Richard Pryor e a comédia negra norte-americana

Suzane Jardim
Revista Subjetiva
Published in
25 min readDec 31, 2017

(AVISO: Esse texto é sobre humor, contém linguagem vulgar e coisas que Deus desaprova. Se você é sensível a esses temas, desaconselho)

Oi, eu sou o Goku!

Ok, sóbria não sou não.

Ah, mas fazia tempo que eu não escrevia aqui, não? É aquilo, várias tretas, entretanto, cá estou nas últimas horas de 2017 e agora para algo completamente diferente: falar de humor, mais precisamente, do meu comediante favorito de todos os tempos e do porque todos vocês, jovens, deveriam saber quem ele foi.

Sim, eu sei que é ligeiramente decepcionante afinal, minha opinião sobre o clipe novo da Anitta que é bom nada né, mas apesar do texto ser grande (como muitos nessa página), creio que dá pra confiar — não tem nada tão revolucionário quanto celulites aqui, mas considerem como meu presente de Ano Novo pra vocês.

Se você cresceu nos anos 90, provavelmente se lembra de Richard Pryor das comédias na Sessão da Tarde, onde ele sempre contracenava com o Willy Wonka (Gene Wilder no caso, mas era assim que eu chamava na época).

Se você tem de 25 a 30 anos e nunca ouviu falar nesses filmes ou nesses caras então você provavelmente fazia parte da lendária turma de crianças que já tinha TV a cabo em 1996 e que eu achava que só existiam na ficção

A dupla Pryor-Wilder foi provavelmente a mais famosa dupla de humor dos EUA nos anos 80 e 90, gravaram uma porrada de filmes juntos, fizeram nossas mães rirem muito e influenciaram uma série de filmes de brothers engraçadões e racialmente diversos arrumando confusão por ai que vai de M.I.B — Homens de Preto a Bater ou Correr.

Mas não vim fazer uma homenagem a filmografia do cara, que é bem vasta e nem de longe o melhor que ele fez em vida. Nem vim contar que ele ganhou 5 Grammys de melhor álbum de comédia na época onde as pessoas compravam discos de piadas (inclusive ainda tenho vários do Costinha aqui em casa), que chegou a ser o ator negro mais bem pago da história em seu tempo, que já ganhou um Emmy e é considerado pelo Comedy Central e pela Rolling Stone como o melhor comediante de stand-up de todos os tempos.

Não, não vim exaltar os grandes feitos de um homem negro bem sucedido pra dar exemplos de que “é possível chegar lá” ou dar boas referências. Richard Pryor, para além de comediante, foi um dos maiores comentaristas e críticos do racismo e da política norte americana, tendo levado o humor feito por negros para outros nível, influenciado gerações e criado tendências dentro da comédia e da TV que ainda funcionam e ditam os caminhos de vários humoristas. Entretanto, logo de início devo avisar às almas mais sensíveis: não, Pryor não era um exemplo.

Atualmente nos acostumamos com figuras panfletárias que não erram ou que evitam errar, projetamos um comportamento esperado em celebridades e nos decepcionamos com um tweet torto ou com uma comunidade de Orkut mal utilizada em 2007. Porém, é, Richard Pryor foi uma voz forte quando falamos de questão racial nas mídias, porém não era um lacrador divo desconstruído empoderado tombou. O cara era babaca, exagerado, sem controle, casava compulsivamente porque sim e nem era tão bacana com as mulheres, foi preso várias vezes, criou altas polêmicas, era viciado em drogas, ofendeu mó galera e fez várias merdas — em resumo, era um ser humano como todos nós (menos você ai que tá lendo e pensando “nosss olha ela passando pano” — você é um ser humano maravilhoso e evoluído, para além dos paradigmas, um exemplo a todos nós reles mortais: obrigada por existir.).
Provavelmente por ter sido tudo isso é que sua trajetória me cativa tanto.

Só por curiosidade: Richard Pryor casou umas 8 ou 9 vezes, mas o louco é que ele foi namorado da Pam Grier — a mulher mais linda e maravilhosa que existiu nos anos 70 — e conseguiu não só transformar a vida dela num inferno por causa do vício, como também praticamente abandonou a mina no altar pra casar com uma outra que ele engravidou na mesma época.
O jovem Richard em uma de suas primeiras prisões.

Meu interesse no legado do cara surgiu na época em que trabalhei na escrita do texto sobre os estereótipos racistas norte-americanos. O trabalho de escrita me trouxe um interesse enorme pela história de representação e auto-representação dos negros na TV norte americana e, principalmente no ramo do humor. Isso porque o blackface, especificamente, nunca foi apenas o pintar a face com cores escuras, mas sim, surgiu em shows que visavam causar o riso a partir da interpretação estereotipada do que seria um negro — um conjunto de voz, atos e trejeitos que seguiu sendo a grande tendência em minstrels e vaudevilles até 1930 pelo menos.

Contraditoriamente ou não, foi nessa exata mesma época que os primeiros comediantes negros surgiram e começaram a fazer grande sucesso com o público branco nos EUA, entretanto, para isso precisaram fazer como Bert Willians, o comediante mais influente da época, reconhecido hoje como um dos grandes e o primeiro a conquistar todas as raças com seu humor: atuar usando blackface.

Bert Willians, o maior nome da comédia negra antes de 1920 — sucesso e reconhecimento vieram, porém era necessário cumprir com a exigência branca da época e usar o blackface para conseguir chegar lá, gostando ou não.

