Por uma crítica LGBTQIA+ anticapitalista

Da polêmica da Parada à campanha do Burger King, o que está em jogo é a centralidade do mercado nas discussões sobre representatividade.

_erinhoos
Revista Subjetiva
11 min readJul 10, 2020

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“Quando alguém compra uma ‘camiseta lacradora’ na Riachuelo não há luta alguma ganha, mas sim manipulada. Isso porque o alto empresariado conservador continuará tendo influência política, com a vantagem de adestrar a fatia LGBT politizada com postagens de mea culpa, campanhas com drags e camisas coloridas”. Fotografia.

Este texto tem nome de manifesto, mas na verdade é um comentário acerca da patente incapacidade da fictícia “comunidade LGBT” em enxergar e praticar a luta a partir de um olhar cívico, por estar viciada em um olhar e uma prática vinculados à esfera do mundo do consumo e do mercado e das representações por ele mediadas.

A militância do, no e para o consumo

Eu não estou em condição de legislar (sozinho) sobre o que importa e o que deixa de importar para a militância LGBTQIA+, haja vista tratar-se de um projeto coletivo determinado historicamente. Contudo, não deixa de ser sintomático — e nunca fomos tão imunólogos — o papel que marcas, grifes, empresas e outras iniciativas privadas, produtoras audiovisuais e publicitárias e a indústria cultural como um todo vêm ocupando no imaginário da luta política, seja ela determinada pelo posicionamento público, políticas de representação ou reivindicação de agendas.

E eu vou sim ser, sem medo de “cancelamento” (essa prática feudal ressignificada pela terra-de-ninguém-da-ética chamada redes sociais), a bicha chata que vem aqui pautar o seguinte: o que perdemos quando deixamos que as dinâmicas de mercado e consumo predominem na nossa crônica política? Meu objetivo é, em um comentário breve, citando casos, mostrar quais são as perdas dessa postura. Spoiler: aqui eu não vou criticar a Anitta, eu vou criticar você! É, você, que adora ficar avaliando o quanto a Anitta “acerta” ou “erra”, e ainda se diz de esquerda, quando foi que ser de esquerda passou a significar cobrar mais posicionamento político de cantoras, influenciadores e marcas do que de gestores, técnicos, ativistas e políticos?

PS: Defender ou apoiar Anitta é uma falsa questão; aqui Anitta é uma marca e uma metáfora. Entendam, não tem como ser diferente.

Quer dizer que a gente tá gastando tempo e energia com quem só quer ter um bom posicionamento no showbizz, ou marcas que só querem lucrar, com ou sem pink money, ou canais de youtubers só porque alcançam o público das massas? Que tipo de likecracia é essa que direciona toda a dignidade do debate público LGBTQIA+?

Não me convence que só porque uma figura pública tem penetração nas massas (a qual se chega com frequência mediante um belo d’um inve$timento prévio), que ela deva ser considerada a personalidade-chave, porta-voz da comunidade, formadora de opinião, vanguarda política. Como somos baratos; basta tocar na balada e simplesmente atribuímos a essas figuras públicas um estatuto quase redentor — não à toa ser tão comum esse terrível cacuete de chamar fulana ou ciclana de “rainha”, uma coisa que se pá tem que ver com algum trauma monárquico recalcado que habita em nós.

Vale lembrar que a likecracia foi justamente um elemento central na controvérsia a respeito da Parada LGBT este ano em São Paulo. Kaká di Polly, veterana da política dos costumes dentro da comunidade, se posicionou de maneira crítica em relação à curadoria da Parada digital, que se caracterizou, dentre outras coisas, pela escolha preeminente de influenciadores digitais para a condução do evento — em lugar de prestigiar figuras históricas relacionadas à história do movimento, da cultura e da noite LGBT (como Silvetty Montilla, que se pronunciou sobre o assunto). Houve quem sugerisse que o tom geral adotado pelas cicerones foi de lacração desinformada. Ademais, lacração não é sinônimo direto de argumentação, como já se sabe, mas antes um estilo, uma retórica que reveste qualquer argumento, dotando-o de uma apresentação não raramente bélica.

