REPORTAGEM
IDENTIDADE INDÍGENA: A LUTA DE UM POVO INVISIBILIZADO POR PRECONCEITOS
Encurralados pelo desmatamento e com precário acesso à saúde, educação e emprego, descendentes dos povos originários lutam pelo direito à identidade.
Por Ingrid Felix
Editado por Eduarda Motta e Lorrana Marino
Desde o início do processo de colonização do Brasil, indígenas são discriminados e excluídos da sociedade. A evidência dessas agressões é o apagamento contínuo desses grupos étnicos no cenário político e cultural do país. Silenciados, não podem defender suas terras, crenças, costumes e tradições.
“A partir dos procedimentos pertinentes, o último censo realizado em 2010 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), aponta uma população indígena de 896,9 mil integrantes espalhada em território brasileiro sob aproximadamente 305 etnias estruturadas em 274 idiomas”, afirma a cientista social Rosana Santos Rosa, bacharel pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC), em entrevista à Revista Torta.
Essas informações, entretanto, são desconhecidas pela maior parte dos brasileiros que reduzem essa diversidade cultural a estigmas como a ideia de que são ora pacíficos, ora violentos e não desejam aderir aos hábitos da modernidade. Não há o ensino de idiomas nativos nas escolas brasileiras, o número de representantes indígenas na política é mínimo e a mídia não tem interesse em noticiar reivindicações e acontecimentos desse grupo.
Representações dessas comunidades no setor cultural, como Iracema e O Guarani de José de Alencar, reforçam estereótipos e generalizações, sem inserir o ponto de vista de um indígena em suas produções. Essas noções irrealistas são resquícios do discurso proferido por europeus no Brasil colonial, e ressoam na fala dos brasileiros até hoje.
“Forçado com o exótico e incompreensível, os europeus tenderam a interpretar o ‘outro’ através de categorias familiares, como a raça pliniana ou os homens selvagens. Em suma, as imagens dos selvagens foram retratadas sempre nas lentes dos interesses, idéias e valores particulares dos grupos”, afirma o psicólogo e escritor, Gustav Jahoda.
Além disso, muitas aldeias são atacadas por garimpeiros, pelo agronegócio, e sofrem com a falta de políticas públicas direcionadas a elas. Reféns do avanço do desmatamento, do crescimento de centros urbanos, esses povos perdem seus territórios, são acometidos pela pobreza, fome e doenças.
“A situação é alarmante; diariamente temos notícias sobre ataques de garimpeiros em terras indígenas; índios que clamam ajuda ao STF; problemas graves de desnutrição envolvendo crianças indígenas. Pelo viés antropológico, a condição dos povos indígenas está enraizada na resistência”, lamenta Rosana.
Mesmo vivendo em grandes cidades, sofrem discriminação por sua etnia. Os estereótipos e a desigualdade social os atingem, reduzindo oportunidades de emprego e de acesso a saúde e educação de qualidade, além de serem vítimas dos discursos de ódio e intolerância.
Para entender a gravidade da discriminação que essa população sofre, precisamos considerar o conceito de colorismo. O termo indica a hierarquização de tratamento de acordo com características fenotípicas de uma raça.
Ou seja, indígenas com mais traços físicos típicos de sua etnia, como cor da pele e características faciais, serão mais excluídos da sociedade do que aqueles que apresentam menos desses atributos.
No artigo “Representações sociais construídas sobre os índios em Sergipe: ausência e invisibilização” fica explícito que no site Scielo, a maioria das publicações encontradas que são relacionadas à população indígena, correspondem a temas como tuberculose, carência nutricional, mortalidade infantil, anemia, suicídio, alcoolismo, dentre outros.
O psicólogo e professor, Marcus Eugênio Oliveira Lima, autor do artigo citado, interpreta essa realidade como uma “explícita a situação de exclusão social deste grupo”.
Em meio ao sistemático silenciamento e difamação presente no cotidiano das comunidades, personalidades desse nicho surgem por meio das redes para dar voz a esses grupos, representando sua etnia, conscientizando brasileiros e exigindo o cumprimento de seus direitos.
Alice Pataxó, estudante da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB), ativista e comunicadora, reside no Território Indígena Barra Velha e desde os 15 anos é liderança em sua comunidade, discutindo a diversidade desses grupos e suas lutas, incompreendidas pelo idxihí (homem branco). Seu Instagram tem mais de 70 mil seguidores e seu canal no Youtube tem cerca de 6 mil inscritos.
Outro nome conhecido é o de Katú Mirim, rapper, compositora, atriz e ativista da causa indígena. Em suas letras, Katú mostra a história da colonização pela ótica dos povos originários, assim como vivências de seu povo no meio urbano, ancestralidade e o uso indevido de atributos dos povos originários.
Maira Gomes, também chamada Cunhaporanga, marcou presença no aplicativo TikTok com vídeos de seu cotidiano e sua cultura. Residindo na comunidade Tatuyo, no Amazonas, Maira responde dúvidas sobre seu estilo de vida, crenças e costumes. Com mais de 3 mil e quinhentos seguidores nessa plataforma, também tem um público de 340 mil pessoas no Instagram.
Porta-vozes da causa são especialmente importantes durante o período de pandemia. Estima-se que até dezembro de 2020, cerca de 41.250 integrantes de 161 dos 305 povos originários se contaminaram com COVID-19. A taxa de mortalidade do vírus entre os indígenas é 16% maior que em outras populações, por isso, a vacinação desses grupos está classificada como prioridade.
“No que diz respeito à qualidade de vida e saúde, como mencionado anteriormente, a desarticulação da Fundação Nacional do Índio (FUNAI) precedida por uma política de desassistência à população, neste caso, também a indígena, frente à pandemia do Coronavírus, bem como a crescente ameaça de tomada de terras indígenas”, reitera Rosa.
Além dos empasses sociais e econômicos, é necessário considerar outros fatores ao comentar sobre a situação desses grupos durante a pandemia. Geralmente profissionais de saúde nos hospitais e postos não sabem falar línguas indígenas, assim como o paciente não tem domínio do português brasileiro, isso resulta num atendimento precarizado.
A discriminação e a desinformação sobre a cultura dos povos originários também acentua a má qualidade de tratamento aos grupos.
Em junho de 2020, por exemplo, três bebês yanomamis faleceram com suspeita de COVID-19 em hospitais públicos de Roraima, uma das crianças havia nascido em uma aldeia, mas por conta de complicações foi levada à maternidade, onde contraiu a doença, afirmou o presidente do Conselho de Saúde Indígena Yanomami e Ye’kuanna (Condisi-Y).
Entretanto, as crianças foram enterradas em um cemitério de Boa Vista (RR) sem o conhecimento da família ou qualquer representante yanomami. Indignadas, as mães pediram ao Governo Federal que devolvesse os corpos, uma vez que há rituais específicos de sua cultura em momento de luto, mas foram informadas de que só poderiam recebê-los quando fosse “sanitariamente seguro”.
Apesar de o Brasil ser um país profundamente influenciado por suas raízes culturais, seja na linguagem ou costumes, parece que sua população e governo não tem interesse em amparar a quem lhes proveu esse conhecimento.
Desamparados desde a colonização, indígenas ainda possuem um longo caminho a percorrer para assegurar seus direitos pela exigência de políticas públicas efetivas.
Tanto a área da saúde, quanto da educação precisam de assistência, assim como o respeito às delimitações ambientais de suas reservas e aldeias. A proteção desses povos e a inserção dos mesmos em cargos de poder é incontestadamente e urgentemente necessária.