As chances para comediantes negros que não seguiam a cartilha e se recusava a interpretar um coon, versões cômicas de mammys ou mulheres exoticamente sensuais nas telas e teatros eram mínimas. Muitos comediantes negros resistiram, mas não conseguiam o mesmo destaque que os demais. O mais comum era tentar passar mensagens positivas e mostrar talento mesmo usando blackface, método que Bert Willians adotava e que o tornou querido e influente nos meios negros.

[Se você clicar AQUI, poderá ver um mini-documentário produzido pela PBS sobre os negros no vaudeville, caso interesse.]

Voltando aos meus estudos: minha preocupação na ocasião era a de estudar como o humor norte-americano, que teve sua primeira tradição original vinda de um puro racismo que constrangia comediantes negros a se prenderem em interpretações estereotipadas foi reapropriado por comediantes que passaram a subverter a lógica se tornando sujeitos do humor e o usando para cutucar as feridas do racismo daquela nação. Ao mesmo tempo, me preocupava em estudar os humoristas negros brasileiros atuantes na TV aberta e as tradições de humor que geralmente seguiam — muitas vindas de estereótipos criados por essas tradições americanas e com pressões muito semelhantes. Minha intenção era a de tentar responder porque nos EUA o humor foi desde os anos 50, pelo menos, uma das principais ferramentas culturais de questionamento do racismo (junto com a música e, em níveis muito menores, o cinema) tendo produzido com o tempo o campo em que floresceriam séries de comédia geralmente críticas como The Fresh Prince of Bel Air e Everybody Hates Chris enquanto no Brasil, mesmo nos anos 2000 ainda era possível encontrar representações absurdamente racistas do negro no campo do humor em programas como Pânico na TV e Zorra Total. Quais eram os caminhos que impediram que tivéssemos uma forte tradição de humor anti-racista em nosso país? Por que dentre todos os comediantes negros geniais que produzimos (e foram muitos), nenhum teve seu legado marcado principalmente por um humor altamente crítico ao racismo brasileiro?

A resposta “mais fácil” seria a de que lá no norte da América, o racismo sempre foi mais grave do que no Brasil, tendo gerado resistências mais audíveis, argumento simplista que nunca aceito pra nada e recomendo que vocês também não. Todas essas eram preocupações que eu pretendia transformar em um mestrado até que BOOM: desisti totalmente, mudei de área e fui flertar com a criminologia por convicções políticas.

¯\_(ツ)_/¯ a c o n t e c e

O lance é que eu li tanto artigo, estudei tanto e ficou tudo jogado, abandonado na gaveta do criado mudo da vida. E eu sou dessas que pensa “pra que acumular coisas na cabeça? Bora dividir”.
Assim sendo, esse texto é basicamente um passeio pela história da comédia negra norte americana que nos levará até nosso objetivo: contar quem foi Richard Pryor e como ele foi responsável por dar cara à comédia negra tal qual conhecemos, influenciando não só as piadas como outros elementos culturais negros, como o hip hop.

Para isso, teremos que voltar um pouco pra depois de 1930, o fim da era dos vaudevilles e das comédias de blackface — que continuaram existindo, mas agora com bem menos força e influência.

Após essa era, anos 50 e pá, a grande maioria dos artistas negros evitava se envolver com o mundo da comédia pois de fato era muito difícil não acabar reforçando estereótipos dado que a regra da comédia ainda era retratar o negro baseado neles. A grande maioria se voltou para papéis dramáticos que muitas vezes até reproduziam sim os velhos estereótipos (vide Hattie McDaniel como a famosa mammy de E o Vento Levou….), mas que conseguiam fazer com que esses artistas mostrassem seus talentos e fossem reconhecidos por isso (não a toa, Hattie foi a primeira mulher negra a vencer um Oscar).

O gostoso do Sidney Poitier é provavelmente o nome mais famoso e bem sucedido dessa tendencia de afastamento dos profissionais negros do mundo da comédia.

Obviamente havia ainda comediantes negros, diversos deles que se dividiam basicamente em duas categorias: comediantes dos chamados Chitlin’ Circuit, clubes e teatros onde aceitavam artistas e público negro durante a segregação (e onde grandes músicos como James Brown, Ray Charles, Ella Fitzgerald, Aretha Franklin, Jimi Hendrix, Billie Holiday, Etta James, B.B. King, Wilson Pickett, Otis Redding, Marvin Gaye e Little Richard iniciaram suas carreiras) e os comediantes do tipo Bill Cosby.

Nos clubes do Chitlin’ Circuit a platéia era segregada, sendo muito comum que os artistas fizessem um show para a platéia branca e outro totalmente diferente para o público negro. É nesses espaços que a tradição de fazer humor expondo os absurdos do racismo e da segregação racial começa a se formar, porém de um jeito comunitário — de negros para negros. Funcionava tanto que foi em um desses espaços, na década de 40 que foi registrado pela primeira vez o uso da já clássica e mil vezes copiada piada, feita por Willie “Ashcan” Jones:

Quando fui pro Sul, parei em um restaurante. O garçom chegou em mim e disse que não serviam pessoas de cor naquele local. Então eu disse: — Senhor, eu não como pessoas de cor, pode me trazer um hambúrguer com cebola?