Não posso dizer que tudo se resume a cooptação, já que a atuação do mercado vem se mostrando há décadas capaz de operar mudanças significativas no âmbito da cultura e da tessitura social. Todavia, o mercado e o consumo operam como grandes mediadores de relações sociais, representações e convenções, e atualmente é dentro dessas esferas que ocorre não apenas a luta efetiva, como também os termos em que o debate é colocado. A controvérsia de junho é complexa e não está resolvida, mas é um bom índice a respeito do lugar de importância atribuído à mediação do mercado sobre a política, seja nas escolhas feitas pela organização, seja nos termos do debate.

Desde Stonewall é inegável a participação do mercado na mediação com o movimento LGBT organizado (que naquela época, nos EUA, tinha qualquer outro nome). No Brasil, essa mediação se tornou mais importante a partir da década de 1970 e sobretudo na década seguinte, como demonstra o documentário São Paulo em Hi-Fi do Lufe Steffen, de 2016. Contudo, há um fenômeno global mais recente, marcado pelo descolamento da relação entre mercado e diversidade sexual do perímetro do Arouche e do Castro: o ponto de inflexão marcado pela entrada do discurso sobre a diversidade sexual para além da esfera do “GLS” — termo que, vale lembrar foi criado pelo empresário e jornalista André Fischer na metade dos anos 90s.

No Brasil, a retaguarda dos costumes quase que por vocação, é a partir de 2015 que empresas como a Coca-Cola e, em especial, a Boticário pareceram atestar a força do claim LGBT-friendly para além do mercado segmentado. Até esse momento era comum que as grandes marcas fossem normalmente lembradas pela militância em solo tupiniquim pelas suas atuações desastrosas no marketing ou no tratamento ao público (lembro dos inúmeros protestos dos quais eu participei: um beijaço na Ofner dos Jardins, outro no Sukiya da rua Augusta, um protesto espontâneo gigante na frente da Universidade Mackenzie etc.).

A abertura à diversidade pelas empresas mainstream deslocou toda a guerra cultural intra-LGBT do terreno da política e do mercado “GLS” para o campo do mercado e consumo gerais. Enquanto isso, a guerra cultural anti-LGBT, conduzida pela direita conservadora, cujo grande marco é a invenção da delirante ideologia de gênero, continua ganhando força, com o voto conservador, agrário, fascista e evangélico e o caldo corrosivo de fake news.

Nesse processo de mudança, talvez de paradigma, o boicote virou uma grande arma. Ou viraria, se em lugar de manada acéfala, tivéssemos ao menos exércitos ou, se soa menos abrasiva a metáfora, uma matilha organizada. Aqui no Brasil, empresa nenhuma morre de boicote, porque os LGBT não são organizados para fazerem manobra (prefiro pensar mais nisso do que em negligência ideológica). Os k-popers vêm provando serem mais organizados e subversivos que os próprios LGBT, muitos dos quais lamentam mais não poder usar a SmartFit e a 269 Chilli Pepper, do que os próprios fatos espúrios que envolvem os respectivos donos desses empreendimentos (comento mais abaixo).

O “cancelamento” de uma marca como metodologia-de-guerrilha-de-condomínio também vem se provando ineficaz, uma vez que as citações de uma marca às vezes podem trazer mais visibilidade e apoio a ela do que o contrário. Ciladas do algoritmo, que são também ciladas da guerra político-cultural: o cancelado de um é o iluminado do outro (taí o exemplo recente da Dell pra demonstrar).

Há também as marcas que são endeusadas porque apoiam a causa (sendo que apoiar virou quase sinônimo de campanha política). Como a Nathalia Fischer comentou comigo esses dias:

O BK [Burger King] deu o lucro de hoje pras entidades apoiadoras à causa. E ninguém sabe nem o que as entidades fazem, nem que tipo de apoio elas dão, nem a população que elas atendem… Nada! A gente não sabe o que tá sendo feito na ponta.

Como acontece às vezes com as leis de incentivo (tipo a famigerada Rouanet), que dão prerrogativa para bancos e corporações fazerem a curadoria do que representaria a cultura nacional, ao invés do Estado, há uma transferência de responsabilidade aqui: fica a cargo das empresas, cantoras, influencers e produtoras audiovisuais representarem a “comunidade” em suas demandas.

