O que eu estou aprendendo, estudando tibetano?

Brasileira que vive e estuda tibetano na Índia há três anos nos conta sobre seus aprendizados com a língua e a cultura

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RevistaBodisatva
8 min readMay 2, 2017

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Estudar tibetano parece algo tão impensado e maluco, que talvez faça sentido contar o que me levou a fazer isso.

Cadernos de estudo. Imagens do arquivo pessoal de Karen Portaluppi.

Vivia uma vida normal para os padrões paulistanos. Trabalho, casa, saúde, amigos e família: tudo a postos para estar tranquila e feliz. E estava. Hum, talvez no fundo, no fundo, não era bem assim… Se estivesse, por que minha conduta no trabalho era diferente da conduta que eu mesma orientava aos pacientes na busca do seu bem-estar? Se estivesse, por que, então, seguia inquieta em relação ao que possuía e conquistava — material, intelectual ou emocionalmente?

Perguntas como essas me fizeram decidir por afastar-me temporariamente da rotina lotada de atividades e, em dois mil e treze, fui conhecer práticas espirituais da região dos Himalayas, com passagem de retorno para seis meses depois.

Chegada na Índia e surpresa nos Himalayas

Comecei minhas andanças pelo sul da Índia, numa comunidade espiritual com base na união humanitária. Foi meu primeiro contato com a cultura indiana e um choque em todos os sentidos. Me surpreendi com a forma indiana de encarar um momento de fraqueza e doença, com seu contentamento e fraternidade, com a importância que dão à prática do ser pequeno, humilde, com sua cooperação e flexibilidade social. Ah sim, o caos, a sujeira, o barulho foram um choque também, mas pequeno, considerando a imensidão de reflexões que eu tinha a cada momento. Depois de dois meses lá, segui rumo ao Norte do país, convidada a fazer um trekking nas montanhas dos Himalayas no inverno. Sim! Eu estava indo aos Himalayas no inverno! Nem eu acreditava.

Região de Ladakh, norte da Índia (arquivo pessoal de Karen Portaluppi).
Biblioteca Tibetana (LTWA) Library of Tibetan Works and Archives (arquivo pessoal de Karen Portaluppi).

Fizemos trekking num dos rios congelados encravados nos vales e montanhas nevadas nos arredores de Ladakh. A energia das montanhas, o silêncio que transformava em grito o contínuo zumbir do tímpano, a alegria incondicional dos nossos guias e carregadores no trekking, e quando nas vilas, o ar gentil e amoroso que permeava todos, os camponeses que tocavam seus yaks (o búfalo da região), os monastérios budistas com as cerimônias de mantras tocados e rezados, o sorriso genuíno dos monges, bandeirinhas e apetrechos espalhados por todas as vilas que faziam com que nos recordássemos constantemente do lembrar do próximo, ser gentil, generoso, etc. Tudo isso mexeu muito comigo.

E nem tinha percebido que estava imersa numa atmosfera budista…

Conexão com Dharamsala

Lá de Ladakh, me indicaram conhecer a pequena Dharamsala — que acolheu em exílio o Dalai Lama e a comunidade tibetana, há quase sessenta anos, e fazer um curso de Budismo. No meu primeiro dia na cidade, coincidentemente aconteceu uma palestra pública do Dalai Lama. Que alegria! Ouvia atentamente o que ele dizia. Falava com tanta suavidade mas também com uma objetividade que faziam suas palavras parecerem flechas certeiras no meu ego e nas minhas agonias.

“A sua mente é quem percebe o mundo ao seu redor… Se você está agoniado, é porque sua mente criou esse cenário. Em contrapartida, sua mente é a única que realmente consegue corrigir essa interpretação errônea e trazer o estado de paz que busca. Por isso, você é responsável por sua própria felicidade.”

Não sei se o Dalai Lama realmente falou tudo isso, mas foi o jeito que interpretei naquele momento. E aquelas palavras caíram como uma chuva no sertão…

Monastério Namgyal em dia de Ensinamento de S.S. o Dalai Lama (arquivo pessoal de Karen Portaluppi).

Eu pensei: é isso! Quero entender melhor como funciona esta bagunça aqui dentro, e como sair dela.

O Budismo

A partir de então, decidi tomar Dharamsala — ou a parte alta de Dharamsala, conhecida como Mcload — como meu segundo ambiente de prática espiritual. Minha nova rotina de aulas com lamas tibetanos e frequentes palestras públicas com S.S. (Sua Santidade) despertaram em mim a esperança quase convicta de que tudo o que me fazia sentir mal ou falsamente bem poderia ser racionalmente compreendido e erradicado, e um estado tranquilo de mente ou de coração poderia ser verdadeiramente alcançado. Até mesmo vivendo na agitação corporativa de São Paulo!

Mas, para isso, precisava de um tempo maior estudando, refletindo, discutindo, praticando com professores por perto. E para ser capaz de entender direto dos lamas sem tradução, optei por estudar o idioma tibetano. O retorno ao Brasil aconteceu apenas depois de 1 ano. Checada e confirmada a determinação de seguir os estudos, resolvi o que tinha ficado pendente e voltei a Dharamsala já como estudante de tibetano e com o Dharma como objetivo.

Nesse processo ainda contínuo de aprendizagem do tibetano, acabei conhecendo uma nova maneira de ver o mundo, aparentemente mais ingênua, pura e… simples.

Encontro de grupo com S.S. Dalai Lama e Sua Santidade em dia de ensinamentos em McleodGanj (arquivo pessoal de Karen Portaluppi).

O tibetano

Em minha nova rotina de aulas, focada em gramática, conversação e interpretação, o alfabeto inicialmente parecia algo impossível de aprender. Quase que novas habilidades físicas devem ser usadas para pronunciar corretamente os sons! (Vou me esforçar pra um dia lograr isso…).

