Claramente são ATORES

Gustavo Simas
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8 min readSep 3, 2019

Um artigo sobre Cinema e análise de Era Uma Vez Em… Hollywood

Cliff Booth cumprimenta Marvin Schwarz, enquanto Rick Dalton assiste ao gesto

Este texto pode conter spoilers de Era Uma Vez Em… Hollywood e outras obras de Quentin Tarantino

Parte 1: Apresentação

O cheiro de pipoca. Os displays mostrando as próximas sessões. Os cartazes coloridos e o preço da pipoca média sendo quase o dobro do preço do ingresso. O som com mais de 30 mil watts de potência e o telão com mais de 300 metros quadrados. Trailers e avisos dos cinedefenders.

Eis um cinema.

Uma vantagem das tardes de quartas-feiras é a menor quantidade de pessoas nas sessões, logo maior espaço livre, logo cadeiras especiais disponíveis. A não ser que sejam Reis Leões ou Vingadores, aí as sessões estão relativamente cheias, mesmo em tardes de quartas-feiras.

Mas não foi o caso para este filme.

Longa e custosa, a obra atrai mais o público adulto, os conhecedores do diretor e fãs dos atores presentes na película, os curtidores de ação e os sedentos por sangue. Além, é claro, dos cultuadores dos anos 60 e 70, os nostálgicos por épocas que nunca viveram. E o filme atende esta demanda; oferta o brilhantismo e charme da era dos hippies, da fase jovem dos baby boomers, do Batman de Adam West, das propagandas de cigarro na televisão. Época dos dramas de faroeste compostos por figuras como o americano John Ford e o italiano Sergio Leone: Era Uma Vez No Oeste, Três Homens em Conflito, O Homem Que Matou o Facínora. Dramas de cowboys, os quais este filme tanto referencia e reverencia.

Durante um longo tempo achei que este seria o primeiro filme de Quentin sem grandes mortes. Fui otário e achei errado. Um dos meus amigos teve um ataque de risos ao fim das 2 horas e 40 minutos de exibição. O outro classificou esta obra como sendo “a pior que já assistiu em toda a sua vida”.

O relevante aqui é que, independentemente disto, o filme foi capaz de promover uma discussão após o rolamento dos créditos. E, inevitavelmente, fazer com que não chegássemos a um consenso.

Eis um filme de Tarantino.

“O cinema não tem fronteiras nem limites. É um fluxo constante de sonho” — Orson Welles

Cliff Booth dando um pau em Bruce Lee

Parte 2: Interlúdio

Da palavra em grego κίνημα (kinema) o substantivo ilegível aí tem o significado de “movimento”. Desde a invenção do cinematógrafo por Auguste e Louis Lumière as produções foram utilizadas para o ilusionismo, para a educação, para uso como complemento a performances, para comércio e propagandas, para fins eleitorais, para a exposição de fatos em documentários — mas todos sabemos que documentário não é filme de jovem; jovem é slackline, é Bruno de Luca…

Enfim, o que interessa é que, ao longo de algumas décadas, tais produções começaram a ser levadas a sério em termos financeiros e artísticos, o que acabou levando certa região do sudoeste arenoso estadunidense a ser o polo das fantasias e dos sonhos americanos: Hollywood.

Logo no início de Era Uma Vez Em… Hollywood, ao serem apresentados, o nome de Leonardo DiCaprio (Rick Dalton) é aplicado em grandes amareladas letras serifadas logo abaixo do personagem de Brad Pitt (Cliff Booth), e vice-versa, numa ironia de montagem entre o personagem ator e seu dublê. Dalton se vê numa fase decadente por perceber que é sempre derrotado ao fim de todas as histórias: o ator apenas interpreta os vilões carrancudos dos longas, que é comumente abatido pelo moço-herói jovem galã. E esta ideia é exposta e reforçada por Marvin ̶S̶c̶h̶w̶a̶r̶t̶z̶ Schwarz (Al Pacino), produtor sênior que aparece como um diabo racional para modelar um cliffhanger induzido e dar o pontapé à jornada de reinvenção de Dalton.

