Seitas abusivas #5: Sem saída

Daniele Cavalcante
Revista Subjetiva
Published in
8 min readMar 21, 2018
Vista aérea da Jonestown, projeto do Rev. Jim Jones no noroeste da Guiana, onde mais de 900 pessoas morreram. Foto: FBI

A profecia do “Judas”, o futuro traidor da nossa comunidade, não foi contada muitas vezes pelo nosso “líder”, mas era poderosa o suficiente. Ninguém queria ser o tal “falso profeta”, ninguém queria trair o grupo que todos gostavam tanto.

O mais antigo membro do grupo não gostava de ser chamado de líder. Mesmo assim, era ele quem trazia as “revelações divinas”. Era ele quem ensinava aos demais. Era ele quem tinha as principais ideias de organização. Era dele a palavra final.

E era ele quem nos ensinava sobre uma “geração de profetas”, citando trechos bíblicos que faziam referência ao fim dos tempos e à volta de Cristo de modo que tudo fazia muito sentido.

Também era ele quem dizia que, do nosso meio, haveria de surgir o “falso profeta”, uma figura bíblica, que aparece no livro do Apocalipse. Se aquelas pessoas um dia se tornariam os profetas que viveriam como os discípulos de Jesus, ali também haveria um Judas. Um traidor que acabaria se tornando o Falso Profeta a serviço do Anticristo.

Não fazia mais de um mês após minha mudança para a comunidade quando ouvi pela primeira vez sobre “o Judas” que surgiria em nosso meio. As pessoas ficavam pensativas. Certamente, assim como eu mesma, cada um pensava “será que sou eu?”

Um dos membros, no entanto, não guardou os pensamentos para si:

— Caraca, sou eu! Certeza que sou eu.

Ele não estava confessando intenções de trair o grupo, nem tinha nenhuma revelação espiritual de que serial o tal “Judas”. Ele apenas tinha baixa autoestima e pouca confiança em si mesmo. Perfil este, aliás, compartilhado por muitos membros.

Por isso, vivíamos com medo de um dia nos tornarmos traidores daquela nova família e inimigos do próprio Deus.

Não existe nenhuma maneira de deixar uma seita abusiva com alguma dignidade. Deixar o grupo é sempre considerado um erro grotesco, e a seita sempre vai descrever coisas terríveis que acontecem aos que desistirem. Também dirá a todos os demais que os ex-membros agora são inimigos. Ninguém mais poderá manter contato com eles.

Essa é uma das características de qualquer seita abusiva. Embora a maioria não tente proibir a saída através da força, elas implantam fobias, ainda que sutis, para garantir que a ideia de ir embora sequer vá passar pela cabeça das vítimas.

Com esses fatores aliados a uma doutrina que torna os membros dependentes da seita, é comum que as vítimas vivam acreditando que passarão o resto de suas vidas nessas comunidades.

Claro, é possível sair de uma seita. O problema é que as vítimas não enxergam essa possibilidade até que não tenham outra escolha. A seita cercará seus membros de todas as formas possíveis para fechar todas as saídas imagináveis — porém, isso é feito na forma de abusos emocionais.

Aqueles que se foram

Qualquer vítima de uma seita abusiva ouvirá histórias sobre membros que já foram embora. Os “desistentes” sempre serão considerados fracos, perdedores, fracassados, malignos, ingratos. Em muitos casos, serão chamados de “inimigos”.

É comum entre as seitas abusivas a demonização daqueles que saem:

  • Eles são maus, fracos e egoístas.
  • Eles são tolos.
  • Eles estão vagando na escuridão, incapazes de ver.
  • Eles são obstinados e não reconhecem seus erros.
  • Eles são traidores, renunciantes, vira-casaca, desleais, desertores.
  • Eles são Inimigos da Cruz.
  • Eles escolheram o Mal em vez de Deus.
  • Eles são perdedores.
  • Eles não meditaram o suficiente, ou eles não oraram o suficiente.
  • Eles não estavam tentando de verdade.
  • Eles não seguiram os procedimentos corretamente.
  • Eles não conseguiram resistir ao pecado.
  • Eles esconderam seus problemas e não os revelaram ao grupo.
  • Eles não podiam superar seus desejos de sexo, álcool ou drogas.
  • Eles não podiam desistir dos seus apegos ao dinheiro e às posses.
  • Eles são filhos de Satanás.
  • Nunca foram parte de nós, para começo de conversa.
  • Estamos muito melhores sem suas influências ruins.

