Os filmes de junho, parte 3: Declaração de amor ao cinema de Varda, tesouros nacionais

Carlos Massari
Revista Subjetiva
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9 min readAug 4, 2020
Pixote — A Lei do Mais Fraco, de Héctor Babenco

É difícil entender de onde vem o amor ao cinema. Eu me lembro de assistir a filmes ainda muito novo, com cerca de cinco ou seis anos de idade, e de nessa mesma época produzir “roteiros” para brincar com meus dinossauros.

Na minha cabeça infantil, cada “parte” de um filme exibido na televisão tinha em média cinco minutos. Então, eu cronometrava a ação com os dinossauros em seis blocos dessa mesma duração, assim como a Globo ou a Bandeirantes faziam. Às vezes, havia até mesmo um roteiro de verdade, escrito ou desenhado em folhas de caderno.

Mais tarde, aos oito anos, tivemos nosso primeiro aparelho de videocassete em casa. Eu era quem mais fazia questão de ir à locadora duas ou três vezes por semana, e mesmo sem entender nada já listava nos mesmos cadernos os filmes que tinha visto. E com notas!

Claro que ser uma criança solitária colaborava muito com isso, mas como eu li esses dias, cinefilia é uma atividade solitária. Hoje eu entendo que esse amor sempre fez parte da minha essência, e mesmo em anos recentes, nos quais eu tive um pequeno afastamento dos atos de asssistir a filmes e de pensar o cinema, tudo isso ainda continuava lá no fundo, escondido em algum lugar. Felizmente, está totalmente liberto de novo.

Esse é o terceiro texto sobre os filmes assistidos em junho de 2020. Você pode ler o primeiro, que teve foco em lançamentos recentes como Destacamento Blood e A Vastidão da Noite, clicando aqui, e o segundo com clássicos franceses e poloneses, por aqui.

Para acompanhar análises mais complexas sobre as obras, é só me seguir no Letterboxd.

Melhor filme visto no mês (contando revisões): Possessão, de Andrzej Zulawski
Melhor filme visto pela primeira vez no mês: Jacquot de Nantes, de Agnès Varda.
Pior filme visto no mês: Take me Somewhere Nice, de Ena Sendijarevic

Agnès Varda foi uma das grandes cineastas da história. Jacques Demy foi um grande criador de musicais, um gênero que ajudou a remoldar com uma cara mais moderna. Ambos tinham enorme amor ao cinema. E eram um casal, que passou vinte e oito anos junto.

Em 1990, Demy estava próximo à morte e, como declaração de amor, Varda decidiu fazer um filme. Ela retratou a infância de seu amado e a descoberta dele da arte que os uniria: o cinema.

A identificação de quem já amava o cinema enquanto criança com essa história é imediata. Como pessoas solitárias, os cinéfilos sabem se reconhecer. E eles se encontram, reproduzem hábitos, modos de agir, modos de serem muito estranhos.

Jacquot de Nantes, de Jacques Demy

Jacquot de Nantes é um dos filmes mais românticos que já foram feitos não só por ser de esposa para marido, mas também mergulhar dentro de uma paixão em comum dos dois, por resgatar uma biografia, por ter uma capacidade única de trazer a ligação entre duas pessoas através do meio que fez com que eles estivessem juntos.

É incrível imaginar que uma pessoa pode olhar para outra, por quem nutre profundo amor, e fazer uma recriação tão bonita da infância, das primeiras descobertas, do começo da trajetória que levou esse alguém até ela. E é isso que faz de Jacquot de Nantes tão bonito, tão delicado.

Existe uma ternura que transborda da tela nesse filme. Ele é uma obra especial para quem ama cinema.

Jacquot de Nantes (Agnès Varda, 1991) ****1/2

Continuando a tendência de reservar um grande espaço para filmes brasileiros, consegui encaixar espaço para três em junho. Um deles, a revisão de uma das mais pesadas obras já feitas no nosso país.

Pixote — A Lei do Mais Fraco é brutalidade e desesperança. Retrata o universo de moradores de rua e de crianças internadas em um reformatório onde só há violência. É repleto de temas espinhosos e desconfortáveis como prostituição infantil, abandono e violência.