Entretanto, os mesmos humoristas que faziam piadas como “Eu nasci e cresci no Sul, por isso demorou 16 anos pra eu entender que nigger não era meu nome” levando o público negro a uma risada frenética de identificação, não se atreviam a fazer as mesmas piadas para as platéias brancas nem ferrando. Segundo relatos de comediantes da época, o público negro costumava rir por aproximação, o que fazia com que a linguagem obscena, piadas sexuais e palavões fossem liberados e até bem vindos — afinal era a linguagem da galera mesmo, show. Já o público branco, ria pelo controle, pelo ridículo. Nesse sentido, piadas políticas, sexuais e com linguagem vulgar costumavam ser vistas como sinal de enfrentamento ao branco quando feitas por artistas negros.

Em uma ironia do mundo, a primeira pessoa que ficou conhecida por enfrentar platéias brancas com piadas que os forçavam a repensar o quão ridícula eram as lógicas racistas foi um branco — Lenny Bruce — e ele pagou caro por essa e outras coisinhas mais.

Lenny Bruce (1925–1966) é conhecido como o grande mártir da comédia. Judeu e gay, Bruce causou grande polêmica em sua época por ir contra a censura e a moral norte-americana com um humor satírico e pesado que usava muita linguagem considerada “vulgar” para falar de temas como sexo, religião e política. Por ser um judeu nos auges do anti-semitismo norte-americano, sempre foi um grande crítico à segregação e ao racismo do país. Devido a tudo isso ai, o bicho foi perseguido pra cacete — foi preso diversas vezes por usar termos como “pau” e “fuck” em seus shows, tendo sido condenado por obscenidade em 1964 em um julgamento que mobilizou uma série de celebridades e intelectuais em sua defesa (Bob Dylan e James Baldwin estavam entre eles). Enquanto aguardava em liberdade o resultado de sua apelação na justiça, morreu de overdose de morfina. 37 anos depois, em 2003, o governador de Nova York concedeu um perdão póstumo e retirou a condenação do brother

Com o auge da música negra rolando, uma série de brancos começou a frequentar bares negros pra ver shows de Sammy Davis Jr e outros artistas negros de sucesso na época. Muitos comediantes negros tiveram suas primeiras experiências com platéias racialmente mistas fazendo a abertura de show de grandes músicos nesses bares. Foi nessa leva que os primeiros comediantes negros que faziam críticas a sociedade racista puderam se expressar para pessoas não-negras e causar certo impacto.

Nipsey Russel e Dick Gregory são os humoristas mais marcantes dessa tendência — conseguiam alfinetar a sociedade branca hegemônica em shows com platéias mistas se aproveitando do fato de que o público branco morria de medo de dar mancada dentro de um bar negro.

Dick Gregory faleceu em 2017 e se pá você nem sabia. Considerado o primeiro grande comediante a abordar temas como preconceito e racismo em seus shows de stand-up, tendo sido uma grande influência para Pryor, Gregory abandonou em partes a comédia no final dos anos 60 para se dedicar ao ativismo político de um modo mais próximo. Na imagem acima podemos ver Gregory ao lado de Martin Luther King, acompanhando Muhammad Ali e sendo preso em um protesto pelos direitos cívis. Até bem pouco antes da sua morte era possível encontrar Dick Gregory em protestos pelo direito das mulheres e diversas outras causas. Baita homão.

Tanto Russel quanto Gregory tinham um compromisso com sua comédia — tentar ao máximo abordar as questões da negritude norte-americana de um modo que não pudessem ser lidos como um reforço de estereótipos. Nesse sentido, faziam questão de não usar a linguagem típica das ruas para não serem tomados como inferiores. A comédia de Dick Gregory, por exemplo, era provocativa politicamente e se policiava para se afastar de temas como sexo, violência entre negros, vícios e afins, ao mesmo tempo que apostava bastante em uma auto-depreciação cômica que alertava para a situação negra em geral.

There’s only one difference between the North and the South. In the South they don’t care how close I get, as long as I don’t get too big. In the North, they don’t care how big I get as long as I don’t get too close — Piada de um dos shows de Dick Gregory.

A última trívia do Dick Gregory antes de prosseguir — sim, eu gosto bastante dele. Em 1964, Gregory publicou uma auto-biografia e chocou todo mundo pois o nome do livro era NIGGER e bem, vocês sabem que essa palavra tem um peso tenso nos EUA e tal. Entretanto, a volta genial que o cara deu está na dedicatória do livro, onde a gente lê:

Querida mamãe,
Onde quer que você esteja, se você voltar a ouvir a palavra “nigger”, lembre-se que dessa vez estão anunciando meu livro.

Ah, ceis me desculpa, mas isso ai foi uma inversão linda demais, acho muito foda, me arrepio toda sim.

Mas, sigamos…
Do outro lado desse mundo estavam os comediantes do estilo Bill Cosby, representados aqui… Pelo próprio Bill Cosby.

O humor de Bill Cosby era meio de fazer umas careta às vezes enquanto era um pai modelo em uma família negra de classe média também modelo, passar umas mensagens positivas do tipo “crianças, não aceitem doces de estranhos” e “a tia Becky aprendeu hoje que mentir para a família é muito errado, não é galerinha?” — ou seja, aquele humor de sitcom chatão com risada automática de fundo quando alguma criança diz que não quer arrumar a cama.

Além de notório assediador e cuzão, Bill Cosby foi o comediante mais famoso dos anos 60 nos Estados Unidos e um dos que chegou mais longe. Entretanto, isso aconteceu muito pelo andamento e função que ele dava a sua comédia: para ele era importante mostrar que “somos todos humanos” e que, apesar de ser negro, ele podia ser legal e não causar confusão. Cosby nunca fez questão de lembrar ao público que ele era negro, pelo contrário, sua intenção era bem Morgan Freeman: quanto menos se falar de racismo melhor e, se o negro se comportar, o racismo acaba.