Quando você é membro de um grupo que se afirma como sua nova família e te acolhe para resolver seus problemas, a última coisa que você quer é ser considerado um inimigo. Você não quer se juntar às fileiras daqueles que causaram desgosto a seus “irmãos verdadeiros”, as únicas pessoas que “realmente se importam” com você.

Casa de oração na aldeia russa de Nikolskoye, onde os membros de uma seita se encontravam até que desapareceram em meados de outubro de 2007. Eles estavam refugiados se preparando para o fim do mundo. Fotografia: Komsomolskaya Pravd

Na comunidade da qual fiz parte, não era estritamente proibido manter contato com aqueles que deixaram a casa, mas os discursos que demonizavam essas pessoas eram o suficiente para que ninguém tivesse muita vontade de conversar com os “traidores”.

Esses discursos variavam de acordo com o contexto no qual cada um decidiu ir embora. Por exemplo, se alguém decidisse abandonar o grupo logo após uma dura exposição de suas fraquezas no círculo da culpa, os líderes só precisavam ressaltar que eles foram fracos e não suportaram passar pelos processos necessários para a “santificação”.

“Se ele não quis confessar seus pecados, então não estava realmente tentando seguir o caminho, portanto agora é um inimigo”.

Em outros casos, após algum membro ir embora, os líderes revelavam aos demais, “pecados” que a pessoa confessara apenas a poucas pessoas, e não ao grupo inteiro. O objetivo é mostrar a todos que aquela pessoa nunca foi de confiança.

Líderes sabem que se os participantes da seita entrarem em contato com os que saíram, as ideias de rebeldia podem se espalhar por dentro do culto. Por isso, todo subterfúgio é válido para impedir que isso aconteça.

O fato de que as vítimas são diariamente doutrinadas a acreditarem que todas as pessoas de fora da seita estão “longe da verdade” e são “inimigos em potencial” — e, por isso, não se deve manter contato com elas — ajuda na conclusão óbvia de que os desistentes também deveriam ser considerados como tal.

Pior ainda, as seitas abusivas de caráter religioso dirão que as pessoas que fizeram parte do culto e voltaram para “o mundo”, se tornam ainda piores do que pessoas que não tiveram a oportunidade de conhecer a “verdade”. Pois elas desistiram por “amar o mundo” ao invés de amar a Deus, que lhes ofereceu a chance de “viver corretamente”.

Estes, os que amaram mais ao mundo, são “verdadeiramente maus”, enquanto os demais, que não tiveram a chance de conhecer a verdade, são simplesmente “inocentes” — embora ainda sejam considerados inimigos.

Synanon Game

Ver uma pessoa deixando o grupo é sempre um processo doloroso para os membros de uma seita. Essas pessoas dividem o mesmo teto e o mesmo alimento, e são as únicas com quem convivem. A separação é sempre algo traumático, ainda mais quando o “desertor” é exposto no círculo da culpa como traidor, fraco, derrotado, incapaz.

Em alguns casos, sair da seita abusiva leva tempo. Os líderes ou os mais à frente dos demais farão discursos sobre o que acontecerá com o desistente após deixar o grupo. Qualquer pessoa que decidir ir embora, ouvirá coisas humilhantes. Lhe dirão que ela falhou; que morrerá espiritualmente; que foi derrotada pelo mal; que atrairá a ira divina. Que agora será um “inimigo”.

Também lhe será dito que a partir daquele momento os demais membros da seita não poderão mais se comunicar com o “traidor”.

Michael Rogge descreve em seu livro On the Psichology of Spiritual Moviments o dilema daqueles que deixam o caminho das seitas:

A verdadeira natureza das chamadas amizades dentro do grupo só será revelada depois que um devoto tenha deixado o lugar. Os membros veem isso acontecer mas não pensam nisso no momento, porque aconteceu com outra pessoa. Mas quando eles se submetem ao mesmo destino, sentirão a humilhação de não serem mais bem-vindos, o casamento acaba — até mesmo não serão mais reconhecidos pelos próprios filhos.