Existe uma tendência no cinema atual que eu chamo de pornô de sofrimento, filmes que usam seus protagonistas como alvo de tudo de ruim que o mundo tem a oferecer, sem respiro. E uma história sobre crianças em um reformatório brutal durante a ditadura militar, mesmo que filmada em 1981, antes de tal tendência, tinha tudo para ir em direção a esse caminho se em mãos inábeis.

Mas Héctor Babenco conseguiu fazer de Pixote pura poesia. Porque esse não é um filme sobre o sofrimento dessas crianças, nem sobre como o mundo é brutal. Tais características estão lá, inerentes a ele. Na verdade, o que se destaca é a beleza dos pequenos momentos.

Pixote é um filme enorme por conseguir tirar momentos belíssimos dessa história horrível e corriqueira. Momentos de ternura genuína, de sonhos, de ilusões. Momentos que mostram que aqueles personagens são gente como a gente, mas inseridos em uma realidade desgraçada.

Com atuações memoráveis de Fernando Ramos da Silva e Marília Pêra, Pixote é obra indispensável e fundamental do cinema brasileiro.

Muito menos conhecido é Tocaia no Asfalto, de 1962, um noir abrasileirado, um deleite de para fãs desse gênero.

Aqui vai uma história curiosa: No meu último ano da faculdade, precisando fazer um curta-metragem como um dos TCCs, eu estava apaixonado pelo noir. Obviamente, escrevi um com características de pastiche, puxando quase todos os elementos mais comuns que se ligam ao gênero.

Meu orientador disse que seria muito mais interessante se eu fizesse um noir brasileiro, trocando os bares com personagens de chapéu bebendo whisky e ouvindo jazz pelos nossos botecos de beira de estrada, com forró e cachaça. Teimoso, eu insisti na ideia original. E claro que não poderia estar mais errado.

Tocaia no Asfalto emula por muito tempo esse clima de noir brasileiro. Retrata os cantos obscuros e ao mesmo tempo conhecidos do país: botecos com mesa de sinuca e cerveja de garrafa, zonas de meretrício, roda de capoeira, religiosidade extrema ligada à criminalidade.

Tocaia no Asfalto, de Roberto Pires

Enquanto segue esse caminho, é um filme incrível, também um tesouro da nossa cinematografia. O único senão é que ele abandona um pouco o clima andarilho brasileiro para adentrar em uma complexa rede política baiana, e isso faz com que caia muito em qualidade e interesse.

Se fosse mais entregue à brasilidade ligada ao crime, Tocaia no Asfalto seria uma obra-prima. Mas como divide disso as atenções com uma trama política genérica, acaba não sendo tão incrível como poderia.

As Filhas do Fogo, de Walter Hugo Khouri, é um filme difícil de se encontrar. Está disponível no Youtube, mas em uma cópia de terrível qualidade, claramente gravada de uma transmissão da TV Bandeirantes da década de 1990.

Essa é uma história mística e estranha, com duas amantes que se isolam da civilização em uma enorme casa em Gramado, mas aos poucos passam a ser acometidas por eventos sobrenaturais.

Assim como Tocaia no Asfalto, vive seus melhores momentos quando se entrega ao cinema de gênero, no caso, o terror lúdico, com um quê de fantasmagoria. E também sofre do mesmo problema, por ter muita coisa que parece simplesmente filler, principalmente uma história envolvendo uma empregada e um forasteiro.

Eu gosto do tom fantasmagórico, que é auxiliado por uma trilha sonora com cara de deslocada e por atuações fora do tom, remetendo quase que a um teatro medieval. Mas é um filme que perde tempo demais com coisas pouco importantes e que não deixa seu clima principal o dominar até perto de seus últimos momentos.

Pixote — A Lei do Mais Fraco (Héctor Babenco, 1981) ****1/2
Tocaia no Asfalto (Roberto Pires, 1962) ****
As Filhas do Fogo (Walter Hugo Khouri, 1978) ***

Já que falei em teatro, é hora de nos aproximarmos muito dele: Antígona, da dupla Jean-Marie Straub e Danièle Huillet, é uma encenação filmada da obra de Sófocles.

É um cinema acadêmico, pensado para uma bolha de cinéfilos muito específica. E eu entendo o quanto ele faz sentido quando paramos para pensá-lo: um filme de guerra minimalista, no qual há apenas palavra e quase nenhum movimento, o anti-Apocalypse Now, até mesmo usando Wagner na trilha sonora, a mistura do texto de Sófocles com a releitura de Brecht, posando como manifesto anti-tirano atemporal.

