Sobre essa tal "assimilação"

Lisimba Dafari
18 min readNov 5, 2018

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Insatisfeito com a definição do dicionário mesmo depois de ruminar este texto por uns anos, eis que enfim cheguei a termos para definir assimilação que me parecem suficientemente bons. Resumidamente, digo que a pessoa assimilada — tal como a alienada — será aquela que, apesar de pertencer a um grupo historicamente oprimido consegue nutrir a ilusão de que é possível usufruir das mesmas almofadas que garantem o conforto do grupo opressor. Seja porque nunca passou grandes privações ou discriminação na vida; seja porque conseguiu (meritocraticamente) seu lugar ao sol apesar das mesmas; seja porque encontrou blindagem em laços de afeto com membros do grupo opressor; seja porque comprou o mito da desconstrução ou do empoderamento como atos de autodeterminação individual(ista). Obviamente há outras razões para não querermos aceitar a realidade que reconhecidamente nos precariza, castra, esteriliza, explora, marginaliza, superencarcera, genocida etc. O próprio horror da violência nos leva a esse anseio por nos autopreservar nem que seja pela negação de uma realidade perceptível a olhos nus. No caso, faz parte da lógica do próprio racismo se camuflar e se autonegar até mesmo nos episódios mais flagrantes. Para tanto, é fundamental contar, não apenas, com a discrição do grupo dominante, mas principalmente com o anseio de dominados em se beneficiar das estruturas que distinguem os dois grupos.

“Se negro de alma branca pra você/ É exemplo da dignidade”

Como já disse por aqui, não foi a toa que os primeiros passos da escravização incluíam o batismo cristão. Despir africanos de suas raízes identitárias/culturais foi essencial no processo de transformar pessoas em mercadoria. A imposição de um nome europeu, em detrimento daqueles que remontavam a clãs ancestrais servia não apenas para diluir laços familiares, mas para demarcar a ruptura dos novos cativos com suas origens, pois quem desconhece seu passado mais facilmente aceitará um futuro designado por interesses alheios. Quem perde o poder de nomear nem a si mesmo, recebe junto com o novo nome um lugar no mundo definido por quem detém esse poder de dar nome às coisas. À esse processo de tornar alienígena os elementos dos quais se faz(ia) parte chamarei de alienação. Essa quebra de vínculos constitui parte essencial para nossa domesticação, pois sem nada familiar para recorrer — língua materna, rituais, cerimônias etc. — a vulnerabilidade aos mandos e desmandos dos sinhô só aumentaram.

Bastante se fala sobre como africanos de uma mesma etnia eram mantidos separados para que não pudessem comunicarem-se entre si e se vissem forçados a aprender a língua colonizadora, mas pouco se diz sobre os diferentes sujeitos que essa dominação linguística produzia. Pois, se de um lado se produziu os crioulos — negros nascidos nas Américas e adaptados a língua e aos costumes do cativeiro –, do outro os boçais — marcados pelo trauma da travessia e mais resistentes ao cativeiro e propensos a revoltas e até ao suicídio — passaram a exemplificar a influência “domesticadora” que a convivência com europeus exercia sobre africanos da costa. Tal distinção, entre os mais disciplinados e os mais insolentes, nos servirá aqui para ilustrar como a assimilação da língua do colonizador também atendia ao mesmo propósito do batismo: transformar africanos em seres moldáveis às expectativas senhoriais. Tal distinção, entre os que se comportam “bem” devido a assimilação dos valores dominantes e os mais propensos a insolência por terem outros referenciais, é fundamental para o entendimento de que alienar africanos de suas raízes foi indispensável para a docilização dos selvagens e internalização das lógicas próprias do cativeiro.

