Os filmes de maio, parte 3: De Kieslowski a comédia romântica da Netflix

Carlos Massari
Revista Subjetiva
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10 min readJun 28, 2020
Yesterday, de Danny Boyle

Caro(a) leitor(a), não sei se você sofre ou não do mal da cinefilia. Se quando você decide assistir a um filme, passa pelo momento terrível de pensar na enorme quantidade de possibilidades, nas milhares e milhares de obras que a sétima arte já produziu e nunca serão vistas pelos seus olhos. Caso esteja isento(a), acredite, tudo isso pode gerar grande dor e sofrimento!

Ok, é verdade que eu posso ter exagerado um pouco na descrição de ‘dor e sofrimento’, mas vale por efeito dramático. O fato é que escolher ao que assistir é muito difícil e, por isso, eu muitas vezes prefiro deixar as decisões para o acaso. Muito do que eu vejo acaba sendo fruto de um sorteio.

Já fazia tempo que eu tinha o plano de assistir às filmografias completas de diretores, em ordem, do primeiro ao último filme. Acompanhar a evolução, a repetição de temas, o amadurecimento temático e estético. Mas com tantos mestres, por qual começar? Apenas o bom e velho sorteio poderia resolver a dúvida.

A força do acaso me levou à obra do diretor polonês Krzysztof Kieslowski, de quem eu já tinha visto muitos anos atrás os principais filmes, sobretudo a famosíssima trilogia das cores. Posso dizer que foi ao mesmo tempo um resultado muito bom e muito ruim.

Muito bom porque Kieslowski é um cineasta que passa por uma transformação absurda durante a sua carreira. É legal demais observar a evolução, o domínio narrativo surgindo, a qualidade estética crescendo. Muito ruim porque estamos de quarentena, em um país terrível para se viver no momento, e os filmes do diretor polonês são, em resumo, “tudo o que existe é desespero” — até influenciaram diretamente meu primeiro parágrafo, como vocês podem perceber!

Esse texto é o terceiro sobre os filmes vistos em maio de 2020. Você pode clicar aqui para ler o primeiro, com foco no cinema revolucionário do grupo Dziga Vertov e no cinema do terceiro mundo, ou aqui para ir ao segundo, que falou principalmente sobre terror e noir.

Caso queira ler textos mais completos sobre esses filmes ou outras coisas que ando vendo, você pode me seguir no Letterboxd.

Melhor filme visto no mês: A Tortura do Medo, de Michael Powell.
Pior filme visto no mês: Grave, de Julia Ducournau.

Krzysztof Kieslowski nasceu na Polônia, em 1941. Não sabia o que queria fazer da vida na juventude: a princípio, estudou para ser bombeiro, mas desistiu ainda com 16 anos. Em 1957, entrou para a Escola de Técnicos de Teatro, desejando ser diretor de teatro. Foi assim que surgiu o seu caminho para o cinema.

O início da carreira de Kieslowski é marcado por muitos documentários, a maioria sobre o proleatiado polonês. Filmes curtos e duros sobre as pessoas que moviam as engrenagens do país. Os títulos, como “Princípios de Segurança e Higiene em uma Mina de Cobre”, “O Ponto de Vista de um Porteiro Noturno” e “Sete Mulheres de Diferentes Idades”, demonstram exatamente isso. Tais obras são quase impossíveis de serem encontradas.

Meu foco está nos longa-metragens de ficção, e por isso a primeira obra assistida foi Personel, de 1975. Kieslowski decidiu abandonar os documentários por sofrer cada vez mais interferência do governo, por ser obrigado a cortar partes de seus filmes e por até mesmo ver uma cena gravada ser usada como prova de um crime em um julgamento.

Os longas de ficção de Kieslowski têm sempre uma aura de desconfiança no ar, uma sensação de vigilância do estado que pode acabar com tudo a qualquer momento. A desesperança vem desse clima de opressão que envolve todas as coisas. Questões éticas também são presença marcante.

A Polônia foi provavelmente o país europeu que teve a pior experiência com o comunismo (hoje mesmo vi uma pesquisa mostrando que apenas os poloneses, dentre todos os povos da região, dizem que a vida melhorou após a queda). Ao vermos os filmes de Kieslowski, entendemos facilmente os porquês.

Personel é um filme simples ao extremo, com estética documental, sobre um jovem que começa a trabalhar como técnico de teatro — obviamente, é auto-biográfico. Aqui, Kieslowski ainda não demonstra grande capacidade nem estética, nem narrativa, mas já podemos ver características que permeariam toda a sua obra.

É um filme com excelentes diálogos, com um naturalismo cotidiano que funciona e, como veríamos a seguir, com dilemas éticos sendo expostos e ficando no centro de toda a trama. Está longe de ser uma maravilha, mas vale bastante como fator de curiosidade.

