O Deserto e seus TEMORES

Um artigo sobre Colaboração e análise de Journey

Gustavo Simas
ReViu
7 min readNov 4, 2018

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Este texto também está disponível em versão áudio/podcast:

Parte 1: Assim que o Dia amanheceu

Quando criança, sempre gostei de parquinhos. Praças com seus brinquedos de madeira em vermelho, verde, azul e amarelo. Subir pelos degraus em caracol e descer deslizando pelo escorregador; me esforçar para chegar ao outro lado sem cair da escada horizontal, me segurar de barra em barra, imaginar que a areia ali embaixo era uma cena borbulhante de lava prestes a explodir. Alguns parques, claro, se apresentavam deteriorados, quebrados ou enferrujados, com uma aparência que não motivava nenhuma criança a se divertir naquele espaço. Isto talvez pela ineficiência do governo municipal, ou por ações de vândalos. Quiçá, também, pela negligência da comunidade em agir e propor uma solução.

De toda forma, quando pequeno, não pensava nessas questões. Apenas notava que havia alguns brinquedos nos quais era necessária a presença de um colega. Lá, num balanço, eu podia me impulsionar por conta própria, mas com a ajuda de alguém o impulso era maior e eu alcançava um ponto mais alto. Lá, num gira-gira/carrossel (ou seja lá o nome que tenha aquele negócio), eu mesmo podia promover o movimento de rotação angular, mas com o auxílio de um colega a velocidade — e a diversão — eram ampliadas. Lá, eu seria incapaz de brincar de gangorra sozinho (a não ser que eu fosse uma criança estranha~emoji de olhinhos~). Assim, o objetivo único de obter diversão conduzia-nos a uma tarefa em conjunto, um natural trabalho em equipe. E isto unia a garotada e causava sorrisos, risadas e gritos de animação ecoando pelo parque.

Com o tempo cresci e deixei de frequentar parquinhos, optando por alternativas de diversão mais independentes e individuais, como videogames. E, nos consoles, sempre preferi modos de jogo solo; mesmo os famigerados multiplayers de FPS como Call of Duty e Battlefield não me atraíam tanto. Histórias e suas mensagens ainda são o que me fazem desembolsar suados dinheiros.

E nos últimos tempos tais suados dinheiros devem ser usados com sabedoria, em face de tantas opções, entre outras questões… Mesmo assim, uma certa história com uma jornada intrigante que, há tempos, já ouvira falar sobre, continuava a orbitar minha lista de possíveis aquisições. Quando a identifiquei em promoção, pude então riscá-la da lista e ter a experiência.

Tive a surpresa de saber, na abertura, que o jogo é distribuído pela Santa Monica Studios, desenvolvedora do meu favorito God of War. E mais surpreso com a bela, embora curta, experiência que a jornada desértica da obra proporciona…

Foi dessa forma que Journey, com seu tamanho modesto e sua proposta simples, me mostrou que duração não é documento, nem elemento pra designar qualidade. Ao invés, me fez balançar mais alto. Girar mais veloz. E relembrar o natural trabalho em equipe de outrora. Mesmo que temporariamente. Pois, como o amor de Vinicius no Soneto da Felicidade, Journey se mostra infinito enquanto dura.

Um curto-longo caminho adiante

Parte 2: Não há nada em lugar nenhum

Nunca fui num deserto, nunca tive essa oportunidade. Porém sempre gostei de dunas. Embora levar tombos da prancha de sandsurf na Praia da Joaquina me fizessem comer muita areia.

E muita areia é o que há em Journey. Uma paisagem de horizonte sem fim em paleta de cores com tons pastel. Dourado sol que lá está para amanhecer o ânimo do viajante. Alaranjado mundo que inicia jovem e, aos poucos, se azula antigo.

Motivações não faltam, para o jogador não amarelar.

A ausência de instruções e direções podem deixá-lo assustado a princípio. Porém tudo se encaminha de forma a guiá-lo ao caminho certo. Naturalmente. Pois ausência é um substantivo cerne na Jornada. A beleza do fator inovação se intensifica no minimalismo. Na ausência de interface com mostrador de vida, tempo ou pontuação. Na ausência de ações para grande parte dos botões que você pode apertar. Ausência de menus recheados de opções, estatísticas e categorias para acessar.

Pois a Jornada quer que você tenha o que basta. Apenas o suficiente. O essencial. E quer que você veja o que há para ser visto; adiante e ao redor. Visualmente prega Exupéry: só se vê bem com o coração. O essencial é invisível aos olhos.

E, incrivelmente, é possível observar este essencial e lidar com tal simplicidade. Ao poucos fica fácil embarcar no ritmo de vento fluente nos espaços visitados. Não raro o jogador se vê parado admirando as cachoeiras de areia ou o sol poente. Apenas por querer.

