Os filmes de julho, parte 3: De Palm Springs à França dos anos 30

Carlos Massari
Revista Subjetiva
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9 min readSep 3, 2020
Palm Springs, de Max Barbakow

Cinéfilos normalmente são vistos como chatos pela sociedade. Supostamente, somos incapazes de sentir prazer assistindo a um filme e ficamos caçando erros e fazendo julgamento de desfile de escola de samba com o que vemos em vez de simplesmente curtirmos o momento.

Recentemente, vi na minha timeline do Twitter, não me recordo por qual autor, uma reflexão muito acertada sobre como essa concepção foi difundida com certa razão. Existem muitos críticos charlatões ou supostos cinéfilos sem qualquer conhecimento teórico que se prendem a questões de pouquíssima importância como erros de continuidade ou furos de roteiro. Tais argumentos são o que de fato acaba se assemelhando com um julgamento de desfile de escola de samba que não pode apreciar um conjunto completo sem procurar pelo em ovo.

Nós assistimos filmes justamente pelo prazer que isso proporciona. Eu lembro de sair da sessão de O Irlandês, no longínquo novembro de 2019, e dizer para a minha namorada que estava em transe de prazer cinematográfico.

Depois de anos e anos assistindo a filmes de todos os países, tipos e eras, você acaba identificando esse prazer muito mais em linguagem, estética e narrativa do que em uma ação desenfreada. Eu realmente não me dou nada bem com filmes de super heróis, mas essa é uma questão pessoal. Para mim, eles são chatíssimos e não proporcionam qualquer tipo de experiência positiva.

No final das contas, analisar um filme é uma mistura de teoria, repertório e, principalmente, bagagem pessoal. O que eu vejo não é igual ao que você, leitor, vê. E por isso duas pessoas podem ter opiniões muito diferentes sobre a mesma obra.

Esse é o terceiro e último texto sobre os filmes assistidos em julho. Nele, vou me focar mais em uma série de comédias e em dois musicais e trazer a análise para um lado mais de sensações e de prazer. Para ler os dois anteriores, você pode clicar aqui e aqui.

E para ter acesso a textos mais completos e imediatos meus sobre cada filme visto, é só me seguir no Letterboxd!

Melhor filme visto no mês: O Mistério de Picasso, de Henri-Georges Clouzot
Pior filme visto no mês: Mommy, I’m Scared, de Reha Erdem

Eu sei que existe uma nova geração da comédia norte-americana que faz muito sucesso. Conheço várias pessoas que gostam de séries como Community, Brooklyn Nine-Nine e Parks and Recreation e que atestam o quanto elas são engraçadas. Mas e só um conhecimento vago, perdão.

Como não sou muito ligado em séries, não tenho contato com os atores que fazem sucesso nelas. O recém-lançado Palm Springs é a primeira vez que vejo algo com Andy Samberg, astro de Brooklyn Nine-Nine, adorado por muitos fãs de comédia.

Esse é mais um filme que segue a fórmula Feitiço do Tempo de pessoa-presa-eternamente-no-mesmo-dia, mas em clima de comédia romântica mais despojada. Os personagens principais estão no começo da casa dos 30 anos e são os únicos em um ambiente de festa de casamento que parecem ser minimamente relatable.

A força de Palm Springs, que fez bastante sucesso na plataforma de streaming Hulu, é justamente a sua dupla de personagens principais. Eles têm química e são pessoas que eu queria ter como amigos. Enquanto o filme não precisa resolver a sua trama e os deixa soltos para explorarem o ambiente chato de casamento cheio de pessoas hipócritas, vive belos momentos e arranca algumas risadas.

É aqui que mora o que eu falo sobre o prazer de ver um filme — a trama de Palm Springs já foi repetida oitocentas e quarenta e três vezes no cinema e suas soluções para chegar ao final não são nada originais. Eu não tenho nenhum interesse nelas, muito menos na velha trajetória de casal que se conhece e briga mas depois percebe que se ama e volta para tentar uma vida junto.

O prazer de assistir a esse filme mora em se divertir com as situações anárquicas que o filme permite antes de se lembrar que precisa acabar em noventa minutos e dar resolução aos conflitos que abre. A partir daí, torna-se só mais um exemplar entediante do cinema hollywoodiano.

Outro tipo comum de comédias estadunidenses é o que tenta achar humor em situações complicadas da vida, mas acaba só se enveredando por pessimismo e amargor. É onde se encaixa Já Não Me Sinto em Casa Nesse Mundo.

