AMIGO, estou AQUI

Gustavo Simas
ReViu
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11 min readDec 26, 2018

Um artigo sobre Paciência e Amizade e análise de The Last Guardian

Este texto também está disponível em versão áudio/podcast:

Parte 1: “Se a fase é ruim e são tantos problemas que não tem fim…”

Pelos meus idos 5 anos de idade colecionava dinossauros de brinquedo: triceratopes, pterodáctilos, brontossauros, tiranossauros e demais bichos gigantes jurássicos, triássicos e cretáceos extintos da face da Terra. Mais do que apenas mantê-los lustrados e brilhantes numa estante, intocáveis para apenas admiração e comentários de visitas, eu brincava e criava histórias com aquelas coisinhas de borracha (afinal eu era uma criança e não um colecionador aficionado, tipo um filatelista maníaco). Reproduzia os sons de grunhidos e rugidos, elaborava conversas fictícias, casos de vingança e paixão entre as criaturas, lutas com sequência de duelos e ascensão dos “dino-campeões”, algo estilo Mortal Kombat. Até hoje os tenho; a diferença é que agora estão guardados no fundo escuro de uma gaveta inferior de meu armário, pegando poeira, longe da luz solar, dos sorrisos infantis e da potencialidade da imaginação humana — isso me lembra que tenho de doá-los, embora seja uma tarefa difícil se livrar de coisas do passado

O fato é que, embora eu me entretinha boa parte do tempo sozinho, quando em companhia de amigos, vizinhos, colegas de aula e crianças desconhecidas que eu nunca tinha antes visto em minha vida, o ponteiro do diversímetro apontava para um valor maior. A brincadeira com os dinossauros — e com demais brinquedos também — era regada por emoção, saltos e risos de alegria e raiva (pois muitas vezes as lutas entre os dinossauros acabavam em lutas entre nós mesmos). De todo jeito, quando berros eram disparados a esmo ou, numa situação mais extrema, quando arranhões eram dados uns nos outros por brigas bobas, amigos surgiam para consolar, utilizando de todos os seus poucos, porém valiosos, conhecimentos em inteligência emocional interpessoal para evitar o lamentar por coisas pequenas: o escorrer de lágrimas que secam, o chorar por feridas que saram, o quebrar de bonecos que podem ser consertados.

Aos poucos eu entendia o valor da amizade.

Tais brincadeiras, atividades em conjunto, esportes e exercícios para correr, pular, rolar, se esconder, fazem do trabalho em equipe uma habilidade necessária. Evocam o espírito de grupo. Atiçam o pensamento no coletivo. O altruísmo. A empatia. Um líder, caso haja em determinada tarefa, deve ser capaz de localizar os objetivos e guiar o bando para alcançá-lo; como era tanto visto naqueles que inventavam jogos ou tomavam a iniciativa de sugerir qual seria a próxima brincadeira, de pegar os chinelos para fazer as traves e enrolar as meias para fazer a bola. Um bom líder é capaz, também, de identificar as características individuais do grupo e alocar cada um ao seu posto: aquele com bom reflexo como goleiro, o corredor como lateral, o com chute certeiro como atacante; melhorando, assim, significativamente a eficiência do trabalho. Um bom líder tem visão, persistência e paciência. Paciência.

Paciência.

Repito pois é a partir daí que pego o gancho para falar desse joguinho danado, belo, maravilhoso e problemático que é The Last Guardian (TLG).

“A gente espera do mundo e o mundo espera de nós. Um pouco mais de paciência” — Lenine

A Team ICO, estúdio desenvolvedor do game, criou poucas obras até o momento, porém, com um preciosismo à la Stanley Kubrick, todas elas são fascinantes: Ico e (a magnum opnus) Shadow of the Colossus. Lembro-me de desperdiçar tardes inteiras assassinando os impávidos colossos, correndo com Agro pelas pradarias extensas daquele lugar isolado na tentativa de salvar a “princesa”.

