Os filmes de maio, parte 1: O cinema revolucionário e o cinema do terceiro mundo

Carlos Massari
Revista Subjetiva
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13 min readJun 9, 2020
Glauber Rocha em O Vento do Leste, do Grupo Dziga Vertov

Nós vivemos tempos terríveis. Se você está no Brasil de 2020, provavelmente sabe que estamos passando por uma pandemia que parece ainda não ter chegado ao pico, mas nosso presidente não faz nada para combatê-la e, na verdade, até incentiva ações capazes de tirá-la ainda mais de controle. Pior ainda, se aproxima cada vez mais do fascismo, chegando ao ponto de repetir frases de Benito Mussolini e assumindo de vez o seu lado ultra autoritário (que sempre soubemos que existia).

Perdido no meio de tudo isso, está o desprezo absoluto desse governo pela arte, pela cultura, pela ciência, pela educação e pelo conhecimento. Na última semana de maio, surgiu a bombástica notícia de que há uma proposta para fechar a Cinemateca Brasileira, uma instituição de valor inestimável.

O desprezo às artes e às ciências humanas é um projeto de longa data da direita brasileira: sabemos que a ditadura militar criou matérias como educação moral e cívica e retirou do currículo filosofia e sociologia. História e geografia, por sua vez, foram transformadas em plena decoreba. O ato de pensar não poderia existir na escola, era necessário formar apenas robôs que reproduzem a mesma maneira obtusa de ver o mundo.

Porém, isso demonstra também uma grande falta de visão. A alta cúpula nazista, por exemplo, sabia do valor do cinema e investiu muito nele, contratando Leni Riefenstahl para ser a cineasta oficial do regime.

Felizmente, o cinema tem muito mais obras marcantes na esquerda do que na direita. Quase sempre eu noto aqui o quanto grandes filmes têm mensagens que talvez até possam ser denominadas comunistas. E a discussão sobre a libertação do povo através da sétima arte é bastante antiga, como veremos no decorrer desse texto.

Maio foi um mês com um ótimo ritmo de filmes vistos: foram 29, um recorde desde quando eu comecei a fazer esse tipo de marcação. Mais uma vez, serão três textos trazendo um pouco mais sobre cada uma dessas obras. Nesse primeiro, o foco é o cinema revolucionário e o cinema do terceiro mundo.

Melhor filme visto no mês: A Tortura do Medo, de Michael Powell.
Pior filme visto no mês: Grave, de Julia Ducournau.

No final da década de 1960, o mundo passava por profundas transformações. Era uma época com muitas ditaduras financiadas pelos Estados Unidos espalhadas pelo mundo, com guerras, com disputas intensas. Os direitos dos negros e das mulheres também estavam em pauta. Pensar em revolução era algo comum e necessário em muitos e muitos lugares.

Jean-Luc Godard já era um cineasta mais do que consagrado. Se seus primeiros filmes fizeram sucesso comercial e eram sim bastante divertidos, ele foi cada vez mais se fechando e se tornando acessível apenas para acadêmicos da área ou estudiosos.

Em 1968, Godard formou com outros cineastas o chamado Grupo Dziga Vertov, cuja intenção era formar um novo cinema, que romperia com a arte burguesa que existia até então e teria um propósito totalmente marxista e revolucionário. Como isso seria feito? Bom, essa é uma questão que nem os fundadores sabiam responder.

Um dos filmes mais famosos desse grupo é O Vento do Leste, lançado em 1970. Nele, a ideia central é a busca por esse tal cinema revolucionário: o que ele seria? Como fazer com que ele fosse relevante? Como dissociá-lo totalmente da arte burguesa?

O problema é que a grande maioria das ideias de O Vento do Leste são ruins. Ele pensa em divorciar imagem e som, em discutir filosofia e história por horas, em citar autores e mais autores, em viajar pelo próprio cinema, em desconstruir totalmente a linguagem. Mas, afinal, que tipo de cinema revolucionário é esse? Para quem é esse cinema revolucionário?

E aqui entra um ponto interessantíssimo: Godard convidou Glauber Rocha para participar do grupo, e o cineasta brasileiro até está em uma cena (muito boa) de O Vento do Leste.

Mas sabe o que Glauber tinha a dizer sobre isso? “Godard me critica dizendo que tenho mentalidade de produtor, depois me pede para ajudá-lo a destruir o cinema, aí eu digo para ele que estou em outra, que meu negócio é construir o cinema no Brasil e no Terceiro Mundo, então ele me pede para fazer um papel no filme e depois me pergunta se quero filmar um plano do Vento do leste e eu que sou malandro e tenho desconfiômetro digo para ele maneirar pois estou ali apenas na paquera e não sou gaiato para me meter no folclore coletivo dos gigolôs do inesquecível maio francês”.

