Os filmes de junho, parte 2: Clássicos poloneses e franceses!

Carlos Massari
Revista Subjetiva
Published in
10 min readJul 28, 2020
Possessão, de Andrzej Zulawski

Uma das minhas coisas preferidas do cinema é que ele é um dos meios mais fáceis que existem para quem gosta de conhecer o mundo.

É claro que assistir a um filme nunca vai substituir a experiência de estar em um lugar e de ver sem os filtros de uma câmera e sem as distorções narrativas como são a cultura e a realidade local, mas nós vivemos em um mundo no qual viajar é bastante caro. Por mais que eu ainda cultive a ilusão de que um dia estarei em cada um dos países que existem, tenho que me conformar cada vez mais com a presença de ilusão nessa frase.

Mais do que a lugares, o cinema também te apresenta a períodos de tempo. Ainda não inventaram uma possibilidade de voltar para cinquenta anos atrás, então a sétima arte é talvez o meio mais eficiente para os viciados em informação, como é o meu caso, poderem observar os aspectos do dia a dia de outros locais em outras eras.

Assistir a um filme nigeriano, senegalês, finlandês, macedônio ou indonésio sempre vai ser especial por esse fator de conhecimento extra, mesmo que ele seja ruim. Enquanto dinheiro infinito não brota na sua conta bancária, é o mais próximo que você vai chegar de ver as cidades, de ouvir os idiomas, de entender o ritmo da vida.

Maratonar Krzysztof Kieslowski tem me levado para essa Polônia do final da era do comunismo que parece um lugar absolutamente terrível para viver. O tom amargo e desesperançoso do diretor não torna nada mais fácil de engolir. E, claro, a experiência é fascinante.

Esse é o segundo texto sobre os filmes assistidos em junho de 2020. Você pode conferir o primeiro, que focou em alguns lançamentos como Destacamento Blood, de Spike Lee, aqui. Clássicos poloneses e franceses serão o tema a seguir!

Para acompanhar de perto as minhas opiniões sobre cinema e ler reviews mais elaboradas quase todos os dias, você pode me seguir no Letterboxd.

Melhor filme visto no mês (contando revisões): Possessão, de Andrzej Zulawski
Melhor filme visto pela primeira vez no mês: Jacquot de Nantes, de Agnès Varda.
Pior filme visto no mês: Take me Somewhere Nice, de Ena Sendijarevic

No dia 13 de dezembro de 1981, foi instaurada na Polônia a lei marcial, que restringiu completamente os direitos dos cidadãos. Os movimentos de oposição passaram a ser perseguidos, não havia mais a necessidade de justificar prisões, o toque de recolher obrigava que não houvesse ninguém na rua entre 22h e 6h e até linhas telefônicas passaram a ser fiscalizadas com o suporte do governo.

Não à toa, como já comentei no texto anterior no qual falei sobre Kieslowski, a Polônia é ainda hoje o país do antigo bloco soviético que mais rejeita o comunismo, já que é onde houve a experiência mais negativa.

Foi nesse contexto que Krzysztof Kieslowski entregou duas de suas obras mais amargas e pessimistas, Sem Fim e Sorte Cega. Elas permitem observar com um olhar estarrecido o que era essa Polônia que vivia em um estado completo de vigilância: um simples passo errado podia levar a um caminho sem volta. E em um país frio, cheio de prédios cinzas e com um passado também traumático em proporções absurdas.

Sem Fim é um filme sobre uma mulher que perde seu marido durante esse período de lei marcial e entra em uma espiral de tristeza e depressão. Isso é só um pano de fundo para o comentário político e social sobre a Polônia da época, com perseguição violenta a opositores e quase nenhum espaço de respiro.

O título em inglês é No End, e imagino que Sem Saída seria uma tradução mais apropriada. Kieslowski é extremamente hábil em criar um ambiente opressor ao extremo em cada um de seus aspectos. É como uma daquelas cenas de desenho animado que as paredes se aproximam do personagem ao centro e o esmagamento parece inevitável — mas não se trata de desenho animado, e sim de um aparato policial misturado a um ambiente repressivo, cinza e frio em uma situação de luto na qual qualquer válvula de escape e proibida ou reprimida.

Apesar de toda essa tragédia anunciada, Kieslowski ainda é bastante empático com a sua protagonisa. Esse ainda é um filme que gera um estranhamento pelo deslocamento temporal, e existe uma dificuldade maior de conexão entre trama e espectador. É o que impede de atingir um nível maior.

Problema esse que não acontece em Sorte Cega, filme que se passa no mesmo contexto, mas que usa de uma solução narrativa mais criativa para trazer o espectador para perto. A desesperança continua, só que com a opressão e o esmagamento dos personagens se transformando em um comentário irônico, um olhar que diz “tudo é tão desgraçado que devíamos rir um pouco”.

Sorte Cega, de Krzysztof Kieslowski

Sorte Cega nos apresenta a um jovem que corre atrás de um trem e, dependendo do que acontece nessa corrida, três possíveis caminhos se desenrolam: Em um, ele se junta ao Partido, em outro, à resistência, e em um terceiro, torna-se o famoso isentão. É óbvio que tudo acaba em tragédia.

