Vida longa ao REI

Um artigo sobre Nostalgia e análise de O Rei Leão

Gustavo Simas
ReViu
9 min readJul 26, 2019

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Parte 1: Gosto muito de te ver, leãozinho…

Eu e meu primo chegamos cedo naquele oceano de cabeças. Crianças acompanhadas dos pais, jovens se fotografando, risos de adolescentes. Pretendíamos assistir à sessão das 20h30, porém estava lotada. A das 21h00 também. A de 21h30 era em 3D, algo mais caro e desnecessário segundo o nosso comum juízo. Restaram-nos os poucos bancos ainda disponíveis da sessão das 22h00.

E isto me fez perceber claramente que a nostalgia emana um poder impressionante. Uma sensação capaz de preencher sessões de cinema, de lotar estádios, de esgotar ingressos na pré-venda. Olhei ao redor e percebi: aquele ambiente estava salpicado de continuações e remasterizações. Dentre os filmes em cartaz se destacavam Toy Story 4, Turma da Mônica: Laços e, a estrela da noite, O Rei Leão. Além, obviamente, dos postêres de Malévola 2 e O Brinquedo Assassino com o termo “Em Breve” logo abaixo (e do trailer do último filme da nova saga de Star Wars que era transmitido incessantemente nos monitores de divulgação). Uma cinematografia que tenta reinventar sucessos passados para reproduzir em cifras múltiplas a bilheteria dos antecessores, para recontar uma história já conhecida, para agradar um conhecido público antigo e atrair um admirável público novo.

E ainda esqueci de contar sobre o que tivemos/teremos este ano com mais um filme de Pokémon, remake de Aladdin, continução de Godzilla (agora com a “novidade” de crossovers e universo compartilhado com King Kong), reboot de Hellboy, refilmagem de Dumbo, repaginação de Homens de Preto, quinto filme de Rambo, sexto filme de Exterminador do Futuro

E não apenas no Cinema, podemos estender a lista somando o retorno dos peculiares Los Hermanos e de uma das maiores duplas da história da música brasileira: Sandy & Júnior (Chitãozinho e Xororó ainda estão no topo).

Parece que todo sucesso está fadado a ser refeito.

Mas não necessariamente com a mesma qualidade de seu original.

A história de O Rei Leão é a mesma (spoilers a seguir, caso você nunca tenha visto o filme de 1994 e, por conseguinte, não teve infância). O rei Mufasa e a rainha Sarabi geram Simba, herdeiro de todas as terras que o sol toca. Porém Scar, irmão mais novo do rei, inveja a posição e a deseja fervorosamente.

Scar mata Mufasa.

Scar faz Simba fugir.

Simba cresce. Volta. Mata Scar. E retoma sua posição de direito. Fim feliz.

A diferença entre esta película de 2019 e ade 1994 se dá pela tecnologia. Não é um live-action pois não foi feita captura de movimentos. Pode ser considerado, ao invés, uma animação hiper-realista. Os atores pisavam na savana de um mundo virtual com óculos VR (Virtual Reality) para explorar e se familiarizar com o espaço, similar a algo que Steven Spielberg fez em Jogador Nº1 para dirigir as cenas.

O diretor Jon Favreau, maestro das câmeras em Homem de Ferro (2008), Homem de Ferro 2 (2010) e no live-action Mogli, o menino lobo (2016) pesquisou documentários naturalistas do pioneiro britânico David Attenborough pela BBC Natural History Unit, além de demais da National Geographic. A equipe de produção esteve em campo para tentar (e conseguir) reproduzir com fidelidade os terrenos africanos.

O pequeno Simba olhando pro nada, pensando em tudo

Houve fidelidade, também, na musicalidade. Há preservação do espírito musical da obra original. A abertura com o nascer do sol e vocais em zulu de Lebohang Morake em Circle of Life (Ciclo sem Fim) avisa que “lá vem o leão pai”. Mufasa canta. Simba canta. Scar canta. E todas as famigeradas canções escritas por Tim Rice e harmonizadas por Elton John retornam para exaltar os ânimos, com algumas novidades influenciadas pelo musical da Broadway.

Finalizando na condução desse paraíso melódico, o sagaz Hans Zimmer (que ganhou o Oscar de Melhor Trilha Sonora pela versão de 1994 e famoso pelos seus trabalhos com Christopher Nolan em A Origem, Batman: O Cavaleiro das Trevas, Interestelar) novamente não desaponta com seus dons em produção musical.