Booth, companheiro complacente, segue as ordens de seu amigo-patrão e exerce o ofício de dublê/chofer/faz-tudo sem grandes contrariedades, evitando o desapontamento do amigo (e uma possível demissão). Quando precisa desviar da rota habitual para seus afazeres pessoais, Cliff retorna com o Cadillac DeVille tinindo, sem qualquer amassado ou mancha de sangue aparente… De determinada forma, Cliff é o espelho para uma versão controlada e sisuda de Rick; uma figura forte de suporte para estabilizar um explosivo artista em crise.

E crises são as especialidades de Leonardo: o ator que tem seu próprio método além de um Stanislasvki ou Meisner (e que suou por 25 anos até obter seu prêmio da Academia por ter lutado com um urso no gelo em O Regresso) faz uma das melhores performances de sua filmografia ao interpretar um ator que almeja reconhecimento — eis um belo inception.

Acompanhamos alguns meses (ou anos; os vai-e-volta da edição são incertos) de altos e baixos na carreira montanha-russa de Dalton, caminhando pelos bastidores das produções em que o astro atua, deslumbrando fragmentos de séries como The 14 Fists of McCluskey, onde Rick encarna o sargento anti-nazista Mike Lewis; e Bounty Law, a qual o torna nacionalmente famoso como Jake Cahill, um caçador de recompensas que captura sem misericórdia e escuta os clássicos Gritos de Willhelm de suas vítimas. Assistimos aos trabalhos da indústria cinematográfica, com seus estúdios movimentados, produtoras e distribuidoras ambiciosas, cenários móveis, figurinos detalhados, equipamentos caros de fotografia, luz, som… Rick esbanja (enquanto pode) da fama por conta de um gênero que logo entraria em saturação. Maverick, Bonanza, Wild Wild West e Rawhide são alguns dos exemplos de famosos seriados faroeste transmitidos noturnamente pelas tantas emissoras de siglas semelhantes: ABC (American Broadcasting Company); NBC (National Broadcasting Company); CBS (Columbia Broadcasting System).

E entre esquecimento de falas, claquetes e cortes das emissoras, Dalton segue num “daltonismo” artístico narcisista, balbuciando efusivamente xingamentos a si mesmo e chutando tudo nos trailers-camarins para receber elogios e atingir a perfeição.

O fio narrativo de Era Uma Vez Em… Hollywood se divide em três cabeças: Dalton, Booth e Sharon Tate, a então cônjuge do diretor franco-polaco Roman Polanski (diretor de filmes como O Bebê de Rosemary, Chinatown e O Pianista). A Sharon Tate de Margot Robbie é ingênua e silenciosa, mas não mais tímida por conta disso. Suas aparições são expressas pela dança e pelo pop-rock de garagem progressivo, ao som de bandas tais como Paul Revere & The Raiders e Deep Purple. Sharon se apresenta como uma bela intocável num ambiente de música (e ambiente de drogas), reconhecida pelo público que lembra de sua presença em O Vale das Bonecas, e expressa seus próprios sorrisos de orgulho ao testemunhar sua atuação caricata em Arma Secreta contra Matt Helm. O clima da narrativa é construído em passos progressivamente tensos, ainda mais para os espectadores que já conhecem (com familiaridade ou apenas vagamente) os cruéis fatos do caso Tate-LaBianca.

Embarcamos de carona nos conversíveis luxuosos de 60, ora com Booth e Dalton, ora com Tate e Polanski. São cenas contemplativas salpicadas de um aspecto meditativo e hedônico ao longo das ruas de L.A. com seus estabelecimentos e cartazes luminosos, com suas palmeiras ao vento e drive-in. No entanto, é bem verdade que as cenas contemplativas estão presentes em demasia, algo que estende significativamente o filme para uma prolongada sessão enuviada de prolixidade.