Em seguida, Kieslowski fez A Cicatriz, que traz ainda pouca evolução. É um filme com mais orçamento, com mais atores, com mais locações, mas ainda sem grande domínio de linguagem. O tema é a burocracia do estado polonês e os problemas que surgem durante a construção de uma indústria em uma pequena cidade. Mais uma vez, diálogos são os pontos fortes.

Em A Cicatriz, Kieslowski cria muitas sub-tramas e apresenta diversos personagens, só que quase nada se desenvolve. A impressão que fica é de que o cineasta ainda não tinha como controlar tanta ambição e foi engolido pelas suas próprias ideias. Temos um filme muito burocrático e pouco inspirado sobre burocracia como resultado, o que pode ser consideravelmente difícil de se assistir.

A Cicatriz, de Krzsztof Kieslowski

É só em seu terceiro filme, Amador, de 1979, que Kieslowski começa a mostrar um enorme talento. Vemos ali o cineasta que ele se tornaria.

Esse é o conto de um homem comum, trabalhador polonês, descobrindo o cinema e se apaixonando. Ele compra uma câmera para o nascimento de seu filho, mas começa a levá-la para todos os lugares. Aos poucos, filmar se torna a sua obssessão. Não é mais possível pensar em nada.

Novamente, existe aqui um pouco de tom auto-biográfico. Descobrir o cinema em um estado totalitário, que vigia cada passo de seus cidadãos e que censura tudo o que é produzido, é uma experiência diferente do que nós podemos conhecer das nossas vidas ou de outros filmes. Primeiro vem a câmera, depois vem a linguagem, depois vem a teoria — ordem contrária do que acontece na vida de um jovem cinéfilo brasileiro. E, ao mesmo tempo, existe a burocracia que esmaga.

Amador é já um filme com várias camadas: O amor pelo cinema, os dilemas éticos, a censura, a dificuldade de viver naquela Polônia. E marca a primeira vez que percebemos em Kieslowski um real talento estético: há muitas imagens belíssimas, coisa que se tornaria depois bastante comum.

Temos em Amador o nascimento de um grande cineasta. Em maio, foram só três Kieslowskis vistos, mas voltaremos ao polonês nos textos de junho!

Personel (Krzyzstof Kieslowski, 1975) ***
A Cicatriz (Krzyzstof Kieslowski, 1976) **1/2
Amador (Krzyzstof Kieslowski, 1979) ****

Usar sorteios e ser alguém disciplinado em seus métodos também traz sérios problemas: Eu sempre quis muito assistir a Falstaff — O Toque da Meia-noite, de Orson Welles, mas as forças do acaso nunca colaboravam. Em maio, finalmente chegou a hora disso acontecer.

Falstaff é um filme bastante peculiar. Welles usou praticamente o texto original de Shakespeare para contar a história de um velho beberrão, vagabundo e loroteiro que era grande amigo de um príncipe. Dentro da linguagem cinematográfica, acaba se transformando bastante em uma obra de nicho.

Orson Welles cria algumas cenas excepcionais, principalmente de batalha. Com pouco orçamento, nenhuma tecnologia e um número ridículo de figurantes, o que ele faz aqui é de dar inveja em Game of Thrones. Talento visual do mais alto patamar.

Há um turbilhão de emoções escondido dentro de toda a linguagem shakespeariana que às vezes difícil de ser entendida. Falstaff é engraçado e é triste, é bonito com sua história de amizade e de traição. Eu recomendo demais caso esse seja o tipo de coisa que te agrada. Também é importante mencionar o quanto Welles gostava desse personagem e o quanto fez questão de interpretá-lo e de levá-lo ao cinema por toda a sua carreira. Esse tipo de paixão vindo de um cineasta tão grande é algo lindo de se ver.

Falstaff — O Toque da Meia-Noite (Orson Welles, 1965) ****1/2

É claro que não vivemos de assistir só a filmes sobre dor e desespero. Eventualmente, passamos um longo tempo imersos nesse universo de cineastas cheios de pessimismo, mas logo voltamos em busca de um pouco de felicidade. Em maio, vi duas comédias românticas recentes, uma que fez sucesso nos cinemas, Yesterday, e uma lançada pela Netflix, Você nem Imagina, que é a bizarra tradução de The Half of It.

Yesterday, dirigido pelo famosinho Danny Boyle, parte de uma premissa muito criativa: E se todo registro da existência dos Beatles desaparecesse do mundo? Apenas o protagonista, um músico fracassado, lembra das canções. Obviamente, ele se aproveita disso.

O problema é que o filme toma um dos caminhos mais inexplicáveis do cinema recente: Em vez de focar nessa interessante premissa e explorá-la ao máximo, prefere deixá-la de pano de fundo para um romance entre dois personagens com pouquíssimo carisma e quase nenhuma química.

Ao abdicar de sua ideia original para ser só mais uma comédia romântica clichê e cheias de soluções fáceis, Yesterday joga fora também suas chances de ser um bom filme. Para piorar, Danny Boyle é incapaz há décadas de entregar um produto com alguma consistência visual, e mais uma vez fracassa.