Posso contar um segredo? Pra empresa não tem porra de “comunidade” nenhuma, e sim target, público-alvo. Em primeiro lugar isso. Em segundo lugar, não tem por que agir como representados, porque não votamos em empresas, nem em marcas, nem em cantoras, coño! Terceiro, se o objetivo de uma república democrática é o bem comum, o objetivo de uma empresa é produzir capital, lucro, bufunfa, e A-CA-BOU, seja ela produtora audiovisual, gravadora, distribuidora, fábrica de roupas, ícone da indústria pop, fábrica de suplementos, concessionária ou sauna; tenha ela o selo arco-íris ou umx CEO não-binárie de três tetas.

No país que mais assassina LGBT no mundo (supondo aqui a subnotificação nacional e internacional), é obrigação de qualquer empresa dispensar tratamento digno a clientes e empregados LGBT. E agora não há desculpa, pois a homofobia foi criminalizada, em um marco jurídico ratificado pela Suprema Corte deste país. Combater a LGBTfobia é obrigação, portanto, não apenas moral ou política, mas cívica, para qualquer empresa sediada dentro dos 8,5 milhões de quilômetros quadrados de que dispõe a nação.

Mas bom, nenhum exemplo melhor para ilustrar o nosso atraso civilizatório no campo empresarial do que o péssimo exemplo que representantes de peso, empresas emblemáticas direcionadas exclusivamente ao público LGBT vêm dando ultimamente: a The Week, a Chilli Pepper Single Hotel e o Bofetada Club, porque sim, as empresas não podem se eximir do comportamento espúrio, parasita e oportunista praticado pelos seus donos e CEOs.

Àqueles que estão condoídos e irritados com a boataria sobre o fechamento da The Week, evoco o adágio recordar é viver: escandaloso mesmo é a abertura dada por André Almada a Celso Russomano no período eleitoral em 2012, quando o segundo era candidato à prefeitura da capital paulista. Russomano é lembrado, dentre outras razões, pela relação íntima de apoio político mútuo com a Igreja Universal, conhecida pelos seus posicionamentos homofóbicos públicos, várias vezes encarnados na imagem de seu dono, Edir Macedo. Pois é — como se já não causasse desamor o mero discurso elitista TWiqueiro tão bem articulado no depoimento de Almada no documentário A volta da Pauliceia desvairada (Lufe Steffen), daquele mesmo ano.

Sim, o mercado LGBT mainstream pode se associar às máfias políticas conhecidas por quem está na militância por rifarem nossos direitos, e não há exemplo mais desprezível nesse sentido do que o posicionamento bolsonarista de Douglas Drummond durante o período eleitoral de 2018. O empresário afirmou que, contra o PT, votaria “ele sim”. Quando interpelado por um cliente a respeito da ameaça que o bolsonarismo representaria para empreendimentos LGBT, Drummond respondeu que abriria outro tipo de negócio. Horas depois, tuítes já apagados, a 269 Chilli Pepper Single Hotel, sauna de que é dono, publicou postagens endossando a campanha #elenão — o que mostra um perverso processo de ideologização da pauta operado de forma espúria pelo empresariado que mais deveria estar na vanguarda da defesa dos direitos minoritários. Episódio vergonhoso.

Para terminar este belíssimo rol, temos o exemplo desastrado e desastroso de um representante da nova geração do alto empresariado LGBT paulistano: o Fábio Lima, dono do Bofetada Club (e agora, segunda consta, sócio da legendária A Loka), que recentemente foi à porta da mansão do João Dória (governador do estado) protestar pelo fim do isolamento social (ao invés de reivindicar por políticas protecionistas e assistência econômico-social aos funcionários que, justamente, ele dizia, precisavam trabalhar — leia-se, ser continuamente explorados e expostos à extraordinária situação de uma pandemia global). Quando interpelado virtualmente por habitués críticos à sua postura, o debate se enterrou em um nível degradante, que sugeria conluios com a China e existência de hospitais vazZzzZzios. Rolou um mea culpa no dia seguinte, btw.