“This is Bill Cosby comin’ at you with music and fun, and if you’re not careful you may learn something before it’s done. So let’s get ready, OK?”
Sabe aqueles tio chato que não satisfeito em ser chato pros adultos ainda querem dar lição pras criancinhas? Cosby é desses. Por isso criou nos anos 70 o desenho educativo “Fat Albert”. Em todo episódio, Fat Albert e seus amigos abordavam um problema típico de crianças da cidade grande — desde primeiro amor e a necessidade de lavar as mãos, até vandalismo, DST, bullying, drogas, armas etc, porém tudo meio Dora Aventureira, sabe? Bem “RAPOSO, NÃO PEGUE!”. Ai no final todo mundo começava a cantar uma canção pra mostrar que aprenderam que, sei lá, assaltar banco é errado. Não satisfeitos, resolveram fazer um live-action do bagulho em 2004 porque né, pra quê limites?

Creio que devo ter falado sobre essa tendência mais conservadora de diagnosticar o racismo em um dos textos sobre O.J Simpson. Nela, a culpa da sociedade racista passa a ser do negro e de seus maus hábitos sendo a solução para o fim do racismo os ensinamentos para que os negros consigam viver em sociedade, incorporar os valores tipicamente americanos e não causar. Talvez por isso mesmo Bill Cosby tenha feito tanto sucesso, mas enfim…

É nos anos 60, entre Dick Gregorys e Bill Cosbys que Richard Pryor entra em cena.

E muda a porra toda.

Pryor começou sua carreira no showbiz sendo faz-tudo em clubes e bares, assim como grande parte dos humoristas da época. Ele chegou a tocar na banda que acompanhava Nina Simone em uma de suas apresentações, porém percebeu rápido que era fazendo umas graças que fazia sucesso mesmo. O lance é que nesse início, Pryor era basicamente um imitador do Bill Cosby, o que o levou rapidamente para as telas da TV por volta de 1966.

Richard Pryor todo bom moço fazendo piada suave no programa do Ed Sullivan em 60 e alguma coisa.

Aí era aquilo lá, umas caretas, umas dancinhas e umas piadas família em programas onde apresentadores brancos davam batidinhas e diziam “ha ha ha esse garoto tem futuro”. Era uma ótima tática, afinal, Bill Cosby era famoso, tava rico e todo mundo o adorava então não tinha erro. Era só seguir essa fita aí que Pryor teria sua carreira ganha jogando seguro.

Porém, não foi bem assim… Conta a lenda que devido ao seu reconhecimento no meio, Pryor foi contratado para um grande show solo em Las Vegas em 1967 - o sonho de praticamente todo humorista iniciante.

Só coloquei essa foto aqui porque acho Las Vegas antiga mó bonita, desculpa, não faço mais.

Felizão da vida, chega lá o jovem Richard pra mais uma rodada de piadas café com leite, dinheiro no bolso e sucesso garantido. Ao subir no palco e começar seu show, o cara começou a analisar a platéia onde tinha um público 90% branco que ria sem que ele precisasse abrir a boca. Era só por ele ser quem era, um negro, e estar parado lá.

Em sua autobiografia, Richard conta que naquele momento ele se sentiu um lixo, uma fraude. Sentiu que ele era motivo de chacota e não um artista. Um pastiche, não um homem. Assim sendo, virou as costas e simplesmente se retirou abandonando o local e o público pagante.

Todas as casas de shows passaram a boicota-lo após esse episódio. Estava decretado o fim de sua carreira.

Desiludido, Pryor pegou sua trouxinha de roupa e se mudou para Berkeley. E o que tava rolando em Berkeley no final dos anos 60?

Tiro, porrada e bomba, como diria a pensadora contemporânea lá.

Foi aí que tudo mudou.

Berkeley foi um dos centros da contra-cultura e das manifestações jovens por mudanças, seja contra as guerras, pelas questões negras, de gênero, LGBT, liberdade de expressão e o que mais tu pensar. Lá Richard fez amizade com membros do Partido dos Panteras Negras, foi a manifestações, entrou em contato com a ideologia Black Power, percebeu de modo mais profundo as mazelas do racismo e que deveria aceitar quem era independente de qualquer coisa caso quisesse ser respeitado como artista.

Mas quem era Richard Pryor?

Essa criança fofa aqui, primeiramente

Pra início de conversa, vocês precisam entender que ele nasceu em um puteiro. E não, não é figura de linguagem. O cara LITERALMENTE nasceu e cresceu em uma casa em Peoria — Illinois, onde funcionava um prostíbulo comandado por sua avó materna. Já parece loucura e piora consideravelmente quando você fica sabendo que a mãe dele e todas as suas tias eram também prostitutas do local e que seu pai e seus tios eram os cafetões. Toda essa galera comandada PELA AVÓ DO CARA!

(Quando você achar que sua família é disfuncional, lembre-se disso)

O convívio com a prostituição poderia até não ser um problema caso não tivesse também que conviver com o alcoolismo e a violência extrema de seus familiares e dos clientes que frequentavam o local desde muito cedo, além de ser constante alvo de gangues daquele bairro pobre que adoravam bater no garoto magrelo pra passar o tempo. O bom humor se tornou um modo de sobrevivência — se você não pode ser forte como os garotos maus, faça-os rir e eles irão te deixar em paz. E assim foi (aliás, quem nunca? história da minha vida essa aí).