Aquenda: O primeiro ato da escravização de africanos se deu na língua. Mais precisamente quando jejês, angolas e mandigas etc. passaram a ser enclausurados pela categoria “negros”, quando a ideia que europeus fizeram dos povos africanos prevaleceu sobre nossas identidades originais. Foi através da língua que o colonizador anunciou a demanda de “escravos” e passou a enxergar-nos como objetos sob seu arbítrio. Foi através da língua que as expectativas dos europeus se fizeram carne no corpos de pretos e pretas. Dizer que tudo fora proposital seria lhes dar crédito demais, mas independente do cálculo (ou sua provável inexistência), resta o fato de que eu e você ainda nos comunicamos através da mesma. Empretecida, indigenizada, arabizada etc., mas atendendo pela mesma alcunha e senhores. Sendo assim, espero que não seja difícil entender que qualquer pessoa negra em diáspora que não saiba identificar suas raízes no mapa e principalmente na fala, se trata de uma pessoa alienada. Todas. Obviamente há diversos graus para essa introjeção dos hábitos, costumes e valores tidos “civilizados”, mas, ainda assim, sob influência direta da colonização. Isso porque todo sistema operacional requer uma linguagem que contenha em si uma visão de mundo delimitada pela mesma. Ter como língua materna uma imposição colonial significa, portanto, conceber, refletir e expressar a própria realidade a partir do mesmo código usado para justificar e perpetuar a nossa desumanização. Significa que o fato de eu e você sabermos português nos põe automaticamente no cativeiro-categoria negro/inumano, quando poderíamos pensar na nossa existência a partir de algum referente em xhosa, bantu, iorubá etc. Ou seja, junto com o bê-a-bá, aprendemos também que somos “o outro”, o “eles”, o “subalterno” da história, tal como nossos captores têm nos sujeitado ao longo dos séculos. Por conta disso considero incompleta qualquer noção de afrocentricidade descrita unicamente em algum vocabulário da colonização, mas deixo essa discussão pra outro dia.

“Mas preta, cê vai alisar pra quê?/ Se é bem melhor deixar sua negritude aparecer”

Ainda que obrigados a renegar nossas (demonizadas) origens, africanos e africanas escravizados conseguiram preservar aspectos de nossa ancestralidade. Tenha sido nas escarificações, no jeito de andar, de falar, de louvar, de ajeitar o cabelo ou no que desse. Até mesmo o mais assimilado dos boçais carregou consigo algum sotaque ou caguete dos tempos de liberdade. Dessa forma, uma vez abolida a escravização do corpo, o domínio precisou, mais que antes, enquadrar nossa mente, moldar nossa lógica e nossas trilhas de pensamento a fim de docilizar a nova massa de sub-cidadãos decretada pela sinhá Isabel. As antigas ferramentas de extração de recursos para enriquecimento branco precisaram, então, ser integradas a sociedade sem ameaçar seu hierarquizado funcionamento. Pois, no país que mais traficou vidas africanas temia-se que a maioria populacional acabasse por africanizar o Brasil. Um risco que as instituições criadas para regular o domínio das elites não poderiam correr.

Como o termo colonização vem de cólon (intestino), não surpreende que a intelectualidade brasileira tenha se empenhado tanto em mastigar toda manifestação cultural produzida por aqui nas primeiras décadas após a abolição. A experiência antropofágica e o mito da nação mestiça vingaram nesse exato contexto de abrasileirar toda contribuição cultural não-europeia sobrevivente no país, pois se o pretexto para “civilização” dos africanos e ameríndios tinha sido o fato de europeus não terem descoberto nem cultura, nem história, nem intelectualidade entre nós, toda expressão cultural nossa só poderia ter sido possível por conta do contato com a cultura “superior” do branco. O jongo, o candomblé, a feijoada e tudo mais seriam, portanto, subversões da fonte “civilizatória”. Ou seja, a integração do negro no Brasil passou também pela apropriação de todos os frutos da nossa memória e resiliência. Na medida que nossos corpos deixaram de ter proprietários individuais, tudo que produzimos passou a ser propriedade da nova nação brasileira. A inserção do negro nessa sociedade sem grilhões, portanto, se deu pela ingestão e adequação de tudo (e todos) que servissem de empecilho para o projeto de erguer a sonhada Europa dos trópicos. Em outras palavras, a história da aceitação do negro na sociedade sem pelourinhos em muito se parece com a história do samba: perseguido até ser temperado ao gosto da sociedade que ainda nos marginaliza. Logo, destituir de amefricanidade e atribuir brasileiridade a tudo que não tivesse ascendência europeia indisfarçável — se tornou tão imperativo quanto importar imigrantes para diluir o passado negro do país. Tal como embranquecer as massas, miscigenar nossas expressões se tornaram urgentes para o projeto de salvar o jovem país de um futuro como o do Haiti.