Talvez por conta da presença de Glauber, O Vento do Leste se torna um filme cada vez mais auto-consciente de seus defeitos, de sua mentalidade colonizadora, de sua falta de penetração na classe operária e no então chamado terceiro mundo. E sabe também que o brasileiro estava mais do que correto, que não era hora de destruir o cinema, mas sim de reconstruí-lo, de achar linguagens que fossem populares, acessíveis, e aí sim, revolucionárias.

Em Aqui e em Qualquer Lugar, filmado em 1970 mas lançado apenas anos depois, o Grupo Dziga Vertov se depara com uma situação ainda mais radical: os cineastas foram à Palestina fazer um filme sobre a revolução armada que estava acontecendo por lá, mas pouco após voltarem para a França, ficaram sabendo que todos os personagens estavam mortos.

O filme ficou engavetado por seis anos até que Godard e sua esposa Anne-Marie Miéville decidissem transformá-lo em uma reflexão sobre esse olhar colonizador, sobre Por que fazer revolução lá, e não aqui?, sobre o fetichismo tão europeu de querer influenciar o que acontece no mundo pobre, mas não olhar para as suas próprias mazelas.

Tanto O Vento do Leste como Aqui e em Qualquer Lugar misturam alguns momentos inspirados, principalmente quando a auto-consciência aflora, com uma enorme enrolação que parece aula na graduação de professor que não fala nada com nada. São radicais demais, inacessíveis demais, longe do que se pode colocar dentro de uma caixa da nossa crítica.

Mas são dois filmes que miraram uma solução para o cinema revolucionário e não chegaram a lugar nenhum. E sabem disso. Com a visão eurocentrada e olhar entitulado colonizador sendo os principais culpados.

Pior, quando vemos o cinema soviético nós percebemos que a busca pelo tal cinema revolucionário era uma pura punhetação, uma falta de se colocar no lugar da classe operária, de descer do pedestal de artista e acadêmico. O cinema revolucionário já estava ali, dado de bandeja, com muito pouco a se acrescentar.

Terra, de Alexander Dovzhenko

Esteve no MUBI em maio o filme Terra, de Alexander Dovzhenko, mais um que impressiona pela qualidade de sua iconografia, pela facilidade de falar sobre revolução, sobre a tomada de poder pelo povo, pelo valor da coletividade e dos operários.

Dovzhenko filma com uma maestria ímpar o processo de produção de alimentos, depois o povo sendo oprimido, depois o povo tomando o seu lugar, depois os discursos sobre a grandeza soviética. É uma narrativa simples, mas estruturada de forma que possui enorme impacto. Que fala diretamente com o povo, que incita a revolta, o sentimento de indignação, de pertencimento, de luta.

Godard, ótimo cineasta que é, poderia ter se apropriado da iconografia e da linguagem soviética e talvez tido muito mais impacto com seu Grupo Dziga Vertov. Preferiu ser incompreensível, seguir um caminho errado. Glauber Rocha alertou e até demonstrou, inclusive verbalmente, em O Vento do Leste, mas de nada adiantou.

O Vento do Leste (Grupo Dziga Vertov, 1970) sem nota
Aqui e em Qualquer Lugar (Jean-Luc Godard e Anne-Marie Miéville, 1976) sem nota
Terra (Alexander Dovzhenko, 1930) ****

Enquanto isso, fora das cinematografias dominantes sempre houve uma busca por identidade própria, por linguagens que refletissem as características de seus países, por um olhar que sai de dentro, e não vem de fora.

No Brasil, o cinema novo foi excelente ao apresentar essas respostas. Glauber Rocha tem um papel grande nisso, mas temos muitos grandes cineastas na nossa história, todos com seus próprios olhares para o Brasil e suas particularidades.

Eu falei em um dos textos passados sobre A Doce Vida, clássico italiano de Federico Fellini. Em sete partes com poucas conexões entre elas, o filme narra a jornada de um homem pela alta sociedade italiana, por pessoas podres e vazias por dentro, que vivem em busca de mais e mais prazer, mas ao mesmo tempo vêem a felicidade totalmente inalcançável.

Neville D’Almeida, cineasta do submundo, não esconde em nada a sua inspiração ao fazer Rio Babilônia: a sinopse é praticamente a mesma, existe até a icônica figura da estrela internacional dando coletiva de imprensa e a estrutura em sete capítulos se repete.

Só que Rio Babilônia é Brasil. Quer alta sociedade podre? Então vamos para uma espiral de sexo, drogas, prostituição, festas que beiram o surrealismo, assaltos, violência. Vamos pegar a nata carioca, empresários, políticos e socialaites, e colocá-la no centro de um furacão que não para nunca a sua destruição.