Para incrementar o elenco, Kurt Russell, já conhecido de Tarantino em Os Oito Odiados e em À Prova de Morte (no qual interpretava, olhem só, um dublê), aparece como um narrador-turista convidado, realizando seu trabalho em off durante uma parte final do filme, no intuito de preparar os espectadores para o gran finale tarantinesco. Mas logo desaparece, sem as devidas despedidas. Isto pois o diretor parece querer explorar diferentes técnicas de construção filmográfica utilizadas no Cinema, sem necessariamente fornecer justificativas específicas para tal.

Sem justificativas específicas também é o terceiro ato brisado e catártico paradoxal da violência anti-violência. Na visão do diretor é um cruel fim que envolve a dupla Cliff-Rick e a família hippie Manson, de Charles Manson, um carinha macabramente sorridente que aparece enigmático no primeiro ato, num foreshadowing pontual, sendo interpretado por Damon Herriman (o qual interpreta o mesmo personagem em Mindhunter).

E o líquido rubro rico em hemoglobinas se espalha na tela.

Afinal, filme de Tarantino sem sangue é golpe.

“Num filme o que importa não é a realidade, mas o que dela possa extrair a imaginação” — Charles Chaplin

Sharon Tate dançando em seu quarto

Parte 3: Créditos

Tarantino joga bem com seus dotes cinematográficos e conduz a obra de maneira lúdica. A odisseia de ascensão, queda e redenção de Rick Dalton é representada pelos seus papéis ao longo da década de 60: Jake Cahill, Mike Lewis e Caleb DeCoteau (pronunciado “dêcatû”). Quentin apresenta um belo tributo às antigas películas ao iniciar o filme em preto e branco e com poucas falas, progressivamente colocando o jukebox para tocar um mix de técnicas que iluminam um espetáculo expositivo da indústria cinematográfica. Obviamente, Era Uma Vez Em… Hollywood exalta o cenário de uma época específica (final dos anos 60), de um local específico (Califórnia), realizando algumas citações ao Cinema Estrangeiro ao referenciar as produções italianas, no caso, os spaghetti western. De fato, Tarantino não esconde a influência destes filmes macarrônicos em sua persona artística: o próprio Django Livre teve traços descendentes de Django (lançado em 1966 por Sergio Corbucci) e Os Oito Odiados trouxe o Oscar de Melhor Trilha Sonora Original ao exímio maestro italiano Ennio Morricone (que trabalhou em outras fábulas como Era Uma Vez No Oeste e Era Uma Vez Na América).

Quentin ainda brinca de Deus e muda a História ao mudar os assassinatos: provoca uma sensação estranha ao fazer diversão com sangue e membros decepados, ao fazer com que a violência se torne entretenimento popular e viciante, tendo a participação especial de um pitbull e um lança-chamas. E tudo isto para um propósito visto em demais filmes do diretor: alavancar uma ação memorável anti-nazista, anti-racista, anti-terrorista — porque preconceito é coisa de cigano...

Nesta fábula hollywoodiana, alguns personagens são apresentados e nunca utilizados. Alguns são modificados (ou, sob outro ponto de vista, com características acentuadas) para se tornarem ainda mais caricatos, como é o caso de Bruce Lee (Mike Moh). Certas atuações, como a de Robbie e Pacino, são menos aproveitadas. Contudo DiCaprio, como era de se esperar, possivelmente estará na lista do Oscar. E William Bradley Pitt, em sua atuação sem grandes explosões, todavia arguta, também poderá se ver como elegível na lista de melhor ator coadjuvante.

De todo modo, Era Uma Vez Em… Hollywood se mostra como uma obra distinta do tradicional pulp/exploitation/chanbara de Quentin ao ter maior sensibilidade e servir como uma ode à Hollywood (ou uma “hollyode” heh). Na verdade, todo o rol cult já produzido por Tarantino engrandece a sétima arte.

E seu próximo filme, o qual (em suas palavras) será o último, idem.

And that’s a bingo.

“O cinema é o modo mais direto de entrar em competição com Deus” — Federico Fellini

Rick Dalton fumando p da vida, junto com seu dublê Cliff Booth

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Gustavo Simas
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Escreve sobre o que dá na telha. Não sabe tricotar, mas sabe a diferença entre mal com “u” e mau com “l”