Aquenda: O mesmo ímpeto que levou as elites dirigentes a higienizar/urbanizar/modernizar os centros urbanos do país no último século da escravização, também as fez ansiar pelo refinamento dos nossos traços, madeixas, hábitos, tom de voz etc. Da mesma forma que a capoeira e o candomblé foram sincretizados para comportar o branco, caberia aos negros e negras se enquadrarem aos “bons” hábitos e costumes das elites. Cabe(ria) a nós nos fazer respeitáveis aos olhos da branquidade afim de que nossa presença pudesse passar irrepreendida. De modo que pudéssemos nos fazer invisíveis e menos destoantes do que se esperava de um cidadão de bem. Mesmo que após a abolição tanto o mercado de trabalho como as salas de aula não tenham se preparado para nos receber.

“E diploma de bem comportado”

Como não poderia deixar de ser, no país que por séculos ser “branco” fora sinônimo de ser “livre”, uma vez quebrada as correntes das senzalas, negros e negras ficamos livres para perseguir os mesmos projetos de vida de nossos antigos sinhôs e sinhás. Fomos emancipados para nos digladiar por um cantinho de validação no interior da casa grande. Libertos, enfim, para ter o branco como meta de humanidade. Não foi por acaso que além da importação dos imigrantes que viriam diluir o passado negro do país, os intelectuais eugenistas se empenharam em elaborar um currículo escolar que naturalizasse o novo lugar do negro na sociedade. Sentadinhos numa carteira, sob os cuidados de uma gentil senhorita da classe média, seríamos ensinados a ser gente, a pensar, sentir e agir da maneira definida como “adequada” para o bom andamento da nova sociedade. Todavia, ainda que se defendesse o poder civilizador da escola raramente nos permitiam alguma vaga.

A senzala podia até ter perdido sua validade, mas uma vez que os postos de emprego continuaram sob controle da casa grande — e seus tentáculos institucionais –, caso os ex-escravizados quisessem sobreviver te(ría)mos que nos submeter a sua cartilha. Ainda que fôssemos majoritariamente analfabetos. Se o disciplinar de nossos corpos não poderia mais ser através da tradicional chibata, foi preciso orientar nossa mente para evitar que, de “mente vazia”, não virássemos vadios nem revoltosos, porque quando se trata de garantir o domínio de um povo sobre outro(s), mais importante que punir os inconformados é construir um discurso apaziguador de melhoria gradativa. Assim, o Pelourinho foi substituído por recompensas de “bom” comportamento. Dentre as quais, obter a mesma formação que os “bem-nascidos” representa, ainda hoje, o ápice na jornada rumo a uma vida digna. Em razão disso, os diplomas podem ser entendidos como um novo passe de acesso ao interior da casa grande, pois exige um indivíduo que não apenas comprovou ser capaz de espelhar as ideias e ideais senhoriais com louvor, como também descreve um indivíduo que foi levado(a) a se apartar de sua coletividade de origem para se inserir em círculos de convivência brancos. Diz respeito a alguém que servirá de exemplo aos demais, voluntariamente e não, para fazer valer que a melhor saída para dibrar os obstáculos impostos pelo racismo permanece sendo o da menor resistência, no caso o da palmitagem intelectual.