Eram comuns nos anos 1920 filmes chamados de sinfonias urbanas, com cineastas desfilando as câmeras pelas grandes cidades, mostrando as metrópoles. Rio Babilônia, exatamente nesse sentido, é a sinfonia do caos. Não tem medo de nada, só segue cada vez mais e mais fundo no seu universo louco e decadente.

No meio de tudo isso, assim como em A Doce Vida, prevalece um enorme sentimento de tristeza, de impotência, de vazio. É um filme angustiante dentro de cada uma das suas cenas intensas.

Trinta e cinco anos depois, Neville D’Almeida voltou ao mesmo tema, agora focando na juventude, e fez A Frente Fria que a Chuva Traz, sobre um grupo de jovens muito ricos que aluga uma cobertura na favela para dar festas cheias de drogas e de sexo.

A Frente Fria que a Chuva Traz, de Neville D’Almeida

O problema é que aqui não existe a mesma anarquia, nem na estrutura, nem no conteúdo. O filme apresenta seus personagens e os segue sempre da mesma maneira, sem qualquer surpresa: os playboys escrotos são playboys escrotos, os outsiders são outsiders. Não existe nem como o público sentir tristeza com tudo o que é mostrado.

É um filme com ideias inteligentes, como o remix de “Summer” e “Sou Foda” que toca no início, metáfora para a apropriação que sempre acontece da cultura do gueto pela classe alta que gosta de dançar funk, mas não quer nem chegar perto dos negros. E é um filme que tem a coragem de colocar atriz global (Bruna Linzmeyer está ótima aqui) com a cara no chão de um banheiro sujo, doida de heroína, falando sobre as rolas que chupou em troca de drogas.

Mas a elite não mergulha nesse caos, ela simplesmente existe, limpinha, intocada em cima da laje. No máximo, mostra os peitos, no máximo, se depila no banheiro esperando transar com o cantor sertanejo. Toda a anarquia que faz de Rio Babilônia ótimo falta para A Frente Fria que a Chuva Traz.

Sobre os tempos da ditadura, mas feito com um olhar mais atual é Deslembro, filme praticamente autobiográfico da diretora Flávia Castro. Conta a história de uma menina adolescente que, no momento na anistia, pode voltar da França para o Brasil com sua mãe. Aqui, passa a se lembrar cada vez mais de seu pai assassinado pelos militares.

Também é um filme que recebeu críticas por ser limpo demais, por não mostrar toda a sujeira da ditadura. Mas são críticas das quais eu discordo: esse não é o foco, e sim a descoberta, o reencontro com as raízes, o olhar para um passado empurrado para debaixo do tapete. Ele é ótimo em relatar os traumas e o momento pós-violência.

Ganha força por ser um filme cheio de ternura. Em Deslembro, você percebe que os personagens estão ali uns para os outros. Até quando brigam, eles sabem que precisam estar unidos.

Funciona por unir essa abordagem carinhosa com a discussão de recuperação da memória, de reencontro com si mesmo e, a partir daí, de descoberta. É um filme bastante bonito sobre as cicatrizes da ditadura e sobre as forças para continuar seguindo um caminho.

Rio Babilônia (Neville D’Almeida, 1981) ****1/2
A Frente Fria que a Chuva Traz (Neville D’Almeida, 2015) ***
Deslembro (Flávia Castro, 2018) ****

É interessante notar como o cinema de longe dos centros de maior influência também pode ter uma mentalidade bastante colonizada ou, dependendo da situação, colonizadora. Duas obras sul-americanas, o argentino Zama, de Lucrecia Martel, e o chileno Ema, de Pablo Larraín, se enquadram respectivamente nessas descrições.

Lucrecia Martel é a cineasta argentina mais importante da atualidade, responsável por filmes como O Pântano e A Menina Santa. Em Zama, ela busca uma história sobre um oficial espanhol trabalhando na Argentina durante a época colonial. O grande problema dessa obra, que a deixa abaixo do restante da carreira da diretora, é o erro de tom.

Zama, de Lucrecia Martel

Zama tem durante quase toda a sua metragem um ritmo muito europeu, uma estética fria, pouco fluente, algo que se parece mais com um filme dinamarquês do que argentino. Como eu citei ao falar sobre Rio Babilônia, a busca por um cinema latino passa pelo calor, pela fluidez, pela capacidade de expressar características mais nossas do que deles.

É estranho que essa seja uma crítica a ser feita para um filme sobre colonização e, mais do que isso, para um filme crítico à colonização. Mas a estética engessada, que eventualmente pode sim ser ótima, quando colocada na América do Sul do século XVII gera mais tédio do que envolvimento.

O curioso é que em sua segunda metade o filme se transforma em uma espécie de aventura pela mata e aí sim, ganha em coragem e em fluidez, alcança um tom latino, anárquico, com força nas cores e nos enquadramentos. Zama mostra então o filme que poderia ter sido se seguisse esse caminho desde o início.

