(Se) mudar

Quanta vida cabe em uma casa? Das coisas que fazem um lar.

Yasmin Narcizo
Revista Subjetiva
4 min readJul 17, 2019

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Morei em mais casas nos últimos anos do que em toda a minha vida. Logo eu, que nunca fui lá muito fã de mudanças (de todos os tipos, não só as de pertences de um lugar para o outro).

Comecei a vida em apartamento, poucos anos depois fui para outro e lá permaneci por 21 anos, só saindo para ter o meu próprio canto: um apê alugado e dividido por três meninas que me rendeu as melhores histórias da vida, algumas já contadas aqui. E, dos 26 aos 29, idade que tenho agora, já posso contar 3 apartamentos nessa lista das casas que habitei, todas acompanhando mudanças significativas também em mim.

O apartamento anterior ao que vivo agora era realmente especial.

Tinha um vaso na cozinha cheio de rolhas. Em cada rolha, uma data importante para nós. Aniversários, novos empregos, viagens, casamentos, momentos.

Tinha uma planta linda, que era uma Peperomia, mas ganhou o apelido mesmo de Pepe em homenagem ao Mujica. Tinham duas marantas com o nome de Gaby e eu ficava chateada quando alguém não entendia a referência. Tinha um terrário que parecia a floresta amazônica, mesmo depois de ser assassinado quando colocaram álcool por engano no borrifador de água. Tinha um manjericão que virou um baita pesto por causa de uma praga e uma hortelã que escalava redes, como uma trepadeira.

Tinham também uns passarinhos que vinham visitar todos os dias, sem falta. Um sanhaçu com um canto fofíssimo todas as manhãs, beija-flores de todos os tamanhos e uns outros pequenininhos que lá passavam a tarde roubando a água do bebedouro dos beija-flores. Até uma família de maritacas já tinha dado as caras algumas vezes.

Tinha um vento fresquinho o ano todo, tinha uma rede pra tomar vinho ouvindo música e curtindo um momento a dois na varanda. Tinha vida, tanta vida! Nossa, das plantas, dos bichos e dos amigos que estavam sempre por perto, bebendo cerveja, ouvindo música e contando histórias por todos os cômodos.

Era uma casa rica de tudo que nos alimentava: comidas gostosas, carinho e presenças.

A varanda onde reunimos tanta gente, tantas vezes.
Uma parte da nossa casa antiga ❤

Uma casa só se torna um lar quando está cheia de vida. Tem lugares que parecem casas porque têm gente dentro, mas que, na verdade, são só tetos. Essa, não. Ela foi o nosso refúgio, o nosso conforto, o nosso lar e o nosso abrigo desde o primeiro dia. Nos piores e nos melhores momentos, chegar em casa sempre foi um alívio naquele lugar.

Ela nos viu aprender a cozinhar, cantar e dançar às gargalhadas, chorar com as séries mais bobas, brincar com os filhos dos amigos, casar, fazer planos, trabalhar até a madrugada e tantos outros marcos que nem consigo pensar.

Sair de lá foi como deixar um pedaço de mim para trás e fechar a porta para um futuro que nunca viria, mas que seria incrível se viesse, tenho certeza.

Mas, como eu estava dizendo, um imóvel só é uma casa quando a vida pulsa entre as paredes. Quando começamos a tirar as coisas lá de dentro, eu chorei várias vezes, mas vê-la sem os quadros nas paredes, a varanda sem rede e a cozinha sem os apetrechos para fazer as nossas melhores receitas me fez entender que ela não seria mais a nossa casa, quando a mudança acabasse. Seria só um lugar (maravilhoso e que vai fazer muito feliz aos próximos que ali construírem um lar).

Entramos na nossa casa atual no exato dia em que completamos um ano de casados. Como meu pai mesmo disse, dia auspicioso para um recomeço! Trouxemos conosco pouco do apartamento antigo, mas tudo de nós. Aos poucos, lavamos os novos pratos, furamos paredes e seguimos ajeitando o lugar para ele ter tanto de nós quanto possível. Se faltar espaço, vai sobrar amor — tanto, que nem sei onde vamos guardar.

Escrevo esse texto para vocês olhando pela janela que dá pro quintal. Lá fora, o dia está ensolarado e o maridão tenta dominar as plantas que insistem em crescer demais. Não está tudo pronto, mas já nos sentimos em casa. Os objetos que ficaram para trás já nem fazem mais tanta falta (as pessoas, sim, essas fazem uma falta danada). Sei lá, não dá pra explicar como.

Já queremos receber os amigos, já queremos mostrar pra família, já queremos tornar o nosso lugar quase que sagrado novamente. Esse lugar já tem vida.

No fim das contas, mudar não é tão difícil. Dói, mas passa. Tudo na vida muda o tempo inteiro, mudar é inerente à condição de estar vivo. Antes de sair encaixotando as coisas, o importante é entender que a mudança precisa, primeiro, estar em nós.

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Yasmin Narcizo
Revista Subjetiva

Jornalista por formação, publicitária na raça e autora do “Não tô sabendo lidar”, à venda na Amazon. Observa o mundo com olhos de quem não entende nada mesmo.