Esse tipo de processo vem desde o período colônia, quando afrodescendentes (mestiços, geralmente) podiam ocupar cargos públicos contanto que fizessem por onde obter uma declaração que os isentasse pelo defeito de cor. E a mesma lógica se repetiu nas colônias portuguesas na África com o estatuto do indígena — que até importava noivas portuguesas para sacramentar tudo. Um dos efeitos disso é que para que pessoas negras sejamos, minimamente, levadas a sério ainda se faz necessário que nos equiparemos a branquidade até nas mínimas coisas. A fim de nos fazer aceitos entre os brancos precisamos antes nos tornar representantes de como a massa negra pode ser “iluminada”. Precisamos não oferecer ameaça a estrutura social e incorporar com maestria os códigos do grupo dominante, pois o narcisismo deste repele tudo que destoa.

Aquenda: Ainda que não nos faltem exemplos de mais velhos(as) acadêmicos simplesmente Geniais que foram sistematicamente mofados pelas ementas de seus colegas brankkkos, nada disso quer dizer que pessoas negras não devemos nos formar ou seguir a carreira. Até porque se tira o sono deles não sou eu que serei contra. O problema é que para nos validar nesse metiê somos encorajados a bater continência a pensadores que, quase sempre, negaram nossa voz e nos fazem enegrecer a falácia de que produzir saber constitui uma especificidade do ocidente. A questão é que no processo de galgar refúgio na casa grande acabamos sendo utilizados como exemplo da superação de desigualdades pelas instituições que nos apadrinham. A parada é que nessa de entrarmos para a fazer a diferença, quem acaba se diferenciando somos nós que, quando voltamos, mal conseguimos trocar ideia com quem não “preencheu requisito”. Quando paro e penso que pessoas sem essas qualificações todas e muito mais oprimidas criaram e reexistiram em quilombos… Aí quando ouço de pretos(as), geralmente concursados e “bem” sucedidos, coisas na linha do “mas eu lutei muito pra chegar aqui pra sair me aventurando” sempre que falo em cavarmos alternativas a essa sinuca de bico bate um ranço. Fico sempre com a impressão de que passamos tanto tempo baixando a cabeça e batendo palma para tranquilizar a casa grande que nos cegamos ao fato de que, por mais conforto que ela gere individualmente, a casa grande nunca deixará de ser a estrutura de poder feita precisamente para moer nossos corpos e mentes. Logo, enquanto a mantivermos como único norte de nossas trajetórias, nosso potencial estará sempre condicionado às migalhas que nos concedem.

Cena do filme Corra!

“Do que vale a negritude, se não pô-la em prática?”

Nem é nenhuma novidade que um dos principais, e mais evidentes, efeitos dessa socialização projetada por brancos para irradiar sua posição no mundo costuma passar pelo autoódio que leva tantos e tantos: a artifícios para o domar do cabelo e clareamento da pele; como a palmitagem que, por sua vez, leva ao clareamento da família; e, quando o fruto disso não sai satisfatório apela-se a cirurgias “corretivas” para afinar nariz, lábios, orelhas etc. Como o racismo se dá, sobretudo, pelas nossas marcas corporais que remetem a África, reprimir essas escarificações genéticas consiste numa consequência eficiente quando nos é cobrado boa aparência tanto no mercado de emprego como no afetivo e social, porém ainda são alterações superficiais. Até porque, de pouco adianta se esforçar para “branqueamento” da raça quando o “pé na cozinha” se faz notável ao nos sentar a mesa, ao abrir a boca, ou ao tocar dos tambores. Diamantes brutos precisam ser polidos para atingir seu máximo valor. Melhor que uma cobertura apetitosa de glacê é um recheio denso e consistente de baunilha. Afinal, quem teve educação “de berço” sempre teve tempo pra mil talheres em suas refeições; desde sempre é exposto(a) a mais “alta cultura”; nunca foi pagão; nem jamais precisou ficar berrando por ter tido sempre alguém a disposição para atender seus mínimos caprichos. Ou seja, muito mais vantajoso e eficaz foi promover a europeização do nosso âmago, das nossas referências: estéticas, religiosas, morais, musicais, comportamentais, intelectuais e o que mais fosse considerado do gosto das elites. O primeiro passo pra isso foi dado quando concluiu-se que povos não-brancos não possuíam cultura nem história e precisavam ser domesticados para “remediar” isso. O derradeiro foi quando nacionalizaram tudo com o menor resquício de amefricanidade pois, assim, ficaria mais fácil alegar que o nosso jeito de falar, andar, gingar, louvar não passavam de corruptelas, dialetos, “macaqueadas” do padrão oficial.