Por outro lado, o chileno Ema é extremamente problemático. Ele se apropria de um ritmo periférico para construção de uma mulher branca e nunca traz qualquer tipo de crítica a essa situação.

Ambientado no Chile, fala sobre um casal que decide devolver o filho adotado após ele causar um grande acidente. O homem é professor de dança, a mulher é dançarina em seu grupo e apaixonada por reggaeton. Eles estão se divorciando.

Durante todo o filme, essa personagem dança reggaeton com suas amigas. Todas brancas. A princípio, não me atentei para isso, mas li diversos comentários apontando para o fato que aquilo que elas dançam é uma forma limpa, socialmente aceita desse ritmo latino normalmente associado aos negros e aos guetos.

Se fosse um filme brasileiro, Ema nos traria uma mulher branca de classe média que dança funk limpinho com suas amigas enquanto transa com várias pessoas para mostrar o quanto é livre sexualmente e tenta ajeitar sua vida a partir de ter devolvido uma criança adotada manipulando muitas outras pessoas que nada têm a ver com isso. Só faltou o remix de “Summer” e “Sou Foda”. Problemático demais.

Mas além dessa casca de gosto muito duvidoso, o filme também peca demais no roteiro. Ele chega ao ponto de precisar de uma cena ao final com a sua protagonista explicando as motivações de suas ações.

Se você precisa desse tipo de explicação, seu roteiro tem sérios problemas.

Entre tantas imagens supostamente bonitas de sexo e de coisas pegando fogo, Ema é tão superficial e problemático como a sua protagonista. É quase como se a gente tivesse que torcer por um dos personagens de A Frente Fria que a Chuva Traz em meio a vários enquadramentos “bem pensados” que no fundo não dizem absolutamente nada.

Zama (Lucrecia Martel, 2017) **1/2
Ema (Pablo Larraín, 2019) *1/2

Para finalizar esse texto, vamos a dois outros lugares que sofreram com a colonização até o século XX, mas depois tomaram caminhos bastante diferentes: Índia e Cuba.

O grande cinasta indiano Satyajit Ray fez em 1984 A Casa e o Mundo, um filme sobre as tensões da época pré-separação de Bengala no início do século XX. É baseado em um livro e conta com muito do estilo do diretor, um cinema baseado em diálogos, em rigor estético, em um ritmo calmo e sereno, mas que parece conter tanta coisa dentro de si.

A Casa e o Mundo, de Satyajit Ray

A Casa e o Mundo, como o nome diz, é uma dicotomia: No primeiro lado, o clima é pacífico, mesmo com um jogo de sedução e um triângulo amoroso que se desenvolve. Vemos o olhar para a liberdade feminina, o combate aos estrangeirismos e essa vida levada por uma aristocracia que é tão distante do povo.

No mundo, o que há é a guerra, a falta de conforto, a luta por uma situação melhor. Amigos dentro de casa são inimigos fora dele.

É um filme importante para entender a história da Índia e as criações do Paquistão e de Bangladesh, mas que peca por ser longo demais e por nunca ir direto ao ponto. Menor dentro da filmografia de Ray, mas ainda bastante válido.

A Morte de um Burocrata, do cubano Tomás Gutierrez Alea, fica perdido em um meio termo entre sátira e loucura kafkaniana, sem jamais ir o suficiente para nenhuma das duas pontas.

A princípio, é uma crítica à burocracia do comunismo cubano, porém as situações que apresenta nesse formato meio-satírico-meio-kafkaniano nunca chegam a ser impossíveis ou exageradas. Na verdade, me vi em uma encruzilhada similar na semana passada enquanto tentava me tornar apto para emitir nota fiscal como pessoa física.

São poucos os momentos inspirados e realmente engraçados: A maior parte fica preza a um marasmo que não gera nem riso, nem incômodo, o que resulta em um filme aquém do esperado.

Curioso, porém, que é um filme crítico a um aspecto do comunismo cubano, mas que não passou por qualquer tipo de censura ou proibição. Na mesma época, a ditadura militar brasileira mutilava as nossas artes. Que diferença, não?

A Casa e o Mundo (Satyajit Ray, 1984) ***
A Morte de um Burocrata (Tomás Gutierrez Allea, 1966) **1/2

Falei sobre dez filmes, ainda faltam dezenove. Volto em breve, com uma segunda parte bastante especial: será sobre o cinema de terror e as mudanças pelas quais ele vem passando. Se você quiser sempre ter acesso às minhas críticas ou pensamentos sobre cinema antes de lê-las aqui, pode me seguir no Letterboxd!

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Carlos Massari
Revista Subjetiva

Jornalista, roteirista, escritor. Falo aqui sobre cinema e os esportes que não falo em outros lugares.