-la em égua.

Em comum, sempre a fuga do pecado. Se ninguém sabe que é sexo, não é sexo. Se não é possível fazer orgias às claras, como em Roma, faça-se às escondidas.

O punitivismo extremo da igreja católica gerou um moralismo descabido que até hoje corrói o mundo, que gera transtornos em muitas pessoas, que faz com que quase ninguém possa ser livre. Mas sexo é instinto natural humano e, mesmo com muita ameaça, raramente se evita.

Decameron tem momentos engraçados, mas passa por muitos altos e baixos em suas histórias. É natural que isso aconteça com filmes episódicos, já que manter a consistência é dificílimo. A dualidade entre religião e pecado é o seu ponto forte e os melhores contos são os que conseguem mais encontrar o tom da brincadeira para falar sobre ela. Competente, mas nada especial.

Satyricon de Fellini (Federico Fellini, 1969) ** — Revisão
Decameron (Pier Paolo Pasolini, 1971) *** — Revisão

A Polônia é o país com maior porcentagem de católicos do mundo: Nada menos do que 92,2% da população. Como já mencionei em textos anteriores, foi provavelmente o lugar com a pior experiência europeia com o comunismo. E, em meio a tudo isso, vive com seus apartamentos cinzas cobertos de neve.

Eu nunca estive na Polônia e pode ser que essa seja uma visão muito errada do país, mas é exatamente ela que o cinema passa. E já que estamos falando sobre religião e moral, nada como chegarmos mais uma vez a Krzysztof Kieslowski.

Kieslowski fez no final da década de 1980 o seu Decálogo, uma obra ainda hoje aplaudidíssima. São dez filmes de pouco menos de uma hora, cada um sobre um dos dez mandamentos.

Dois dos exemplares de maior sucesso dessa série foram estendidos e transformados em obras de maior duração, no caso, Não Amarás e Não Matarás.

Como o cineasta dos dilemas éticos que sempre foi, Kieslowski pega pesado em Não Matarás, que traz histórias paralelas sobre um jovem advogado idealista, um homem que vaga pela cidade de maneira anti-social e um taxista que também não é muito flor que se cheire. Você provavelmente consegue imaginar onde isso desemboca.

Não Matarás, de Krzysztof Kieslowski

Causa estranheza dentro da filmografia do diretor o quanto Não Matarás se fecha bem, mas essa é uma característica que parece comum a todo o Decálogo. A primeira metade, com a apresentação dos personagens, é um pouco problemática, já que pesa a mão na superficialidade.

Na segunda metade somos apresentados à dualidade entre a violência cometida pelo indivíduo e a violência cometida pelo estado, e é aí que o filme realmente cresce. Baseado em que nós acreditamos que existe o direito de tirar a vida de alguém por considerarmos, enquanto sociedade, que algo feito por ele é errado?

Gosto da relevância da discussão e de como Kieslowski apresenta seu ponto e mais uma vez joga um dilema ético nas nossas caras. Infelizmente, a artificialidade do início impede Não Matarás de alcançar todo o seu potencial.

Também triste, soturno e cinza é Não Amarás, história de personagens solitários vivendo nessa Polônia tão difícil. Mas por incrível que pareça, esse aqui não é uma tragédia anunciada.

A estrutura é a mesma de Não Matarás: Uma primeira metade que apresenta personagens que nada mais são do que arquétipos, uma segunda metade que movimenta as peças no tabuleiro. E obviamente, é do meio para o fim que o filme cresce.

Acredito que Não Amarás não consegue alcançar campos tão profundos e nem tão relevantes como Não Matarás, e apesar de ter momentos muito belos visualmente, fica preso à limitação do tema e dos arquétipos que cria.

Nos textos sobre agosto, falarei sobre alguns curtas do Decálogo. A característica de histórias redondas com dilemas éticos se repete bastante, a Polônia cinza e triste é predominante em tudo.

Depois de já ter visto quase toda a obra de Kieslowski, porém, é interessante notar como existe uma claríssima opressão invisível sobre tudo. Em um ambiente com maioria esmagadora de religião punitivista, governo autoritário e frio violento, não parece haver muito para onde fugir. Não à toa, sofrimento e dor é a mistura que dá o tom de praticamente todos os filmes do diretor.