Portanto, numa expectativa tão intensa quanto quando Hideo Kojima anuncia uma nova produção, a cada ano, a cada E3 que passava, uma surpresa desagradável diferente surgia acerca de anúncios sobre TLG: modificações, atrasos, saída do designer Fumito Ueda do estúdio, atrasos, trocas de console (o jogo estava previsto como lançamento de PS3, acabou sendo um exclusivo do PS4) e mais atrasos.

O garoto fugindo de Trico…

Quase que The Last Guardian vira um mito como Half-Life 3.

Apesar dos pesados pesares, como todo bom líder, a Team ICO continuou com persistência e paciência. E, após 9 anos de gestação sob pressão da Sony e indignação/motivação de milhões de jogadores fãs em todo o mundo, o estúdio deu luz ao famigerado Último Guardião, em 2016. No fim do atual ano (2018) tive a oportunidade de pôr as mãos no dito cujo, e embarcar na jornada de trabalho em equipe e amizade entre um humano e uma criatura mítica.

Em síntese inicial, posso dizer que The Last Guardian é uma lição de paciência e citar Chris Martin do Coldplay na música X & Y (e também NakeyJakey na Rap Review):

“Eu quero te amar, mas não sei se consigo…”

Parte 2: “Os seus problemas são meus também…”

Fumito Ueda, o projetista, designer, produtor, diretor e escritor de The Last Guardian, utiliza de uma técnica denominada “design de subtração”, a qual elimina quaisquer elementos “inúteis” de ambiente (visuais e sonoros); “inúteis” no sentido de que não acrescentam em nada, ou muito pouco, ao sentido designado para a obra. Um minimalismo cuidadoso, que possibilita uma atmosfera apropriada, direcionada a focar na relação entre o garoto e o chifrudo dragão-cachorro-dinossauro Trico.

O garoto apontando o disco-escudo-espelho para a cara de Trico…

A história se apresenta como um analepse (flashback) do homem habitante de um vilarejo asiático fictício, contando suas aventuras em conjunto com a criatura por meio de narração em off, enquanto controlamos a versão jovem do narrador.

Acordado num local desconhecido com a besta ao seu lado, o menino deve buscar liberdade e o retorno a sua casa. Começa a perceber que necessita da ajuda do dragão-cachorro apelidado de Trico (em japonês: toriko, significando prisioneiro, cativo). Com isso o retira das correntes e o alimenta, iniciando um laço tênue para uma futura relação pois, assim como o garoto, Trico almeja liberdade.

Como “liberdade” entendemos aqui a independência no sentido físico e a autonomia pessoal, a possibilidade de agir sem as amarras ou rédeas de outrem, como escrevi em outro artigo sobre. Adiciona-se, então, a questão de que a amizade pode não propiciar liberdade aos envolvidos; pelo contrário, pode reduzi-la. Mas retornaremos a isso em breve…

“Liberdade significa responsabilidade. É por isso que tanta gente tem medo dela” — George Bernard Shaw

Um ponto interessante durante a jornada é que o narrador nos ajuda não somente a entender o contexto da narrativa, mas inclusive a encontrar caminhos alternativos, caso estejamos perdidos ou sem destino aparente para seguir (algo que acontece com frequência). Uma sugestão do homem nos possibilita a captar uma ação antes não pensada ou visualizar uma forma distinta e correta de prosseguir.

A união faz a força.

E nos permite encontrar uma saída. A inteligência (que é a inteligência do jogador) e tamanho diminuto do garoto aliados à força e asas do bichano se integram de maneira harmoniosa. Um disco-escudo-espelho encontrado pelo guri oferece o uso de poder misterioso: raios estrondosos disparados da cauda de Trico em direção ao local de luz apontado. Tal poder permite destruir obstáculos, abrir passagens, eliminar os inimigos-estátuas impertinentes que querem raptar o piá para uma terra além do alcance das garras salvadoras do cachorrão.