Temos em essepê um alto empresariado LGBT, portanto, que não tem vergonha em adotar uma postura parasítica e explorar oportunisticamente o target LGBT de maneira politicamente pouco representativa e moralmente deprimente. Sendo feito de gays ou não, esse empresariado prova uma realidade difícil de encarar: a de que o Burger King foi capaz de uma atitude corajosa, e de que esse empresariado LGBT e pró-LGBT é feito de covardes cagões que só pensam em lucro.

Não existe amor em SP quando o que há em jogo é a manutenção de monopólios comerciais.

Em que difere a postura desses caras com a de Flávio Rocha, o CEO da Riachuelo? No ano seguinte em que ficou manifesto seu alinhamento à bancada evangélica, a empresa logrou uma cobertura da UOL puxando o seu saco, já que ela teoricamente passou a ser a que mais emprega pessoas trans no Brasil. Isso sem falar das coleções LGBT, que a empresa passou a promover para dirimir a homofobia vinculada à sua imagem após a catastrófica publicização do posicionamento de Flávio.

Essa mudança de posicionamento pode ser interpretada até como positiva, mas o que tem que ser entendido é o fator ideológico por detrás dessas atitudes e atores sociais. Quando alguém compra uma “camiseta lacradora” não há luta alguma ganha, mas sim manipulada. Isso porque o alto empresariado continuará tendo influência política, com a vantagem de adestrar a fatia LGBT politizada com postagens de mea culpa, campanhas com drags e camisas coloridas. Não interessa quantas camisetas de lantejoulas sejam feitas pela Riachuelo: o Flávio Rocha não se desvencilhou dos seus vínculos com certas agendas políticas — mesmo porque esse tem sido há séculos o modus operandi das elites no Brasil.

ACORDA GATA! Militar dentro do âmbito do consumo é um tiro no pé!

Para encerrar, vou pular o Hirota, que entregou panfletos no “dia da família” (nem sabia que isso existia) nas dependências de suas unidades, que condenavam a união entre pessoas do mesmo gênero, e ir direto para o meu exemplo predileto, pelo qual eu nutro um afeto quase obsessivo — adivinhem qual!

A SmartFit é um caso à parte. Primeiro foi a questão do botão anti-pegação, que eu apontei como sendo uma estratégia infeliz, injusta e ingrata com a comunidade LGBT (uma postura cuja crítica gerou tréplica textual e no YouTube). Fazia parte da crítica ao botão anti-pegação a constatação de que a rede de academias era frequentada por muitos gays, com programação gay friendly, o que colocava a questão do botão como uma solução que exprimia pouca vocação para o diálogo — para uma empresa que lucrava com o pink money. Bom, veio 2020 e, voilá, finalmente chegamos a um momento emblemático da história da academia, com a entrada (lastreada por evidências) de Edgard Corona, dono da rede e também da BioRitmo, no inquérito das fake news, devido ao possível envolvimento do mesmo no financiamento (junto com outros empresários) de notícias mentirosas profundamente alinhadas à agenda econômica e cultural bolsonarista.

Esse último processo gerou certo ânimo em relação a usuários, muitos dos quais afirmaram que iriam cancelar suas matrículas. No país da cordialidade, em que muitos LGBT desprezam a dignidade conquistada historicamente a troco de conformismo e contrapartidas midiáticas, vamos ver se esse boicote vai representar algo de novo, ou só mais um episódio dessa inércia política a que a comunidade é conduzida quanto mais se engana sobre a influência do consumo e do mercado.

Mais importante do que essa espiral maluca de acordo com a qual os termos do debate político LGBT só se expressam de acordo com representações mediadas pelo mercado, pelo consumo e pela indústria cultural, é nós enquanto comunidade sabermos identificar quais são as formas efetivas de fazer política (seja na política tradicional, seja na 4.0), identificando os atores cujas atitudes reais impactam a vida (e morte) concreta dos LGBT, e adotando metodologias menos ingênuas e mais eficazes para pressionar aqueles que são antagônicos ao pluralismo, à democracia, à diversidade. Isso com menos lacração fisiológica, e mais empoderamento real, claro!

Por uma luta LGBTQIA+ crítica ao capitalismo!

E usem máscara, porque máscara é coisa de viado e nós somos bastante, graças à deusa.

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_erinhoos
Revista Subjetiva

_antropólogo, barista informal, errante incorrigível, cantor de karaokê, sérião nas horas vagas