Como muitos negros na época, tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil, Richard tentou carreira no exército para conseguir sair de onde nasceu, ascender socialmente e ter algum prestígio na vida, porém o jovem não foi muito longe nessa jornada: passou praticamente todo o seu período de serviço na prisão do exército por ter atacado um colega branco após um conflito motivado por racismo. De lá, saiu pelo mundo tentando carreira no entretenimento.

Em resumo: sua infância e adolescência foi dividida com bandidos, traficantes, cafetões, prostitutas, dançarinas, malandros, viciados em jogo e tudo o que a sociedade americana costumava chamar de escória e apontar como símbolos de que a negritude do país era um problema, culpabilizando a marginalidade em vez de diagnosticar os motivos que a causavam. Em vez de negar toda essa etapa de sua vida e compor uma comédia limpa que jogava para debaixo do tapete toda essa realidade, Richard Pryor resolveu incorporá-la ao seu repertório de uma vez deixando para sempre sua marca no mundo do humor:

  • Através linguagem. Richard desistiu de falar bonito pois nunca na vida havia falado ou convivido com quem falasse. Botou todas as gírias, palavrões e vulgaridades cotidianas com as quais cresceu em seus shows. Lembrem-se que anos antes, Lenny Bruce estava sendo perseguido e preso por usar palavras chulas em público (ou melhor, por ser gay, judeu e fazer críticas a sociedade americana como um todo, risco que Pryor também corria por ser negro e pobre). Percebam que, ao incorporar sua linguagem real a sua comédia, Richard enfrentava a moral e o racismo norte americano de um modo inédito. Em vez de tentar esconder suas origens, ele as usava como elemento de crítica através do riso.
    Isso obviamente não agradou a todos os negros da época porque, né, vários Bill Cosbys. Muitos acharam que o uso de termos vulgares, falar sobre drogas, prostituição e realidade de gangues nos bairros negros seria reforçar imagens de pobreza e marginalidade intrínsecas em uma crítica muito semelhante a que se fazia aos filmes de blaxploitation
Os filmes da chamada blaxploitation eram obras geralmente interpretadas e produzidas totalmente por negros e que retratavam de modo heróico e exagerado uma rotina de bandidagem, violência, tráfico e guerra armada. Foi um sucesso entre a comunidade negra que passou a se ver no cinema não mais como passiva e a se identificar com os contextos representados, mas ao mesmo tempo levantou a polêmica entre outra parte da comunidade que considerava as produções apenas como reforços de estereótipos e romantização barata da opressão.

Outro elemento da linguagem onde Richard Pryor causou foi quanto ao uso do termo nigger. Conforme falei acima, outros comediantes negros já haviam usado o termo em suas obras, como Dick Gregory etc, entretanto, Pryor foi real a primeira celebridade a usar o termo com naturalidade em uma tentativa de reapropriação da lógica racista que já ocorria em seu dia-a-dia de fato. Em vez de condenar o uso e tentar convencer as pessoas a não usar, tentar matar a palavra (o que né, impossível), Richard se apropriou dela causando desconforto e dúvidas em todos os envolvidos. Os brancos não sabiam lidar com aquele cara negro que usava o termo como queria, tirando o poder dele e redefinindo seu significado. Parte dos negros se sentiu finalmente livre porque o termo já era usado nas comunidades negras, entre negros, como um elemento de identidade marginal entre iguais. Outros negros acharam absurdo e um reforço do racismo. Seja lá quem estava certo o fato é que ninguém ficou imune e que se hoje você pode ouvir um som antigo do N.W.A ( Niggaz With Attitudes) falando mal da polícia ou se Kendrick Lamar pode passar uma mensagem positiva dizendo Nigga, we gon’ be alright para toda a comunidade negra quem vem sendo massacrada desde sempre, Richard Pryor tem um papel nisso.

Um dos usos mais significativos e provocativos que Richard Pryor fez do termo nigger está na faixa que dá título a um de seus discos de comédia. Em 1976, os EUA comemoraram os 200 anos da independência do país — o Bicentenário. Entre eventos e homenagens a “terra das oportunidades”, Richard Pryor lançou seu disco e o nomeou de Bicentennial Nigger. A faixa título começa com The Battle Hymn of the Republic tocando ao fundo (som patriota muito famoso na Guerra Civil Norte Americana e que no Brasil, vulgo melhor terra do mundo, virou isso AQUI) e enquanto ouvimos o hino simbolo dessa bela pátria, Richard começa a interpretar um negro chegado aos EUA há 200 anos usando a tonalidade de voz estereotipada e cômica típica dos shows de blackface. Esse negro feliz, bobo alegre e que fala errado se mostra na canção extremamente grato por ter vivido na América e por tudo o que a América fez por ele: o tiraram de seu lar, o botaram em um navio lotado e cheio de doenças para atravessar o oceano a força, o fizeram ver as pessoas que um dia amou serem mortas… Isso tudo sendo apresentado em um crescendo que vai transformando a piada inicial em desespero e em uma mensagem de raiva e ira contra a farsa americana de “terra da liberdade” que termina com um recado poderoso que mobiliza a história da comédia negra, raça, revolta e enfrentamento. Sério, se você entende inglês, ouve isso pelo amor de deus, nunca te pedi nada. É incrível!
  • Pela ressignificação de dicotomias raciais: o racismo cientifico do século XIX fez, entre outras coisas, a montagem da uma das dicotomias mais significativas para valorizar a branquitude. Nela, o negro expressaria a selvageria, o estado natural e bruto do ser que deveria ser evitado enquanto o branco era simbolo do civilizado, do contido, do organizado e portanto, superior. Essa insistência no “negro natural” e selvagem, incapaz de ser assimilado socialmente, sempre foi uma das idéias mais presentes no imaginário racista. Pryor sabia disso. E invertia essa lógica.
    Em seus shows, brincava sempre com as diferenças entre negros e brancos (inclusive imitando brancos, coisa que nenhum comediante negro se atrevia a fazer para platéias não exclusivamente negras até então). Nessas imitações, dava ênfase na dificuldade das pessoas brancas em se soltarem e serem felizes, em como se esforçavam muito para serem lidos como “civilizados”, ou seja, para o quanto eram mecânicos em relação a quem desfrutava a vida de modo mais humano e natural. A dicotomia natureza/civilização se inverte e é o homem branco médio que passa a ser entendido como não humano, não natural, mecanizado, robotizado e não desejável.
  • Comentários políticos e provocações: Pryor tinha opiniões políticas fortes e não as escondia. Não deixava de opinar sobre o mundo para viver confortavelmente no campo do humor. Seja falando sobre a ligação entre racismo e capitalismo e do paradoxo que é querer diminuir o racismo sem questionar o sistema e os lugares de poder por ele estabelecidos (videozão em inglês desse dia show AQUI), seja botando sua carreira em risco questionando os espaços onde era convidado. Ele chegou a ter um programa próprio na NBC que durou menos de 5 episódios pois Richard não aceitou a censura da emissora a suas idéias para o roteiro. Mas vamos a outro exemplo dos bons desse comportamento:

Antes das polêmicas de Azelia Banks causadas por suas críticas a comunidade gay branca norte-americana, Richard Pryor já causava desconforto e provocava a discussão de um modo visceral, chutando a porta sem dó. Foi em 1977 — no dia 18 de setembro para ser mais precisa — data onde aconteceu o evento Star-Spangled Night for Rights.

Cartaz do evento em “celebração aos Direitos Humanos” que todo mundo sabia que era um evento pela causa LGBT, mas ninguém queria dizer isso em voz alta na época.

Esse foi um grande evento promovido por profissionais gays de São Francisco em prol da causa e em resposta a ataques homofóbicos de conservadores que estavam tomando a mídia. Vários artistas reunidos no Hollywood Bowl estavam lá pra apoiar a parada, entre eles Bette Midler e Tom Waits (aquele lindo). Entretanto em momento algum da promoção ou do evento em si as palavras “homossexual”, “gay” ou “LGBT” foram ditas. Todos sabiam qual era a do evento, mas, como em um pacto silencioso, ninguém queria se comprometer tanto assim — ok falar de direitos LGBTs, desde que você não fale sobre direitos LGBTs. Tudo ficou lá, escondido sobre o termo “direitos humanos” em um rolê que começou com o público, formado majoritariamente por homens gays brancos, cantando o hino dos Estados Unidos com a mão no peito e uma emoção tão grande que parecia um grupo de veteranos de guerra chorando pela pátria ou algo do tipo.

Tom Waits, Lily Tomlin, Bette Midler e várias outras celebridades dos anos 70 que hoje em dia a gente não faz idéia de quem foram, curtindo muito pelos “”””Direitos Humanos””””

O caso é que não havia na época comediante mais famoso e mais politizado que Richard Pryor. Ele tinha que estar lá. E lá ele foi.

Foi e começou o seu show simplesmente assim:

Eu vim aqui pelos Direitos Humanos mas descobri do que realmente se trata e é sobre não ser pego com um pau na sua boca. Por que você não quer que a polícia chute sua bunda se você for pego chupando um pau e isso é justo. Você têm o direito de chupar o que você quiser! Eu, por exemplo, já chupei um pau e….”

AMIGOS. haushaua PENSE NA CARA DOS ORGANIZADOR DO ROLÊ!

Em menos de dois minutos a fachada foi pro brejo e lá estava aquele cara em cima do palco, sendo gravado e transmitido pra mó galera, falando MUITO ABERTAMENTE sobre sexo gay e sobre a repressão policial ao sexo gay, isso com detalhes MUITO EXPLÍCITOS sobre a sua própria experiência nesse campo dados com um tom de naturalidade. Provavelmente ele foi a primeira celebridade hollywoodiana a falar, digamos, tão graficamente, sobre uma experiência sexual gay positiva em público. E não era qualquer público: eram cerca de 17 mil pessoas, sabe?

Toda a platéia tava lá achando o máximo e rindo pacas ATÉ QUE O HOMEM PISTOLOU DO NADA.

Simplesmente, Pryor começou a detalhar como ele observou a produção do evento tratar mal uma série de bailarinos negros que lá estavam. Gritou em fúria dizendo que queria ver era a polícia descer o cacete em todo mundo ali porque para os negros eles não ligavam nem um pouco. Diante das vaias da platéia ele só pistolava mais e mais, jogando na cara do público que enquanto os negros queimavam tudo no bairro pobre de Watts, eles estavam todos em Hollywood Boulevard, lado rico de Los Angeles, cagando e andando pra situação (eu contei sobre o que rolou em Watts no texto do O.J Simpson também, inclusive).

Pra finalizar, o brother mandou um curto e grosso KISS MY HAPPY, RICH BLACK ASS e saiu do palco deixando todo mundo muito puto.

Pryor mostrando sua rica bunda preta e mandando a platéia beijar antes de deixar o palco nesse dia ai que foi ó: loko.