Mais acima falei da escola/academia, mas sabemos que a maioria dos nossos são sujeitados por outras instituições sócio-educativas. Independente dessa bifurcação nas nossas caminhadas, somos todos afetados pelo discurso transmitido nas artes e na mídia. Foi através dos periódicos, das rádios, do cinema, da TV e outros veículos de massa que as elites nos incutiram seus valores — principalmente na ausência de nossos corpos e vozes. Desse modo que a maioria de nós somos apresentados ao que ficou estabelecido como as “boas” maneiras, a “boa” aparência, o comer e o ler “bem” e a nos espelhar nisso. Nessas narrativas, frequentemente disfarçadas de entretenimento e/ou erudição que acabamos tendo contato, também, com os estereótipos produzidos sobre nós, os descendentes bastardos do berço civilizatório universal(izante). Inclusive, tem sido através dos jornais, das telenovelas e do cinema que os descendentes de colonizadores globalizam seu padrão e estilo de vida. Através do olhar do branco que somos informados sobre quem somos, quem deveríamos ser e em quem deveríamos nos espelhar para dar “certo” na vida. E é por conta de tanto aprendermos qual o nosso lugar entre os brancos que, muito frequentemente, não conseguimos nem conceber como interagir em locais nos quais nossa cor não constitui um “defeito” a ser recompensado. Por conta disso que muitos de nós acabamos nos sentindo peixes fora d’água quando tentamos desbravar rolês pretos.

Aquenda: Da mesmíssima forma que eurodescendentes jamais foram reeducados para nos compreender e não mais nos exotificar e tutelar, nós tampouco fomos encorajados a não tê-los como régua para tudo na vida. Isso porque por mais empretecido que o português tenha sido, a visão de mundo que desembarcou com Pero Vaz de Caminha se manteve. A parte boa desse narcismo europeu todo é que, independente do nosso grau de instrução todos sabemos muito bem o que é típico deles, basta nos atentar para as noções vigentes de certo, bonito e bom — de verdadeiro, desejável e recomendável –, que ainda datam da Grécia Antiga. A parte ruim é que todas as soluções prontas e tidas “corretas” das quais dispomos remetem a eles. A parte péssima é perceber como muitos dos nossos costumamos estar limitados na crença de que a perspectiva do colonizador constitui a via (ideal) única e, em consequência disso, encaram tudo que foge aos padrões eurocêntricos como demérito repreensível. A parte tensa se dá quando nos deparamos com indivíduos mais assimilados que demonstram encarar a negritude como um dado estritamente biológico do qual devemos nos redimir ou tirar proveito como objeto-fetiche voluntário. A parte triste está em aceitar que alguns desses que mais internalizaram o olhar do branco sobre si jamais entenderão a negritude como o esforço coletivo de positivar o legado que somos doutrinados a rejeitar; e entender que não vale a pena ficar tentando forçar ninguém pro lado preto da força porque de fato a recompensa sempre foi mais imediata e lucrativa quando damos as costas ao coletivo e nos conformamos às regras do jogo. Quando valsamos independentemente da música.