Não raro, de mesmo modo, você encontra uma figura que surge distante e aparenta idêntica a sua. Um semelhante que poderá se aproximar e participar de sua Jornada, de maneira natural, exercendo um trabalho cooperativo com suas ações, sem necessidade de negociação ou prolixas conversas. Journey não nos diz o nome, idade, naturalidade ou quaisquer outras informações sobre o novo participante aleatoriamente atribuído ao nosso caminho. Nem mesmo há possibilidade de teclar e bater papo com aquele viajante. A pessoa apenas está lá. Caminhando e̶ ̶c̶a̶n̶t̶a̶n̶d̶o̶ ̶e̶ ̶s̶e̶g̶u̶i̶n̶d̶o̶ ̶a̶ ̶c̶a̶n̶ç̶ã̶o̶ ao mesmo tempo, no mesmo lugar.

E não há porquê inexistir cooperação: o objetivo de ambos é o mesmo.

Ao longo da Jornada, se vê que esta relação estabelecida voluntariamente possibilita o crescimento mútuo. Com a proximidade, ambos trocam energia e podem voar mais longe, descobrir mais painéis históricos espalhados pelas extensas e belas planícies, tão como atingir os objetivos mais rapidamente. Cada um impulsiona o outro, numa brincadeira em conjunto, como duas crianças que se desconhecem e se juntam para se divertir num parquinho de uma praça qualquer.

O detalhe mor é que não há distinção entre você e seu colega. Não há privilégio por mérito, nem classificação por níveis, nem bonificação por um jogador realizar feitos diversos, distintos do seu parceiro. Em todos os sentidos ambos são iguais.

Afinal, não deveria ser assim?

Contudo inimigos existem. E inexiste possibilidade de defesa. Pois o viajante da Jornada, em seus contatos com “Entidades Superiores” estabelece um grau de espiritualidade que prega a união e o pacifismo. Fugir e manter-se neutro, inofensivo é alternativa. Que, no fim, vale a pena.

Daniel Goleman, um jornalista científico estadunidense, em seu brilhante livro Inteligência Emocional evidencia uma situação de relações sociais observada no Brasil e em diversas outras partes do mundo ocidental:

“Nos países desenvolvidos, a tendência é para um individualismo exacerbado, o que acarreta, consequentemente, uma competitividade cada vez maior — isso pode ser constatado nos postos de trabalho e no meio universitário. Essa visão de mundo traz consigo o isolamento e a deterioração das relações sociais. A lenta desintegração da vida em comunidade e a necessidade de auto-afirmação estão acontecendo, paradoxalmente, num momento em que as pressões econômico-sociais estão a exigir maior cooperação e envolvimento entre os indivíduos.”

Eis a síntese do ideal de Journey. Em face ao competitivismo encontrado nos borrifos de sangue, pontapés e faíscas de outros tantos games tão vendidos, uma obra minimalista vem para tentar disseminar uma visão de cooperação e harmonia, anti-bélica e anti-tirania.

Não que as outras obras sejam descartáveis, abomináveis ou incitadoras de violência. Pelo contrário, são passíveis de render muitos bons momentos divertidos e memoráveis com amigos, seja em rede ou pessoalmente. Contudo, a diversificação, em termos do conceito “memorável”, é bem-vinda.

Às vezes, precisamos trocar os paus por cordas. Pois não só de balas vive o homem.

Encontro com uma Entidade

Parte 3: Amar é um deserto e seus temores

Death Stranding, do genial Hideo Kojima (criador do resenhado Metal Gear Solid) é um jogo que estou esperando muito. Justamente por surgir da mente dum asiático inovador que admiro, tão como por prometer trazer a alegoria de cambiar “paus por cordas”. Tal conceito vem a contrariar, infelizmente, o famigerado Renan, o qual afirma que “você chega com um pedaço de pau numa briga, a outra pessoa quer logo conversar. É a arma do diálogo”.

“E é por isso que não tem briga em jogo de sinuca”, completaria Maurílio.

E é por isso, também, que deve ser difícil substituir uma partida em meio a tiroteios e explosões por uma caminhada silenciosa, mas única. Quaisquer ferramentas de ataque (e suas munições, caso se adequem) ainda nos dão uma sensação de segurança, de controle, de poder, embora não sempre efetivamente em prática. O diálogo, aliado ao compartilhamento de ideias, ao comprometimento das partes e debate pacífico, resultam no entendimento, em conclusões precisas e possíveis ações colaborativas. Quando trocado pela arma, resulta na tensão interpessoal, no medo. No caos. Que constrói o ciclo vicioso de busca por mais formas de proteção e ataque, em mais tensão e medo.

Mas o caos diverte.

Para o bem e para o mal.

Para o mal, por motivos óbvios. Para o bem, quando por questões tais quais descritas por Aristóteles em Ética a Nicômaco:

“Qualquer um pode zangar-se — isso é fácil. Mas zangar-se com a pessoa certa, na medida certa, na hora certa, pelo motivo certo e da maneira certa — não é fácil.”

Mesmo assim, no meio do caos, Journey mostra com seu jeito discreto que, apesar dos óbices, juntos podemos voar mais alto, girar mais velozmente e ir mais longe.

A Luz no fim do Túnel

Journey desenvolvido por thatgamecompany
Screenshots tirados por mim

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Gustavo Simas
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Escreve sobre o que dá na telha. Não sabe tricotar, mas sabe a diferença entre mal com “u” e mau com “l”