Toda a trama aqui parte do pressuposto muito estadunidense de Preciso proteger minha propriedade!!!! — a partir daí, mergulha em um universo podre e pouquíssimo inspirado. É cheio de clichês e situações repetitivas sobre como as pessoas são ruins e esse não é um bom mundo para se viver, mas tudo desse jeito apegado demais à materialidade e às coisas não essenciais.

Já Não Me Sinto em Casa Nesse Mundo, de Macon Blair

Assim como outros filmes supostamente cáusticos recentes, principalmente Três Anúncios para um Crime, Já Não Me Sinto em Casa Nesse Mundo tem uma mensagem reacionária, sórdida, que se parece muito com o brasileiro médio dizendo que está cansado de tudo que está aí. Existe uma necessidade estranha de atirar para todos os lados mas, nesse caminho, glorificar a violência e o revide.

Se o ponto forte de Palm Springs é o quanto a sua dupla de protagonistas é relatable, em Já Não Me Sinto em Casa Nesse Mundo o reacionarismo dos personagens é só mais um dos infinitos problemas de um filme nada prazeroso.

Palm Springs (Max Barbakow, 2020) **1/2
Já Não Me Sinto em Casa Nese Mundo (Macon Blair, 2017) *

Um gênero que normalmente é muito prazeroso é o terror italiano. O extremo cuidado estético e as cores fortes e bem definidas são sempre um deleite para quem gosta do aspecto mais imagético do cinema.

Em Uma Lagartixa num Corpo de Mulher, o grande Lucio Fulci flerta com uma obra-prima ao trazer na abertura um delírio psicossexual, sonhos oníricos com orgias e com morte, repressão sexual que se transforma em pesadelo e em sangue. São imagens sensuais e opressoras incrivelmente bem construídas e que fazem dos vinte minutos iniciais absolutamente essenciais.

Depois, o filme sai do campo do terror e fica mais no giallo, o suspense policial italiano também tão tradicional da época. A trama básica de quem matou? não é tão interessante e nem um pouco inspirada, mas eventualmente Fulci volta para cenas de pesadelos ou que se aproximam do terror e mais uma vez cria imagens impactantes.

É um filme que já vale uma recomendação só por seu começo, mesmo que depois caia bastante.

O musical, por sua vez, é um gênero que atrai um grande número de pessoas. E um dos grandes gênios do cinema, Francis Ford Coppola, também se aventurou por ele em O Fundo do Coração.

O Fundo do Coração, de Francis Ford Coppola

Uma catarse de sensações, esse é um filme que te bombardeia com imagens lindíssimas de uma Las Vegas que cintila o tempo todo. As músicas também não param, são alegres e efusivas e tudo tem um clima ULTRA ROMÂNTICO que pulsa de maneira frenética.

O conceito de O Fundo do Coração é se aproximar do teatro musical e ele o faz com perfeição. A linguagem é abertamente exagerada. E funciona.

Mas é um filme que envelheceu extremamente mal porque seu romance é problemático, quase que abusivo (quase sendo bastante bonzinho). Para que você tenha uma ideia, após o casal principal terminar, a mocinha está transando com outro homem quando seu ex invade o quarto de motel, a coloca nas costas ainda pelada e a leva embora assim mesmo.

Esse era o conceito de romance em 1982 e ele é estranho demais. Os personagens, que já me pareciam pouco carismáticos para a época, hoje são apenas repulsivos.

Uma Lagartixa num Corpo de Mulher (Lucio Fulci, 1971) ***1/2
O Fundo do Coração (Francis Ford Coppola, 1982) **1/2

Poucos cineastas na história são tão capazes de gerar tanto prazer como Eric Rohmer. Seus filmes são sempre comédias leves sobre um cotidiano burguês francês de relacionamentos frágeis e sexo casual, mas divertidíssimas e muito espertas. A capacidade visual de Rohmer era especial e, principalmente, sua facilidade para contar histórias tão mundanas com a beleza que fazia.

A Mulher do Aviador é mais uma dessas histórias: Um jovem apaixonado segue um ex da uma moça com quem tem um rolo e se vê envolvido em um mistério. Trama simples, leve, divertida e um filme que passa voando.

Se você não conhece o cinema de Rohmer, pode começar por aqui com tranquilidade. Esse filme está disponível no serviço de stream do Cine Belas Artes e tem um ritmo impecável, que se desenrola aos poucos, ótimos diálogos e um entendimento bem claro das relações humanas.