Treinamento em Caligrafia Tibetana (arquivo pessoal de Karen Portaluppi).
Obs.: a fonética apresentada não consegue imitar o som exato da pronúncia correta.

É um processo que exige paciência e humildade — o que eu não tinha como hábito… Mas, em algum momento, de algum modo, as primeiras frases aconteceram, alguns hábitos negativos foram sendo abrandados, e em paralelo, já com menos barreiras da língua, o contato direto com os professores — os geshelas — lentamente se tornaram uma realidade.

Aprendizados além da língua

Numa aula de gramática, ao apresentar o pronome possessivo ‘meu’, a professora — figurassa! — imediatamente comentou:

“… esta é a fonte da nossa grande miséria, o excesso de apego e importância que damos ao ‘eu’, ‘meu’…”.

Karen e sua professora de tibetano da LTWA (arquivo pessoal de Karen Portaluppi).

Também poder estudar o significado direto das palavras em tibetano foi algo surpreendente… Por exemplo:

Buddha em tibetano é SángyeSan: purificado das obscuridades + Gye: com cognição prístina perfeita, desenvolvida. Ou seja, quem é desperto [do sono da ignorância] e espalha [seu intelecto a todos os objetos de conhecimento].

A convivência com alguns dos meus professores, já sem a barreira do idioma, me deu a oportunidade de receber conselhos práticos, tirar dúvidas do estudo, mas especialmente de poder observar como eles se relacionam com seus problemas e rotina, sempre de um jeito tranquilo e divertido. Adooooram uma brincadeira, mesmo carregando um conhecimento intelectual condizente com o de um PhD ocidental. “Não importa se essa pessoa agiu errado contigo. Se um sentimento ruim nasceu em você, é nele que você tem que dar umas pauladas… hahahah”, o geshela riu muito.

Na realidade, fui percebendo que esse aprendizado não acontecia apenas com meus professores, mas no meu convívio com os tibetanos de forma geral. Outro dia, fui ao médico e quando finalmente chegou minha senha, ainda tive que esperar que ele terminasse seu joguinho no celular para me atender… “relaxa, ficar tensa ou ansiosa vai aumentar a sua dor de cabeça…”, disse ele.

Decidi me encontrar para um café com um amigo tibetano. No restaurante, comentou comigo sobre um estrangeiro na mesa ao lado: “ele está comendo, conversando e se comportando de maneira tão exata, com os movimentos tão pensados. Quando ele chega em casa, ele deve estar muito cansado de ter estado tanto tempo tenso, preocupado com a imagem mostrada. Será que ele é feliz assim?”.

Karen em casamento de vizinhos indianos em Dharamsala (arquivo pessoal de Karen Portaluppi).

Interessante também é o contato com o sistema de educação tibetana dentro de um monastério de monjas. Vindas de uma sociedade tradicionalmente patriarcal, as mulheres tinham menor acesso à educação, mesmo em conventos, e isso só começou a mudar com o exílio e a exposição ao mundo externo. No monastério onde estudo, são cento e vinte monjas com rotina puxada de aulas de gramática, lógica, debates e estudo dos sutras, assim como sessões de pujas longos, trabalhos de manutenção do monastério e memorização de preces e textos estudados. Aprendo muito no convívio com essas meninas que desde cedo se tornaram monjas e vivem longe de suas famílias — que ainda estão no Tibete. Diante de suas dúvidas, ansiedades e alegrias elas debatem seriamente sobre como encontrar as falhas do entendimento incorreto da realidade para alcançar uma mente serena. Elas são uma fonte de inspiração!

Monjas do Monastério Geden Choeling, Dharamsala, em manifestação por um Tibete Livre e Karen com algumas delas (arquivo pessoal de Karen Portaluppi).

Não estou dizendo que a comunidade tibetana seja uma comunidade de bodhisattvas. Naturalmente também têm seus problemas e desavenças. Mas convivendo com eles no seu idioma e no seu ambiente — em exílio — percebo diariamente como a filosofia budista permeia e interfere no seu modo de pensar, de olhar a vida, as dificuldades, as diferenças.

Daqui, vejo a força dos hábitos que tinha no Brasil, como o vício em uma vida ocupada, na cobrança do muito/rápido/tudo, em não permitir relaxar como sinal de fraqueza, entre outros. Sempre que digo “Professor, estou atrasada, mas rapidinho já chego”, nunca recebo um retorno diferente, de qualquer um deles:

“Não se apresse, não se desespere, venha devagar e tranquila”.

De fato, este é o significado da palavra Khalepe — tchau.

O Dharma é o caminho que escolhi e estudar tibetano pra mim tem sido uma experiência de desenvolvimento pessoal, espiritual. Mas estudar tibetano também pode ser muito útil pra quem quer entender mais a cultura tibetana, a medicina e a astrologia tibetanas, as artes — como pintura de thankas — além de aproveitar melhor uma eventual viagem ao teto do mundo — Tibet.

TashiDelek!

བཀྲ་ཤིས་བདེ་ལེགས།

Usado como saudação ou cumprimento em datas especiais, desejo de boa sorte, etc. Significa: “Que todas as condições [interdependentes] auspiciosas se realizem neste ambiente”.

*Por Karen Portaluppi

Karen Portaluppi — Paulistana, 37, há três anos mora na Índia, onde tem se dedicado ao estudo da filosofia budista e do idioma tibetano junto à comunidade tibetana em exílio. É engenheira de formação e ex-profissional de Recursos Humanos. Atualmente estuda tibetano na Biblioteca Tibetana (Tibetan Library) e lógica budista no monastério de monjas GedenChoeling, em Dharamsala.

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