Com o tempo sabemos que Trico não é o único de sua espécie. Na verdade é o único de sua espécie que se encontra num estado de liberdade: os demais são todos prisioneiros alienados, controlados pelo “Senhor do Vale”, uma entidade intrigante e bizarra que reside no ponto mais alto do Vale em que nos encontramos. Inimigos-estátuas são emissários do Senhor, e a propagação de ondas sonoras/mágicas/eletromagnéticas feitas por artefatos específicos provoca alucinações e agitação nas criaturas da espécie de Trico, sendo a forma de mantê-los sob comando, na ignorância; algo não muito diferente do que a mídia faz conosco atualmente, mas isso é assunto pra outra hora…

Além disso, de mesma forma com o passar do tempo, a relação entre ambos se estreita, o que causa uma aproximação estratégica no sentido de possibilitar a ordem de ações ao chifrudo. Agora podemos indicar movimentos, saltos, inimigos para o Guardião atacar. Isto é útil e necessário, no entanto há a iminência da paciência, caso contrário a irritação suplantará nossas virtudes: grande parte das vezes Trico não entenderá seus comandos, reclamará, urrará, abanará a cauda, irá para o caminho errado, dentre outras ações de um “pet rebelde”. Aqui não sei exatamente se é algo proposital inserido pelos desenvolvedores, ou apenas falha de programação. Prefiro acreditar na primeira alternativa.

O garoto observando Trico raivoso…

Quebras-cabeças. Quebra-cabeças everywhere. O empurrar de caixas, o puxar de alavancas, o pressionar de botões, o escalar de objetos. Tudo é de relativa facilidade. E tudo se repete, de maneira paulatina, segmentada não “fazendo da história algo fluido.

Ascendemos em direção ao ponto mais alto do Vale, para escapar dos gigantescos muros que cercam o lugar. E caímos. Seja por conta de desmoronamentos das antigas estruturas pétreas ou por ataques de pobres tricos alienados. Na alegria ou na tristeza,os dois resistem.

“A amizade duplica as alegrias e divide as tristezas” — Francis Bacon

Evolução é algo evidente na aventura, tanto na relação entre ambos os personagens quanto na fisionomia e personalidade do Guardião. O início de chifres curtos, asas cortadas, pelos ralos e pele machucada se distingue da aparência de um Trico mais além. Quedas e lutas afetam o seu visual. Quedas, muitas quedas. É preciso se habituar e ser paciente com tantas.

Quanto ao aspecto psicológico do animal, percebemos claramente as suas variantes comportamentais: medo, raiva, preguiça, excitação, felicidade, fome, ansiedade, cansaço… É possível descrever uma longa lista do espectro idiossincrático do bicho; características que são majestosamente evidentes em cada situação. Pela convivência até somos capazes de identificar o que Trico está tentando comunicar com seus grunhidos, bocejos e remexidas (já que o garoto não é o Dr. Dolittle, portanto não capta nenhum tipo de linguagem verbal por parte do grandão).

Afinal, com a convivência não conseguimos entender os cacos, manias e esquisitices de nossos amigos e o que eles querem dizer em cada momento?

Tudo é belo em aparência no mundo de The Last Guardian. Porém, precisamos falar sobre os aspectos técnicos.

O garoto caminhando cuidadosamente nas costas da criatura…

TLG nos oferece uma lamentável taxa de quadros por segundo, especialmente quando em céu aberto (em torno de 20fps)— o que me faz crer que o minimalismo falhou. Talvez por ter sido remanejado durante a transição de consoles, já que o game foi, a princípio, projetado para a geração passada. A fluidez no vídeo acaba apenas sendo satisfatória nos modelos mais avançados (e caros) do Playstation: versão Pro.

As opções no design de controle e jogabilidade são diferentes de qualquer outro jogo que conheço. Os comandos para caminhar e controlar câmera são padrões, contudo a forma de saltar, se agarrar automaticamente nos pelos de Trico, assim como a inutilização de diversos botões frustram. Fora o menu simples demais, o qual poderia ser mais elaborado, apresentar algum mapa, códex ou outra forma de livro de informações, embora isso iria de encontro ao ideal “design de subtração” de Ueda.