Se fosse hoje, isso geraria a maior série de textões que vocês poderiam imaginar, mas a época não deixou a desejar. Diversos críticos, celebridades e ativistas responderam ao ato de Pryor, seja o acusando de ser um grande homofóbico ingrato por não reconhecer o quanto os gays já ajudaram a causa negra no passado, seja o apoiando com testemunhos do quanto a comunidade gay da Califórnia era de fato elitista, racista e cagava para LGBTs negros e pobres, por exemplo. Isso sem contar, é claro, o choque que causou em todo mundo ter que de fato abordar na grande mídia temas como sexo gay e “Pryor transou mesmo com um cara como ele disse ou não”?

(Spoiler: sim).

  • Transformar a tragédia em riso: Muitos comediantes da atualidade mencionam que o grande trunfo de Pryor era sua capacidade mágica de transformar tragédias e realidades viscerais em humor. Sua comédia falava de abandono, de violência, de drogas, suicídio e outros temas absurdamente difíceis com uma naturalidade impressionante. Tão impressionante que poucos percebiam que Richard Pryor na verdade fazia comédia sobre sua própria história.
    Talvez por sua infância atípica, talvez pela pobreza ou por desde muito cedo ter sido iniciado no mundo das drogas e álcool, Richard Pryor sofria com uma depressão severa que se agravava muito com o vício em cocaína. Muito do dinheiro que ganhou até os anos 80 foi gasto em quilos e quilos da droga que quase fez com que desistissem dele e que quase lhe tirou a vida.
Pryor em sessão de fotos para a capa da Revista People: note as queimaduras abaixo do pescoço do cara…

Existem muitas controvérsias sobre o que de fato aconteceu no dia 09 de junho de 1980.
A primeira vez que ouvi sobre esse dia da vida de Pryor foi em uma menção feita pelo neurocientista Carl Hart em seu livro “Um preço muito alto”.
Como o uso de drogas de Pryor acabou parando em um livro desses?

A intenção do Dr° Hart é a de mostrar que muito antes das propagandas que diziam que o crack era uma novidade que veio acabar com as famílias, aumentar o crime e botar o demônio nas pessoas, já se fumava a pasta base da cocaína (crack/freebase) e muito nas áreas pobres. Para isso as pessoas queimavam o pó de modo caseiro, geralmente o processando com éter, como Pryor costumava fazer. Assim sendo, o crack não consistia de fato em uma novidade, dado que quimicamente falando ele não é tão diferente da cocaína e já era usado antes dos discursos sobre, mas foi transformada em uma para justificar o discurso que deu origem a guerra às drogas no governo Reagan.

Bem, o caso é que Pryor fazia uso auto-destrutivo de freebase no final dos anos 70 motivado pelos boicotes da TV em suas empreitadas, dívidas e os problemas de saúde mental já mencionados acima. Após o fatídico 9 dia de junho de 1980, depois de dias trancado em casa fazendo uso abusivo da substância, foi divulgado nos jornais o fato de que Pryor estava hospitalizado com 40% de seu corpo tomado por queimaduras de segundo e terceiro grau e com 1/3 de chances de sobrevivência. Falou-se muito na época de que havia sido um acidente causado pela chama que Pryor usava para processar e fumar a cocaína — e isso fez com que o uso de freebase se tornasse um assunto nacional e não mais outro tema que se fingia que não existia (o que fez com que Carl Hart o mencionasse em seu livro). Entretanto a realidade era um pouco mais cruel.

Você já esteve totalmente tomado pelo vício, sem fé em si mesmo e sem grandes expectativas de vida? Eu sim.

É um estado deplorável. As pessoas não conseguem te ajudar, você não tem forças pra se ajudar e tudo o que você quer é usar e usar mais e mais droga pra sentir algum prazer mínimo até que isso possa te matar. Querer morrer é uma constante porque nada mais te toca além da substância.
Motivado por esse estado, após dias de uso consecutivo, Richard Pryor se encharcou de rum e tacou fogo em si mesmo no que ele confessou mais tarde ter sido uma tentativa de suicídio.

Eu também tentei suicídio quando me afundei demais no vício. Parece algo sensato a se fazer nesses momentos… Mas sobrevivi. Richard Pryor também. E em vez de fingir que isso não aconteceu, abordou o tema de um modo magistral e hilário em um de seus mais famosos shows de todos os tempos — o Live in Sunset Strip.

Talvez seja uma das táticas mais difundidas entre as pessoas que sofrem: rir de si mesmos. Torna menos triste a vida, não é? Talvez por isso a velha história do palhaço triste seja tão corriqueira (vide casos como os dos comediantes Robin Willians e Fausto Fanti). Quem me conhece sabe da minha capacidade de contar sobre minha vida maluca provocando o riso, de inverter o ônus de tudo transformando em algo com que eu possa divertir o outro. Dói menos. Se pá.

De todo modo, Richard Pryor sobreviveu e o modo que usou para falar do caso o tornou mais e mais famoso. Entretanto, ele já não era o mesmo.