“Alguém me avisou/ pra pisar nesse chão/ devagarinho”

Quando nossos amigos são majoritariamente brancos, assim como nossos crushes, ídolos, mentores e bibliografia fica complicado tornar-se negro. Não só porque o narcisismo branco fez com que até mesmo o jazz, o punk, e o rock fossem esvaziados de negritude, mas porque a branquidade, construída sobre a desumanização do “outro”, é tão frágil que muito raramente tolera ser questionada ou contrariada. Diria até que a primordial regra para uma inserção bem sucedida no mundo branco acaba sendo, declaradamente e não, represar qualquer sentimento de ofensa e indignação com as inevitáveis branquices nessa sociedade fundada sobre o racismo. Tudo isso aliado ao fato de que eurodescendentes nunca deixaram de deter os recursos, as oportunidades e os mais lucrativos contatinhos para o “sucesso” –, fica bem salgado o custo de ir contra a lógica que os privilegia. O mesmo ocorre sempre que a gente vai muito fora da caixinha, também em termos de sexualidade, identidade de gênero, autoexpressão e tal. Estar bem afinado com o discurso opressor garante o pagamento de muitos boletos. A supremacia branca jorra litros quando entramos mudo e saímos calados, mas regozija ainda mais quando comprovamos ter pró-atividade na hora de defender um de seus netos contra um negro mais raivoso/insolente. Pode reparar que quanto mais alto uma pessoa negra é permitida alcançar mais em sintonia com a ordem do dia ela estará. Inclusive será até mais competente nos argumentos que os brancos ao seu redor porque, gostando ou não, se a estrutura — tanto à direita quanto à esquerda — que os sustenta cair…

E não pense que desconheço a realidade dos boletos, mas o negócio é que enquanto a gente prioriza o nosso pirão, quem continua pagando o grosso da conta são os que não preencheram os requisitos necessários. A verdade é que, por mais narcisistas que sejam, eles não se importam de incluir alguma #Representatividade na figura que repassa as ordens contanto que a cor de quem as executa continue a mesma. A parada é que a gente confunde a sobrevivência nesses espaços isoladamente com resistência quando na realidade esses ganhos individuais agregam mais valor aos indivíduos e instituições envolvidos que à coletividade supostamente representada. O problema é que enquanto a gente não entender que liberdade significa justamente não precisar temer o que podem fazer conosco, continuaremos tendo que nos engalfinhar por um cantinho na casa grande enquanto o “resto” fica de fora. A regra é bem simples: quem tem mais empatia com a mão que garante o pão do que com quem pode competir por ela “vence na vida”. E isso nem é o pior. Até porque a vida não é feita só de boletos, mas de relações e como nos moldamos a elas.

Aos 16 anos me vi fora do armário. A relação entre ter sido descoberto e ter me feito revelado é confusa. Só não mais que ter perdido todos os amigos de infância magicamente em um dia e o brilho nos olhos dos meus pais algumas semanas depois. Por sorte, paralelamente encontrei a melhor coisa que a internet poderia ter me oferecido a naquele momento: um alguém com quem eu pude dizer aliviadamente “sou gay”. Uma experiência tão fortificante que passei uns anos sem nem sequer ser apresentado a ninguém que não fosse LGBTQIA+ ou simpatizante e dentro do meio. Hoje até brinco que, mesmo não parecendo, não sou fluente em linguajar hétero pois larguei o cursinho no nível básico. E, sou extremamente grato por isso porque quando, anos mais tarde, senti a necessidade se me fazer negro, imersão total, por mais caguetes de branquice que eu pudesse ter, baixar a cabeça por conta da minha sexualidade jamais me ocorreu. Toda essa volta pra dizer que assim como eu precisei me cercar de pessoas LGBT para reconstruir uma identidade saudável com o que o mundo ainda encara como abominável, é com total descrença que encaro a possibilidade de alguém se cercar e rechear de branquidão sem podar, mesmo que minimamente, a própria negritude. Por mais antissociais que prefiramos ser, todos somos seres sociais. O que significa dizer que somos reflexos daqueles que nos rodeiam. Ou seja, somos tão não-racistas/alienados ou antirracistas quanto as pessoas ao nosso redor. Até porque ir além dos limites impostos pelo racismo e nutrir orgulho de ser negro(a) são conquistas que, simplesmente, não têm como vir do branco. Só podem ser definidos por nós comunitariamente. Ponto. Não dá pra aprender a ser negro estando inteiramente suscetível ao aval de pessoas brancas. Negritude só faz sentido nas (re)conexões entre pessoas negras. Em ambientes nos quais somos apenas mais um(a) e não a exceção. E isso não é nos segregar/guetificar, mas compreender que o ser humano(a) é muito mais diverso do que sonhou a vã filosofia europeia. Todavia, pra escapar disso precisamos estar em conjunto, seja para partir do zero e criar nossa própria concepção de mundo ou para recuperar o vasto repertório cultural do qual fomos afastados. Nenhuma das opções será cômoda, mas se ilude quem acha revolucionário enegrecer conteúdos brancos que se pretendem universais e mente aquele que diz que há dignidade em ter que ficar nos autovigiando para não ser taxados(as) como um(a) “neguinho(a) qualquer”; ou em ter que, humilde e repetidamente, ficar validando nossas presença a cada novo círculo social “qualificado”, enquanto há quem nasça com mais crédito que nenhum pós-doc ou bilhões na conta tem como nos garantir. Aquilombar sempre foi a alternativa a esse mundo que nos oferece um sapato 500 anos apertado e espera que lhe sejamos gratos por termos recebido o que calçar.