Uma reflexão que tenho é que o cinema de Rohmer, sobre desventuras amorosas urbanas, talvez hoje não fosse mais possível. As peças da cidade se colocam aos poucos no meio de um amor que não tem como se comunicar e forjam essa sensação de movimento constante. A cidade é uma personagem importantíssima. Hoje, tudo é virtual. Não existe mais a poesia de uma caneta que não escreve ou de um táxi que vai embora antes que se possa entrar nele.

A Mulher do Aviador (Eric Rohmer, 1981) ****

Para finalizarmos os filmes vistos em julho, três clássicos franceses da década de 1930, todos relativamente leves e prazerosos — e com seríssimas diferenças na forma de pensar o cinema.

O Novo Testamento deu início à retrospectiva do diretor Sacha Guitry no MUBI. Vindo de uma vida toda no teatro, ele passou para o cinema após a possibilidade de se fazer filmes sonoros surgir. Afinal, para alguém com esse background tão teatral, o diálogo é peça chave.

Ainda com pouco domínio da linguagem cinematográfica, Guitry constrói um filme que muitas vezes remete ao teatro. São cenas longas em cenários muito bem montados, todas baseadas na movimentação de personagens (existe até um entrar e sair de cena bem notável) e nos diálogos. Enquanto comédia, busca justamente nas linhas inspiradas e no arco dos personagens encontrar a sua graça e o seu mote.

Não é teatro filmado — pouquíssima coisa no cinema se encaixa nessa definição terrível. É, sim, um filme com forte influência teatral. E que tem vários momentos simpáticos, apesar de deixar clara a limitação de seu diretor em relação à linguagem (coisa que veremos mudar nos textos sobre os filmes de agosto) e que eventualmente se perde em uma verborragia excessiva.

Ao contrário de Sacha Guitry, René Clair fazia grande sucesso no cinema mudo e considerava que a chegada do som à sétima arte era uma abominação. Mas seu primeiro filme sonoro é logo um musical, Sob os Tetos de Paris, e é uma obra enorme.

Sob os Tetos de Paris, de René Clair

René Clair não via a necessidade dos diálogos no cinema e aqui aproveita o som de outra forma. Mantém a estrutura básica de gestos e expressões fazendo o necessário para avançar a história, o que faz pleno sentido (como eu sempre digo, diálogo é acessório, imagem é fundamento), e insere com precisão a músicalidade dentro da linguagem cinematográfica.

É um cineasta pensando em como inserir uma nova tecnologia em uma arte que já domina e o fazendo de maneira diferente da maioria das pessoas. Mas o fazendo de uma maneira que funciona, já que a musicalidade cai muito bem nessa obra e inclusive serve como belo retrato da classe operária parisiense.

Assim como eu falei sobre O Fundo do Coração, é uma trama bastante datada, com homens brigando de faca para decidir quem fica com uma mulher. Mas esse é um filme de 1930, não de 1982, e acredito que um olhar mais pesado para tal aspecto quase 100 anos depois seria bastante burro. O que importa é que essa é uma obra que acerta em cheio ao investigar a chegada do som ao cinema e acaba não só sendo inteligente e causando prazer cinematográfico, como também tendo momentos divertidíssimos.

Para finalizarmos, The Tender Enemy, de Max Ophuls, é uma comédia fantasmagórica que também é bastante inovadora para a sua época e gera uma felicidade genuina.

É um filme capaz de, já em 1936, criar linhas narrativas paralelas e trazer flashbacks para a trama. Ela é narrada por homens diferentes que se apaixonaram pela mesma mulher e, depois de mortos, dialogam no além sobre suas experiências. Como ocupam o mesmo ambiente que os vivos, a fotografia é competentíssima ao gerar um efeito fantasmagórico ao mesmo tempo divertido e sombrio.

Simples e curtinho, é uma pérola que merece ser vista pelas composições visuais e pelo trabalho que consegue fazer com a sua pequena trama.

O Novo Testamento (Sacha Guitry, 1936) ***
Sob os Tetos de Paris (René Clair, 1930) ****
The Tender Enemy (Max Ophüls, 1936) ***1/2

Agosto é mais um mês produtivo cinematograficamente. Em breve, mais textos!

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Carlos Massari
Revista Subjetiva

Jornalista, roteirista, escritor. Falo aqui sobre cinema e os esportes que não falo em outros lugares.