Outubro de 1980, ainda se recuperando das queimaduras graves no corpo

“Um novo homem”

No mesmo show lendário — Live on Sunset Strip — Richard contou à platéia uma história sobre a viagem que fez à África após sua recuperação em uma tentativa de se encontrar. Ok que as piadas sobre a viagem sempre começavam com “fui pra África encontrar minhas raízes, cheguei lá ninguém me conhecia e ainda me achavam um americano babaca”, quebrando com o romantismo e exotismo com quem muitos negros americanos tratavam o continente, mas dessa vez ele foi além:

Estava sentado sozinho no hotel e parei pra olhar ao redor e foi como se uma voz dissesse pra mim, “O quê você vê?”. E eu disse, “Pessoas de todas as cores fazendo coisas juntas”. E a voz disse “Tá vendo algum nigger aqui?” e eu disse “Não!”. E a voz perguntou “Sabe o porquê?”. “Porque não existe nenhum…”. Eu estava errado… Estava errado e nunca mais irei chamar um homem negro de nigger outra vez.

A epifania descrita publicamente por Pryor deu início a uma mudança em seu humor motivada por um auto-denominado estado de consciência. O termo nigger existia porque a sociedade racista norte-americana o inventou para tentar rebaixar os afro-americanos — em uma perspectiva global, não havia sentido, não tinha qualquer força o uso do termo seja com finalidades racistas ou de inversão. Richard passou a perceber que as palavras são entidades vivas e que nada impediria que suas reapropriações fossem retomadas e utilizadas para seus fins originais. Percebeu que o uso de termo de modo provocativo não salvava ou libertava o negro de modo algum. E nunca mais usou o termo que o tornou notório em nenhuma apresentação.

Em outra ironia da vida (esse texto está repleto delas), após abandonar uma única palavra, boa parte do público e da crítica passou a dizer que Richard Pryor havia “perdido a graça”. Às vezes ele contava as mesmas histórias e piadas que antes eram aclamadas apenas omitindo a corriqueira palavra nigger e isso era o suficiente para considerarem que seu talento havia terminado. O ser humano não presta.

Talvez pelo cansaço, talvez por desgosto, talvez por cansar de guerrear contra toda a hegemonia nesse campo tão incerto, Pryor se aquietou nos anos 80, se entregando a uma série de filmes horríveis de comédia tonta para ganhar um dinheiro suave e boa parte do que assistimos com ele na Sessão da Tarde em 1998 é dessa época aí.

Meu deus sabe, olha esse filme! Eu fico muito triste só de lembrar que ele existe! O cara é literalmente a marionete de um moleque chato, não tem como isso ser bom, sabe? Gente do céu, tem que queimar um negócio desses.

No restante dos anos 80, Richard continuou ganhando seu dinheiro, lidando com o vício em cocaína (e em casar compulsivamente) quando todos notaram que suas aparições públicas estavam estranhas...

Segunda metade da década, auge dos discursos horríveis sobre AIDS na mídia, Richard Pryor aparece absurdamente magro e irreconhecível. Todos especularam que ele havia contraído o novo vírus, o que foi desmentido rapidamente por uma equipe médica: o problema não era AIDS. Era esclerose múltipla.

Eu não sei dizer como uma esclerose múltipla se desenvolve. O que sei é que se trata de uma grave doença degenerativa que ataca o sistema nervoso destruindo de pouco em pouco as ligações dele com nosso corpo.

Após o diagnóstico (1986), Richard foi deteriorando de pouco em pouco sem nunca deixar de trabalhar e de fazer piadas com o que lhe acontecia.
Poucos anos depois, a doença já havia o colocado em uma cadeira de rodas, limitando para sempre seus movimentos.

Pryor em 1994, ainda com alguma autonomia, e em 2000 — quando foi homenageado durante uma premiere de um filme de Spike Lee

Até o início dos anos 2000, Richard fazia questão de se apresentar mesmo visivelmente debilitado. Após essa época, perdeu também a capacidade vocal e permaneceu em silêncio até o momento de sua morte por ataque cardíaco no dia 10 de dezembro de 2005.

Pronto. É isso.

Em 20 minutos você foi do vaudeville dos anos 20, passou pelo cinema dos anos 50, conheceu comediantes negros incríveis e outros nem tanto (dane-se o Bill Cosby), conheceu a trajetória de Richard Pryor em meio a tudo isso, foi pra Peoria, Las Vegas, Berkeley, Hollywood e agora tá aí.

Foi uma trajetória longa (e espero que prazerosa), mas eu pessoalmente gostei de terminar 2017 assim: vendo mil stand ups, pesquisando mais sobre Pryor, dando risada e pensando em como eu mesma lido com as desgraceiras da vida.

No final dos anos 90, doente mais ainda capaz de falar, perguntaram a Pryor como ele gostaria de ser lembrado e ele respondeu que gostaria que as pessoas rissem ao olhar suas fotos e inventassem mentiras sobre ele, do tipo “nossa, eu lembro dele lá e…” ou “ah sim, nesse dia eu estava e vi que ele…”.

Talvez existam algumas mentiras nesse texto, só pra honrar a vontade de um artista que admiro. Talvez não.

Você nunca saberá.

Documentários:

Felizmente uma porrada de gente fez documentários e homenagens ao Pryor. Para ficar só nos fáceis de ver, digo que na Netflix há um (com menos de uma hora) produzido pela PBS — Icon: Richard Pryor.

Já no YouTube tem o (bem melhor) documentário produzido pela BBC Richard Pryor: Omit the logic e, olha só: LEGENDADO EM PORTUGUÊS.

Referências:

Algumas informações foram retiradas do livro de biográfico Becoming Richard Pryor de autoria de um tal de Scott Saul, mas como não tenho pdf ou versão online pra vocês, deixo aqui os artigos que usei e que você encontra facilmente na internet (principalmente se souber burlar o JStor).

Até 2018;
^^

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