O ajuste automático de câmera é decepcionante (para não dizer “irritante”). Se locomover em espaços apertados quando se está acima de Trico causa um enlouquecimento no posicionamento da câmera. No fim, você acaba perdendo tempo para ajustar manualmente a posição da mesma, pois o algoritmo decidiu visualizar a parede.

E um quesito estranho: durante a jornada pode se ter a sensação de que a obra é longa demais; contudo, após o fim, fica a estranheza de que não foi longa o bastante, majoritariamente por conta de momentos dejà vu promovidos pela repetição de espaços e quebra-cabeças.

The Last Guardian fica como um sucessor espiritual de obras passadas da Team ICO, se localizando no mesmo universo — o qual, com certeza, pode e deve ser explorado em mais jogos, filmes ou livros futuros. TLG acaba dando um gosto de versão inferior adaptada de Shadow of the Colossus, com um intuito diverso.

Apesar dos óbices, o fato é que O Último Guardião se destaca como um jogo memorável e um grande desafio de paciência. Mas, afinal, quem esperou 9 anos pelo lançamento isto não é grande problema.

Parte 3: “O tempo vai passar, os anos vão confirmar…”

Repensando sobre a jornada e retomando um assunto comentado na Parte 2 deste artigo, vemos que não necessariamente uma amizade proporciona liberdade aos envolvidos, em termos mais matemáticos podemos dizer que ambas não são variáveis diretamente proporcionais — a não ser que tratemos o significado “amizade” com um sentido bem definido o qual exclui esta possibilidade. Obviamente Trico é o personagem principal, herói e figura mor da obra; tudo acontece por conta da existência de tal criatura, tanto que o garoto é apenas tratado como “garoto”, sendo irrelevante o seu nome para a história.

Ao analisar o comportamento do menino, vemos que suas ordens ao Guardião caracterizam uma situação de comandante e subordinado, um líder persistente e paciente que indica o caminho a ser seguido. Este ponto é necessário para o prosseguimento da aventura, claro, já que o dogão é desprovido de inteligência para tal; todavia vemos que a amizade dos dois é induzida por conta da situação de urgência, a necessidade sendo mãe.

“A liberdade é a possibilidade do isolamento. Se te é impossível viver só, nasceste escravo” — Fernando Pessoa

Assim, verificamos que estamos lidando com uma amizade verdadeira e sincera, apenas no fim da história, a qual evito aqui contar para omitir spoilers… Inclusive mais do que comandar, o garoto se torna responsável por Trico.

A questão, então, é potencializar o fator nutritivo, empático e mutuamente benéfico da relação, tão como impedir que a amizade (e isto se estende para relacionamentos diversos) se torne dependência, a qual pode ser erroneamente reconfortante quando vista por uma lente conformista, pois ofusca a verdade.

Saliento aqui que, ao longo do texto, tratei o Guardião como sendo a criatura, mas talvez minha interpretação esteja completamente errada e o Guardião seja o garoto. Ou ambos, caso tomemos uma interpretação espiritual de conexão entre as almas dos dois seres, etc…. Expresso aqui que aceito esta possibilidade, mesmo assim Trico não deixa de ser um bicho, um pet, que merece atenção, obviamente, mas que sabe se cuidar sozinho. Embora a amizade com o menino seja real, e embora brincar com este “dinossauro” tenha sido experiência interessante, me esquivo de humanizar a criatura e creio também que seja esta a intenção da obra.

O longo flashback acaba, eventualmente.

Retornamos ao presente.

E, enfim, como Milton Nascimento canta: “amigo é coisa pra se guardar do lado esquerdo do peito, mesmo que o tempo e a distância digam ‘não’ ”. E tanto todo o processo de desenvolvimento quanto a obra em si de The Last Guardian justamente servem para nos relembrar de reencontros, da existência de uma luz no fim do túnel, do valor da persistência, da paciência e do poder de uma amizade.

The Last Guardian™ desenvolvido pela Team ICO
Screenshots tirados por mim
Texto dedicado ao meu amigo Diogo Zimmermann

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Gustavo Simas
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Escreve sobre o que dá na telha. Não sabe tricotar, mas sabe a diferença entre mal com “u” e mau com “l”