Sobra só a tristeza de pensar o quanto o ponto de partida de Yesterday poderia ter rendido.

Você nem Imagina, por sua vez, ganhou pontos e fama na Netflix pela carta da representatividade — é raro que o cinema norte-americano coloque mulheres asiáticas e LGBT como protagonistas. Porém, como muitas pessoas desse grupo apontaram em seus comentários, representatividade em um filme ruim não serve de nada.

Dirigido por Alice Wu, o filme sai em vantagem em relação a Yesterday por ter personagens muito mais interessantes. Eu queria saber mais sobre eles, e queria continuar conhecendo suas trajetórias (mesmo havendo alguns deslizes nesse sentido — há uma mudança abrupta de opinião de um dos protagonistas perto do final que ficou absurdamente forçada). Ficou até uma sensação de final incompleto na obra.

Você nem Imagina, de Alice Wu

O que faz Você nem Imagina ser um filme abaixo da média é a sua completa falta de senso estético. Primeiro, usa recursos visuais limitadíssimos para contar a história em muitos momentos, principalmente pelo fato da trama envolver trocas de mensagens de texto. Mas, principalmente, há uma quantidade surreal de enquadramentos mal feitos e amadores, que seriam vistos com desdém até em uma faculdade de cinema. Choca mais ainda o fato de haver discussões sobre Wim Wenders, um diretor capaz de criar obras poderosas demais visualmente, em algo tão pessimamente filmado.

Mais uma vez, fica uma sensação de oportunidade desperdiçada. Isso porque é um filme cheio de coração, que gosta de seus personagens, que quer tratá-los bem. Só que estamos falando de cinema, e não há cinema sem imagem.

Yesterday (Danny Boyle, 2019) *1/2
Você nem Imagina (Alice Wu, 2020) **

O diretor catalão Albert Serra é um dos mais polêmicos da atualidade. Um formalista radical capaz de criar imagens impressionantes e que sempre faz de seus filmes debates filosóficos com figuras históricas.

Serra chegou a dizer em um workshop que “Meus filmes não funcionam no sentido tradicional da crítica de cinema, em que você tem que pegar a coisa toda ou largar. Meus filmes são tão radicais e especiais em si mesmos que não existem pontos fracos, eles são impossíveis de criticar. Não existem erros, você não pode encontrar coisas ruins no filme”.

Isso pode fazer sentido em um campo teórico que existe mais quando pensamos o cinema do que quando o assistimos, e História da Minha Morte, de 2013, é fantástico dentro do que propõe: O encontro entre Casanova e Dracula em uma pequena vila marca a transição de períodos e de estilos literários que são representados por tais personagens. Um filme que começa claro, com discussões sobre filosofia, banquetes e sexo, e termina escuro, com morte e sofrimento.

História da Minha Morte, de Albert Serra

Porém, é preciso dizer que se trata de um cinema muito difícil, feito para um nicho bem definido. Há longos diálogos e grandes períodos de inatividade. O radicalismo formal gera as melhores partes de História da Minha Morte ao mesmo tempo que o engessa, que o impede de alcançar seu potencial completo.

Eu recomendo mais por um fator curioso para quem quer conhecer esse cinema radical do que pelo fato de ser um grande filme em si.

Outro cineasta de grande habilidade visual era Jacques Becker, que se destacou com obras-primas dentro do noir, gênero que já falei aqui o quanto adoro. Em Antonio e Antonietta, ele entrega mais um drama de classe operária.

É um filme que começa bem demais por registrar lindamente o movimento da classe operária: Há cenas construídas no metrô, no trabalho, no mercadinho, nas ruas, tudo funcionando de forma esplêndida, o vai-e-vem, o dia a dia do proletariado nessa França do pós-guerra.

Enquanto foca nos personagens e cotidianos, Antonio e Antonieta é ótimo. Ele tem um deslize sério por inserir uma trama clichê e fraca sobre um bilhete premiado que não colabora em nada e apenas atrapalha o trabalho que vinha fazendo. Isso quase põe tudo a perder, mas felizmente ocupa apenas um pedaço da obra.

Antonio e Antonieta é um bom filme, mas não chega perto do que são os noirs de Jacques Becker.

História da Minha Morte (Albert Serra, 2013) ***
Antonio e Antonietta (Jacques Becker, 1947) ***1/2

Junho também está rendendo muito em termos cinematográficos— para que vocês tenham uma ideia, depois de falhar na missão de alcançar 100 filmes assistidos tanto em 2018 como em 2019, em 2020 bastou menos de seis meses para isso. Em breve, mais textos com muita coisa interessante!

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Carlos Massari
Revista Subjetiva

Jornalista, roteirista, escritor. Falo aqui sobre cinema e os esportes que não falo em outros lugares.