O pária se sente jogado em um abismo. Ele é cortado dos contatos sociais, sua vida em pedaços.

A magnitude dessa experiência de desespero não deve ser subestimada. O renegado sentirá uma profunda vergonha. Ele pode ter confessado no grupo segredos íntimos, que agora estão sendo ridicularizados por seus ex-amigos.

Profundamente machucado, ele pode tornar-se amargurado e até entrar em um estado mental suicida.

Semeando o medo

Além disso, durante a estadia na comunidade, as vítimas aprendem o que acontecerá caso saiam do grupo. Uma vez que a seita detém a única resposta para o problema de seus membros, ou a única verdade espiritual, ou a única solução para “curar o mundo”, é lógico concluir que ao sair a pessoa não terá mais condições de obter essas respostas/soluções.

Eles aprendem diariamente que caso desistam perderão todo o progresso espiritual que fizeram enquanto estavam no grupo, ou não poderão ir para o Céu, ou o diabo terá poder de atentar contra suas vidas, ou a Nova Ordem Mundial os controlará, ou recairão e morrerão vítimas de seus próprios problemas, pecados e vícios.

Afinal, o mundo é um lugar mau, e a seita é o único lugar capaz de protegê-los.

Para garantir que as pessoas não queiram sair do grupo, também haverá alguma forma de controle sobre os conteúdos que os membros poderão ter acesso. Algumas seitas proíbem ou desencorajam a leitura de livros, ou assistir televisão. Essa forma de controle faz com que as ideias da seita sejam as únicas a formar as opiniões e a visão de mundo dos membros.

Também será dito que é necessário haver uma “única fé” entre os membros, de modo que todos compartilham seus pensamentos e conclusões a respeito dos ensinamentos que recebem do líder. Assim, além de reafirmar aquelas crenças, todos ficam atentos para o caso de algum membro declarar alguma interpretação errônea a respeito das aulas.

Em algum nível de consciência, as pessoas percebem isso. Por este motivo, os membros têm um medo velado de falar alguma coisa que os possam denunciar, principalmente se a ideia de ir embora já percorre suas mentes.

Outros obstáculos

Os obstáculos também podem ser físicos. Por exemplo, em seitas que vivem em áreas isoladas, é difícil ou até mesmo inviável deixar o local sem colocar a vida em risco.

Muitas vezes, as vítimas dão à seita todos os seus recursos, dinheiro, cartões de crédito e objetos pessoais, de modo que ficará ainda mais difícil ir embora escondido.

E há os casos extremos, como o do Templo do Povo, em que a tentativa de deixar o culto pode resultar em morte.

De acordo com o livro Awake in a Nightmare, de Ethan Feinsod, quando pessoas deixavam o Templo do Povo, Jim Jones as acusava de todo tipo de traição.

Em uma série de encontros raivosos, Jones difamava os desertores como “assassinos” — desertores não apenas de Jonestown mas do socialismo, que preferiram “pagar impostos que compram armas para matar bebês negros” do que ficar com os pobres e oprimidos tentando construir uma melhor sociedade em Jonestown. Com um tom não-mais-Mr.-Nice-Guy em sua voz, ele [Jones] anunciou o início de uma campanha para combater a perigosa revolta burguesa dentro da comunidade.

O final trágico da comunidade de Jim Jones é bastante documentado. Todos os moradores da vila foram convencidos a cometer suicídio. As crianças foram obrigadas a ingerir veneno e os que se recusavam a obedecer eram assassinados.

Talvez as pessoas que não sabem como é fazer parte de uma seita não entendam porque as vítimas não vão embora assim que percebem os problemas do grupo. Mas sair de uma seita é uma das decisões mais corajosas que essas pessoas podem tomar. Por isso, elas não devem carregar nenhuma culpa, e sim receber apoio, pois estarão fragilizadas, sozinhas, e com muitas feridas emocionais para tratar.

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Daniele Cavalcante
Revista Subjetiva

Redatora de ciência e tecnologia no Canaltech, redatora freelancer e ghostwriter.