Esse é talvez o filme que mais traz para a superfície a ética, questão que sempre permeia o trabalho de Kieslowski. Em cada uma das histórias, há um dilema claro que precisa ser resolvido. E é também onde a forma negativa de olhar para o mundo e para o país evolui e ganha ares e contornos mais complexos, mais capazes de delinear possibilidades e de entender como é que chegamos a cada situação.

Principalmente, Sorte Cega marca o passo final da evolução de Kieslowski como cineasta de ficção: Alguém que começou como documentarista e depois fez filmes que sofriam com uma narrativa limitada ou podada demais, transforma-se depois de pouco mais de uma década em alguém capaz de manipular linhas do tempo com maestria. E não à toa, essa é sua melhor obra até então.

Sem Fim (Krzysztof Kieslowski, 1985) ***1/2
Sorte Cega (Krzysztof Kieslowski, 1987) ****1/2

Outro cineasta polonês importante é Andrzej Zulawski. Ao contrário de Kieslowski, porém, ele foi ainda cedo para o exterior, onde pôde continuar com grande liberdade artística. O auge de sua obra é essa maravilha chamada Possessão, filmada na Alemanha e falada em inglês.

Possessão é uma história de divórcio. Inspirada pelo próprio processo de separação do diretor. E isso lembra, afinal, outros filmes recentes com o mesmo mote, como História de um Casamento, de Noah Baumbach.

Mas vamos parar por aí. Não existem maiores conexões, porque o filme de Zulawski é um mergulho no abismo em direção ao inferno, é a pura catástrofe, é sangue, sexo, loucura e paranoia misturados e multiplicados de uma forma que só o cinema pode fazer.

Desde o início, Zulawski cria uma sensação de inquietude com uma câmera que nunca para de se mover. Conforme o véu se levanta e o filme se revela, nós vamos percebendo que a dor desse divórcio é enorme, e que o olhar masculino para a situação identifica tudo como loucura, sangue, tristeza, ódio, violência, monstruosidade.

Zulawski faz de Possessão um filme de terror humano, um dos mais humanos filmes de terror porque o monstro, afinal, é o que nós mesmos somos.

E dentro de toda essa intensidade surrealista, Isabelle Adjani entrega o que talvez seja uma das maiores atuações da história do cinema. A cena do metrô, famosíssima, é completamente insana. É uma interpretação que deixou a atriz até com PSTD, tamanha a entrega à loucura.

Esse é um caso de filme feito para ser sentido, não interpretado. E só o completo acerto de tom por todos os envolvidos pôde fazer com que a experiência fosse tão completa.

Possessão (Andrzej Zulawski, 1981) ***** — Revisão

Um dos meus filmes preferidos é O Ano Passado em Marienbad, de Alain Resnais. É um experimento narrativo que funcionou perfeitamente na época de ouro da Nouvelle Vague. E esse cineasta francês sempre foi um dos grandes na arte de montar e desmontar a forma de contar histórias no cinema.

Em junho, o MUBI disponibilizou três filmes do diretor, em uma pequena mostra com o título As narrativas incomuns de Alain Resnais. Para quem gosta de desconstrução, um prato cheio. Foram obras consideradas pequenas ou médias dentro da filmografia do cineasta, Meu Tio da América, A Vida é um Romance e Mélo.

Meu Tio da América, de 1980, é bastante respeitado. Uma salada de formas de desconstruir a narrativa que usa todos os temperos à disposição: mosaico, narração filosófica, metáforas com animais, idas e voltas no tempo, inserções de filmes antigos, histórias cruzadas, tudo o que a imaginação permitir.

Meu Tio da América, de Alain Resnais

A minha sensação com esse filme é que Resnais usou tanto todos os temperos que tinha à disposição que a combinação desandou e ficou com um sabor absolutamente comum. A história, sobre três personagens com histórias que se cruzam, não tem nada de especial, e supostamente essa criatividade extrema seria o grande diferencial.

Mas fica pelo caminho. E claro, não se trata de um filme ruim: A elegância de Resnais, a habilidade para construir quadros belíssimos, a direção de atores e todos os demais aspectos que fizeram do cineasta tão grande estão presentes. Só que com toda essa salada, o gostinho de esperava mais é predominante.

Em A Vida é um Romance, Resnais usa um mesmo cenário para contar três histórias, cada uma em uma época diferente. Uma é um épico musical, outra é uma comédia romântica com cara de Rohmer, a última é uma distopia do início do século XX. Mais uma vez, você pode imaginar o quanto ele vai longe na questão de desconstruir a linguagem e a narrativa.

Mas os problemas nesse filme são ainda mais profundos que em Meu Tio da América, principalmente porque há muito pouco espaço para que cada uma das histórias se desenvolva. Não existe conexão que se forma entre público e personagens, não existe dentro de tanta ambição de Resnais espaço para que de fato qualquer trama se desenvolva de maneira apropriada.