Aquenda: Caso tenhas chegado até aqui sem concretamente entender o que significa ser assimilado, te respondo com o que responderia quando um branco insiste não saber se é não-racista ou antirracista: quantas pessoas ativa e constantemente se posicionam contra o racismo na sua vida? Quantas tomam partido e pagam o preço diante do racismo? Todo mundo se considera super desconstruído/consciente até serem propostas ações de combate ao racismo, pois consciência sem prática, divorciar mente do corpo, é cartesiano — leia-se branco — demais. Não é porque condenam a nossa carcaça que devemos nos valer apenas na mente. Há um custo em se assumir negro e fazer questão que os outros reconheçam e lidem com isso, então se você nem ninguém do seu contato próximo está arcando com as consequências desse posicionar-se, certamente algum Malcom X tá passando um dobrado pra tu posar de Martin Luther King Jr. — que só foi apreciado pela maioria brankkka depois de devidamente abatido como o primeiro. E, por favor, não me venha achando que estou dizendo para desfazer amizades/relacionamentos com pessoas brancas porque a questão não é essa mesmo. O problema não é tu te contentar quando eles dizem entender nosso lado, acenam com a cabeça e fazem mmm-hmmmmn. O que fode é quando a gente fecha o bico pra não pagar de “chato” e pôr em risco a amizade/o emprego/ a bolsa/etc. O que mata é esse constante pisar em ovos que nos fizeram aceitar como “liberdade”. Assim sendo, entenda que não se trata da cor das pessoas com as quais tu te relacionas, mas sim sobre que postura tomam diante do racismo. Nem venha fazer a Kátia pro fato de que se omitir contribui para a longevidade e ferocidade dessa merda. De qualquer modo, não me use para chegar nos rolê todo(a) achegado(a) e esperando ser incluído única e exclusivamente porque compartilhas da mesma opressão. Como disse, não tem como teres sido empanturrado(a) de referências brancas e não exalar branquices. Não tem como alguém que só se alimentou de louro com manjericão arrotar alecrim com guiné. Então te ligue: observa primeiro; questiona depois; só palpita quando se não for como um cliente a ser atendido, mas como alguém co-responsável pela resolução; e livra-te da sandice de achar que só porque é coisa de preto podes vir de qualquer jeito. Nem me venha metendo banca de doutô(ra) querendo conduzir um bonde que tu só foi pegar andando. E, por fim, visto que a recorrência me obriga a frisar, tenha noção da branquice colossal em cobrar ter a mão os frutos do suor de (a)braços pretos sem antes semear.

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