A bem da verdade, além do poderio tecnológico da Disney, outra diferença visível (ou melhor, audível) na obra são as dublagens. Donald Glover dá voz ao Simba crescido, tendo Ícaro Silva como o paralelo brasileiro; Beyoncé vocaliza Nala, e temos Iza na versão pt-br. O único ator mantido é James Earl Jones como Mufasa. Assim, o elenco se apresenta mais contemporâneo e representativo.

E, em meio a sussurros de crianças e sorrisos de pais mesclado com chilreios, barridos, urros e mugidos, Rafiki aparece no alto da Pedra do Rei segurando Simba, filho de Mufasa.

Simba, o Herdeiro.

Simba, o Príncipe.

“Quanto mais próximo o homem estiver de um desejo, mais o deseja; e se não consegue realizá-lo, maior dor sente” — Nicolau Maquiavel

Simba encara Scar, o usurpador

Parte 2: Para desentristecer, leãozinho…

Entretanto Simba não segue nada similar ao que o florentino Nicolau Maquiavel recomenda em O Príncipe. O ingênuo leãozinho é facilmente influenciável por seu tio Scar; aventureiro e aspirante a corajoso, o filho do rei desobedece ordens paternas e vai explorar um cemitério de elefantes com Nala (sua futura rainha). Logo é repreendido por hienas encardidas, criaturas desprezadas/tornadas desprezíveis por sua condição de inimizade inerente com os Panthera leo.

Vemos que as hienas são bichos excluídos da “sociedade animal”, do convívio luminoso da savana. E Scar aparenta demonstrar empatia pelo ̶p̶r̶o̶l̶e̶t̶a̶r̶i̶a̶d̶o̶ bando/alcateia ao propor um acordo de usurpação do trono, de inversão de domínio para ascensão monárquica. O leão de juba preta galga os passos da cobiça, desenvolve com sagacidade seu plano de ataque e supressão, e monta uma arriscada estratégia (em grego strateegia, em latim strategi, em francês stratégie…) de golpe político, incitando uma revolução discreta, mas poderosa.

“As revoluções são a locomotiva da história” — Karl Marx

Scar e as hienas após a morte de Mufasa

Scar, figura completamente antiTética (e antiética) em relação a Mufasa, se desvia de um preceito de virtude moral ideal, atemporal e imutável ao desassociar tal noção do conceito de virtude política. Scar arranca de si os cabrestos da ortodoxia humanista, ignora a tradicional arte de governar bem e visa unicamente a ascensão e manutenção do poder. Scar é eloquente e implacável e sabe mexer os paus para construir uma cabana (ou uma represa). Portanto, sem intenções de cair aqui no poço abismal de uma discussão política, Scar expressa traços de um comunismo disfarçado que se revela tirano e, consequentemente, fascista.

“Uma ideia torna-se uma força material quando ganha as massas organizadas” — Karl Marx

E Simba samba o samba de Scar e acaba por se autoexilar. Sente-se responsabilizado pela morte do pai e carrega as em si as palavras do finado rei: “Tudo o que você vê faz parte de um delicado equilíbrio. O Ciclo da Vida”. E mensagens como esta farão parte da jornada do heroi.

No exílio, os ideais do pequeno príncipe são confrontados quando encontra um javali parrudo e um suricato verborrágico num marasmo de planície. Timão e Pumba seguem a filosofia Hakuna Matata™, frase em suaíle (linguagem da África oriental) que significa “esqueça todos os seus problemas”. Com o impacto deste termo e de identificar seres que vivem deboas na lagoa como aqueles, Simba vai, aos poucos, descarregando seu fardo de culpa. O ex-príncipe reaprende a pensar, a se comportar e a se alimentar (ao adotar uma dieta não-carnívora, agora apenas com “grudes”).

Pumba e Timão estão extremamente confortáveis em sua linha absurdista, repousam nas redes do niilismo e pronunciam em voz alta: “A vida não tem o menor sentido”. A relação amistosa do trio é duradoura, e leva a cenas de simplicidade e beleza como quando discutem sobre a existência dos pontos brilhantes no céu noturno. Timão sugere que estrelas são vagalumes distantes; Pumba afirma que são bolas de gás; já Simba repete as palavras do pai: “são reis antigos que olham por nós”. Uma visão sensível, mas irrisória. Para Timão e Pumba não há sentido necessário para a inexplicável aventura no espaço e tempo que é a vida. Como o garoto fantástico de James Barrie, Peter Pan, o duo humoriza as mais terríveis desgraças, estão certos de sua identidade e provavelmente também pensam que “morrer seria uma grande aventura”. Para Timão e Pumba não há ciclo da vida. Tudo é uma linha. Você nasce, cresce, come uns grudes e morre. Simples.