Resnais peca em A Vida é um Romance pela ousadia, o que é um ótimo pecado e típico dos grandes cineastas. É um filme que não deixa muitas marcas e que claramente é subdesenvolvido.

Dos três filmes exibidos pelo MUBI, não há dúvidas que Mélo é o melhor. E, ao mesmo tempo, é o menos ambicioso e se destaca pela simplicidade da linguagem que permite ao extremo bom gosto estético do diretor tomar o controle da obra.

Esse é um filme que parte de um texto teatral muito, muito forte (existe uma certa carta lida em um ponto que é espetacular). E que se desenvolve próximo a uma peça, em cenários pequenos e fechados, sempre com dois ou três personagens dialogando.

Uma situação assim é prato cheio para que um cineasta como Resnais se destaque com luz, com jogos de olhares, com atuação, com mise en-scène. Faz Resnais com que cada enquadramento tenha um claro propósito.

Na narrativa, claro que nem tudo é simplicidade: Resnais brinca desde o título do filme com o gênero melodrama, cria personagens que são caricaturas na medida certa e usa de elipses de tempo para que a estrutura funcione. O início e o fim são as melhores partes, o meio não tem o mesmo impacto.

Mas Mélo é, sem dúvidas, uma peça fundamental na cinematografia do cineasta.

Meu Tio da América (Alain Resnais, 1980) ***
A Vida é um Romance (Alain Resnais, 1983) ***
Mélo (Alain Resnais, 1986) ****

Falei durante meses sobre a obra de Louis Malle por aqui, também graças à retrospectiva feita pelo MUBI. Ela finalmente chegou ao fim, sem que aquele que talvez seja o filme mais famoso do diretor, Adeus, Meninos, pudesse ficar de fora. Aproveitei para revê-lo depois de muitos anos.

Adeus, Meninos é uma história auto-biográfica que parece singela a princípio, contando o dia a dia de uma escola interna para garotos na França durante a Segunda Guerra Mundial. As aventuras e desventuras tradicionais da infância, porém, dão espaço à ameaça nazista que se aproxima.

Malle acerta ao retratar o cotidiano morno das crianças, no qual quase nada acontece, enquanto vai dando as dicas da aproximação da tragédia. E outra opção que funciona muito bem é a de quase não usar cores quentes no filme, sempre em uma mistura das boinas e dos cabelos pretos e azuis com a neve branca. É sobre tristeza, é sobre o holocausto visto por olhos infantis.

Adeus, Meninos, de Louis Malle

Quando tudo explode, explode de verdade. A cena final é poderosíssima e esse é o melhor filme de Louis Malle.

Outro cineasta que vem tendo muitos filmes disponíveis no MUBI é Jacques Becker, e Os Amantes de Montparnasse, sobre os últimos dias do pintor Amadeo Modigliani, também é repleto de tristeza. Essa é uma obra que ele assumiu após a morte de Max Ophüls.

Eu sempre reclamo de biografias que criam elementos dramáticos apenas para causar impacto emocional no público, mas Becker parece ter até escolhido um caminho contrário aqui, já que apesar de triste, o filme ainda não é nem de longe tão pesado como a vida de Modigliani, e os fatos que foram ocultados deixam o impacto depressivo um pouco mais suave.

Em contraponto, o filme cai em outro artifício hollywoodiano do qual eu sempre reclamo: a criação de personagem caricato, ou a transformação de uma figura real em caricatura, apenas para ser vilão. Essa também é uma manipulação emocional da pior espécie e que infelizmente já era usada até nessa época.

Becker faz uma direção muito competente e o final, assim como de Adeus, Meninos, é uma explosão de tristeza. Mas o filme poderia ter tomado escolhas narrativas muito melhores.

Le Revélateur é um filme experimental de Philippe Garrel (pai de Louis) que busca trazer um cinema em estado absolutamente primitivo, sem falas, apenas com três atores e suas linguagens corporais e interações com o cenário. Usa até mesmo 18 frames por segundo, típico dos primórdios da sétima arte, para se aproximar mais desse efeito.

Tem momentos interessantíssimos, principalmente no início, e é uma aula de iluminação. A todo momento, consegue produzir com seu preto e branco extremo imagens que são de cair o queixo, principalmente pela qualidade do uso da luz.

Mas tanta experimentação acaba cansando rápido, e o filme teria muito mais espaço enquanto curta. Com 65 minutos, torna-se quase impossível manter a atenção o tempo todo.

Adeus, Meninos (Louis Malle, 1987) ****
Os Amantes de Montparnasse (Jacques Becker, 1958) ***
Le Revélateur (Philippe Garrel, 1968) ***

No último texto sobre os filmes vistos em junho, o foco será no cinema brasileiro e na declaração de amor de Agnès Varda ao cinema e a Jacques Demy!

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Carlos Massari
Revista Subjetiva

Jornalista, roteirista, escritor. Falo aqui sobre cinema e os esportes que não falo em outros lugares.