Porém, não deixa de ser uma experiência muito difícil: São duas horas de câmera estática e de falas declamadas, de personagens estacionados e de minimalismo extremo. Por mais que faça muito sentido enquanto pensado, enquanto reflexão sobre determinado tipo de cinema, não deixa de ser uma obra de alcance limitadíssimo, provavelmente apenas para essa própria comunidade cinéfila que beira um academicismo.

Antígona (Jean-Marie Straub e Danièle Huillet, 1992) ***

Junho também foi o mês de assistir a duas animações, uma bastante simpática e agradável, outra mais densa, porém problemática.

O Castelo Animado é mais um filme do mestre Hayao Miyazaki que tem carisma de sobra. Traz personagens muito legais e que dialogam com o público, um universo lúdico extremamente satisfatório, ação e diversão para crianças e para cinéfilos chatos.

O Castelo Animado, de Hayao Miyazaki

Acho impressionante como os filmes do Miyazaki retratam uma modernidade opressora que é ao mesmo tempo bonita e feia, com trens que deixam rastros de fumaça, com aviões deformados, com castelos grotescos que se movem. As cidades fazem parte de um universo muito próprio e causam uma vontade de conhecê-las, mas também uma repulsa.

Pacifismo e modernização são os temas principais de O Castelo Animado, o que faz com que ele não seja tão profundo, nem tão onírico como seu antecessor, A Viagem de Chihiro. Ele fica mais limitado a um universo que não se distancia tanto de animações que têm um campo de imaginação que poderia ser mais expandido.

Muito divertido, mas abaixo do que esperamos de Miyazaki.

Planeta Fantástico, por sua vez, é um clássico francês da década de 1970 que retrata um mundo habitado por figuras ultra-inteligentes que escravizam os seres humanos e os tratam como animais de estimação.

Apesar de ser uma ideia interessante, tem problemas demais no desenvolvimento. Existe uma inventividade enorme no visual, na criação dos animais estranhos, da geografia do planeta, do dia a dia dos seres super evoluídos. E não existe nenhuma inventividade na trama, que é extremamente óbvia.

Acho triste que a trama tão óbvia e tão quadrada serve até mesmo como freio de mão para a inventividade visual, já que acaba a forçando a ficar em lugares mais comuns do que deveria. Senti falta de mais liberdade, de mais capacidade de fluidez em Planeta Fantástico.

O Castelo Animado (Hayao Miyazaki, 2004) ***1/2
Planeta Fantástico (René Laloux, 1973) **1/2

Por fim, uma revisão de um filme de um mestre do suspense que envelheceu extremamente mal: Marnie — Confissões de uma Ladra.

Como tudo o que Alfred Hitchcock fez, Marnie tem grandes momentos. Há uma cena de fuga espetacular durante um roubo, há uma perseguição de cavalos lindamente filmada. O ritmo funciona, o filme é muito capaz de prender a atenção.

Infelizmente, é muito datado na forma como lida com relações entre homens e mulheres. Logo no início, um dos personagens principais conta um encontro que teve com um jaguarundi, um animal selvagem, e como se expôs ao perigo até conseguir ganhar a confiança do bicho. Como notaremos rapidamente, isso é uma metáfora para a sua relação com a protagonista.

Por mais que haja qualidade cinematográfica de sobra em Marnie, é difícil lidar em 2020 com uma obra que iguala uma mulher com problemas psicológicos a um animal selvagem e que desenha toda a sua trama para que ela possa ser salva por um homem — que chega até mesmo a estuprá-la em determinado momento.

Sou contra cancelamento de filmes — afinal, eles retratam exatamente como pensavam as pessoas em determinadas épocas. Marnie deve, sim, ser assistido como parte da filmografia de um dos grandes gênios da história do cinema. Mas também pode ser encontrado pelos olhos dos nossos tempos.

Marnie — Confissões de uma Ladra (Alfred Hitchcock, 1964) *** — Revisão

Não houve diminuição do ritmo de filmes em julho, e logo novos textos sobre obras interessantíssimas sairão do forno! Até lá!

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Carlos Massari
Revista Subjetiva

Jornalista, roteirista, escritor. Falo aqui sobre cinema e os esportes que não falo em outros lugares.