Outro cineasta polonês relativamente importante é Krzysztof Zanussi. Seu Iluminação é uma obra ambiciosa e felizmente nem tão cinza como o que Kieslowski costuma apresentar.

Em 89 minutos temos comprimidos dez anos da vida de um homem. E não é uma trajetória sem fatos importantes: Muita coisa acontece. A linguagem também foge do simples ao trabalhar com variadas inserções, ilustrações, falas de filósofos e possibilidades engraçadinhas. É muita, muita coisa para tão pouco tempo.

Zanussi acerta em cheio nas elipses de Iluminação, que são muito bem utilizadas e criativas. O filme, porém, nunca alcança a profundidade que poderia e nem desenvolve seu personagem suficiente bem.

É uma pena, já que poderia ser um trabalho de ótima qualidade se menos apressado.

Não Matarás (Krzysztof Kieslowski, 1988) ***1/2
Não Amarás (Krzysztof Kieslowski, 1988) ***
Iluminação (Krzysztof Zanussi, 1973) **1/2

Para finalizar esse texto, rápidos comentários sobre obras de três países diferentes: Turquia, Alemanha e Suécia.

Eu raramente abandono filmes pela metade. Dos mais de 140 vistos em 2020 até aqui, só um me obrigou a fazê-lo. A primazia coube ao turco Mommy I’m Scared, dirigido por Reha Erden.

Trata-se de um exemplar do gênero COMÉDIA ULTRA ESPERTA, que eu detesto. Edição estupidamente rápida, situações desconectadas, narrador que quer ser incrivelmente engraçado, esquisitice atrás de esquisitice. Todos os personagens gritam, o exagero transborda, a música grudenta não para de tocar. Resisti o quando deu, mas infelizmente não é para mim.

O alemão Os Invencíveis é um filme de ação com muita cara de anos 1990. É incrivelmente bem filmado pelo diretor Dominik Graf, com cenas de perseguições e de suspense que são encenadas e coreografadas em alto nível. Há muito sexo aqui dentro e também dá pra dizer que são momentos que a obra acerta em cheio.

Os Invencíveis, de Dominik Graf

Existe, porém, uma trama incrivelmente truncada, que começa com uma suposta morte encenada de um policial e depois de transforma em um milhão de coisas, mexendo com desde corrupção na política até existencialismo e fetiches. São 147 minutos intensos, sempre com alguma coisa nova acontecendo, algum mistério novo inserido.

A partir de um certo momento, fica até difícil de acompanhar quem é quem, para onde a trama vai, qual mistério deu onde. E esse se torna mais um filme que faz jus à fama dos títulos de ação dos anos 1990: Parte visual excelente, trama pouquíssimo inspirada.

Por fim, vamos mais uma vez falar sobre um dos grandes mestres do cinema: Ingmar Bergman e seu Através de um Espelho.

É fácil perceber os porquês de Bergman ser um cineasta tão consagrado. Além de todo o seu apuro visual, ele consegue em apenas 90 minutos criar personagens incrivelmente complexos e profundos. É como se já os conhecêssemos há anos.

São quatro personagens principais em um cenário de isolamento, estrutura que se repetiria mais tarde na carreira do diretor. Todos têm seus dramas pessoais e suas complexidades, todos são multidimensionais. Podemos nos compadecer com cada um deles, e essa é a virtude de um grande dramaturgo.

Quando acontecem os diálogos, a câmera para e observa. Os quadros são perfeitos e sempre nos contam alguma coisa. Nenhuma imagem é em vão.

Por mais que não seja tão inspirado como as grandes obras-primas de Bergman, Através de um Espelho é muito bom. E imagino que seja bastante acessível e talvez uma boa porta de entrada para o cinema do diretor.

Mommy I’m Scared (Reha Erden, 2004) *
Os Invencíveis (Dominik Graf, 1994) ***
Através de um Espelho (Ingmar Bergman, 1961) ****

No terceiro e último texto sobre os filmes de julho, clássicos franceses da década de 1930 e comédias norte-americanas contemporâneas. Até lá!

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Carlos Massari
Revista Subjetiva

Jornalista, roteirista, escritor. Falo aqui sobre cinema e os esportes que não falo em outros lugares.