As risadas do suricato e do javali baqueiam a mente do leão e desconstroem seu pensamento pueril. As risadas do público no cinema contribuem para intensificar a ideia da dupla piadista, e para provar que os espectadores estão evoluindo racionalmente com Simba, saindo dos ideais mágicos de outrora, prosseguindo em sincronia com o personagem.

De toda forma tais ideais irão retornar parcialmente ao se reencontrar Nala, a leoa que foge, em busca de ajuda, do reino catastrófico de Scar. Conversas vem e vão. O progresso da narrativa é previsível, mesmo para os novos espectadores, pois já estamos acostumados com o enredo de odisseia clássica: em casa, longe de casa, em casa.

O contra-golpe é planejado com rapidez. Timão e Pumba acompanham o esquema e aceitam, com uma leve relutância, afirmando que admitem que talvez haja mesmo um ciclo sem fim, pois “a linha da vida pode se encurvar um pouco”. Os companheiros de batalha se organizam para uma blitzkrieg na Pedra do Rei e avançam para derrotar o temível Usurpador, com auxílio também de Zazu, o pássaro calau mensageiro, servidor fiel do legítimo rei.

Simba ataca Scar.

As hienas descobrem as reais motivações de Scar.

Simba retoma sua posição de “direito legítimo”. Restaura o reino. Fim feliz.

Simples. Como uma linha com início, meio e fim.

“Quem se torna senhor de uma cidade habituada a viver em liberdade e não a destrói, espera para ser destruído por ela” — Nicolau Maquiavel

Simba encara Zazu, o pássaro mensageiro

Parte 3: Um filhote de leão, raio da manhã…

E com o nascimento de Kiara, filha de Simba e Nala, rotacionamos mais 2π radianos no ciclo da vida...

“A história se repete, a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa” — Karl Marx

Enfim, O Rei Leão consegue resgatar a história original e lucrar pela nostalgia. Como escrito neste outro artigo, a nostalgia muitas vezes se dá como sendo a sensação de que os eventos passados foram melhores do que realmente pareceram, concomitante ao pensamento comparativo da situação atual, resultando numa saudade amplificada dos fatores positivos da experiência. Mas devo admitir que meus olhos ficaram turvos ao assistir Mufasa despencar do desfiladeiro, ainda mais quando olhei para a esquerda e percebi um pai abraçando seus dois filhos que choravam compulsivamente…

Apesar das críticas quanto à inexpressividade das figuras fotorrealistas, os personagens de O Rei Leão continuam carismáticos e bem definidos em suas próprias filosofias. Em relação ao vilão, como já comentei sobre neste outro artigo, Scar se revela como um bravo governante pérfido, que planeja apenas a obtenção do poder e não o seu consequente exercício, o que acaba por desbalancear A Grande Cadeia do Ser. Com a inversão de posições hierárquicas na Natureza, como proposto por Platão em seu diálogo Timeu, há uma ruptura nos degraus da scala naturae, a Escada Natural, o que resulta em desequilíbrio de relações e caos. Assim, para o “Bem Maior”, esta representação deve se manter intacta, quase como uma divina Escada de Jacó (ou uma Stairway to Heaven).

Rafiki, o macaco mandril ancião/pajé

Quanto aos avanços audiovisuais, o mundo da tecnologia cinematográfica atual fascina com ferramentas de captura facial, como a Anyma e Medusa, utilizadas em Vingadores: Ultimato, em conjunto com câmeras acopladas a capacetes (helmet-mounted cameras, HMCs) e técnicas de pós-processamento, como Deep Rendering. Possibilidades em CGI (Computer-Generated Imagery) até mesmo conceberam um novo termo aos profissionais da área, os engenheiros de imagem (ou da imaginação): Imagineers. Publicações de pesquisas em computação gráfica desenvolvidas pela Disney podem ser encontrados neste link. Recomendo, de mesma forma, os papers da Pixar, disponibilizados por este link.

Assim, estas benesses tecnológicas da produtora se alinham com a tecnologia disponível em complexos de cinema, como salas IMAX 3D, Dolby Surround (“all around you”), Poltronas D-Box e um rol de avanços que caminham a passos largos…

Até que outras tecnologias suplantem as antigas e mais obras sejam readaptadas, na mira de agradar um conhecido público antigo, atrair um admirável público novo e completar mais uma volta neste ciclo sem fim.

“Os homens quando não são forçados a lutar por necessidade, lutam por ambição” — Nicolau Maquiavel

Simba encara Timão e Pumba

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Gustavo Simas
ReViu

Escreve sobre o que dá na telha. Não sabe tricotar, mas sabe a diferença entre mal com “u” e mau com “l”