O MEDO da PERDA

Um artigo sobre Perda e análise de The Last of Us

Gustavo Simas
ReViu
5 min readOct 7, 2018

--

Parte 1: Giros, saltos, corridas e zumbis

A Naughty Dog iniciou sua presença em minha vida de games com o saudoso Crash Bandicoot: giros e pulos e corridas em meio à selva, com o animal que, até hoje, não sei exatamente de qual espécie é. Posteriormente, Crash Bash, Crash Twinsanity e (o “desvirtuado”) Crash of the Titans continuaram a diversão de jogar com primos e amigos ao longo das gerações de consoles.

Com a vinda de Uncharted tive a surpresa em saber que aquela mesma desenvolvedora do bichano sorridente agora se aventurava em tiroteios, sangue e mortes; embora com a manutenção dos giros, pulos e corridas em meio à selva.

Mais tarde um pouco, a produtora do “Cachorro Safado” anunciou que faria um game pós-apocalíptico com zumbis. E isto, a princípio, me desagradou…

Vejamos: obras sobre zumbis sempre existiram e sempre existirão. Em Resident Evil (os jogos, não os filmes) tive meu primeiro contato com estes sujeitos. Em Dead Rising aprendi a encará-los como monstrinhos feios feitos para o entretenimento. Com os zumbis Usain Bolt de Left 4 Dead dei boas risadas e aprendi a ser um velocista do controle. Em Dead Island melhorei o planejamento estratégico e a arte da guerra para sobrevivência. Em Plants vs Zombies descobri que estes comedores de cérebros também podem ser fofinhos, mesmo mantendo a chatice monótona de necroseres alienados…

E a tendência em utilizar essas criaturas (e semelhantes) para todo gênero e modo de jogo foi se saturando ao longo da década. Dead Nation, Dead Space, Minecraft, The Walking Dead, mas principalmente, Call of Duty, me fizeram desacreditar, cansar e entediar de zumbis. Até mesmo Red Dead Redemption (o qual, para mim, é o melhor jogo já feito — e que provavelmente seu sucessor vai ganhar resenha/análise minha em alguma data futura) abusou dos desmortos em Undead Nightmare.

George Romero (se foi ele ou não que criou a versão moderna de mortos-vivos é uma outra discussão…) dizia:

“Um filme de zumbis não é divertido se não tiver um bando de pessoas estúpidas correndo e observando como eles falham pra controlar a situação”

E eu sentia a falta disso. Do descontrole da situação. Isto porque matar sem consequências (sejam zumbis ou quaisquer outras coisas) sempre foi tão fácil…

Contudo, em junho de 2013, a empresa do “Cachorro Danado” expandiria seu portfólio e modificaria (para sempre) o modo como deve ser feita uma história com zumbis. E o modo com que muitos veem os games.

The Last of Us veio como uma facada. Fatal.

E matou minha subestimação.

Joel lutando por sobrevivência

Parte 2: Homem lobo do homem

Lembro que aprendi a tocar no violão a bela música principal de The Last of Us (TLOU) antes mesmo do jogo ser lançado. Não encontrando cifras, tive de tirar de ouvido o som. Comecei a me encantar com o game pela audição. Isto foi um bom sinal.

E aqui já cabe um viva ao músico argentino Gustavo Santaolalla, pela sagacidade com que preenche o ambiente com suas notas isoladas que, somadas, revelam um triunfo cansado, uma sensação de vitória e resignação discreta, convalescença sutil, mas potente.

E o som é um elemento importante no jogo, tanto em canções e palavras quanto em sonoplastia geral. Como questão de sobrevivência, identificar os inimigos por seus barulhos produzidos se apresenta como vantagem em combate. Diferenciar um estalador de um perseguidor por seus cliques e rumores ecoados pode alterar sua tomada de decisão, indicar se há necessidade de utilizar uma faca ou se o melhor caminho é fugir. Pois cada recurso é limitado.

Cada recurso é limitado: tempo, munição, acessórios; a busca por mantimentos urge com a intensificação da ação; o infinito habitual de outrora é substituído por escassez; portanto cada recurso deve ser usado com sabedoria.

Sabedoria: o que Joel, um barbudo adulto e bravo sobrevivente incansável, tenta transmitir ao longo de sua jornada à Ellie, uma garota curiosa (não sua filha) nascida no pós-apocalipse.

Apocalipse: o evento/período causado por uma epidemia fúngica, o qual fez as pessoas, embora não todas, perceberem que mesmo (sobre)vivendo entre zumbis, os mortos-vivos não são o maior problema de suas vidas…

Homo homini lupus.

E este é o grande ensinamento que todo grande filme, livro, game de zumbi deveria apresentar: mesmo que zumbis existam, vagando por prados ou correndo por urbes, o pior do mundo continuará sendo nós: humanos — vivos.

Homo homini lupus.

Pois o mundo pós-apocalíptico apenas joga os sapiens numa situação extrema física-espirito-psicologicamente, a qual, sadicamente, aflora e atiça as característica humanas, como delineado pela filosofia de Hobbes.

Homo homini lupus.

Instinto de sobrevivência. Morte dos fracos. A sobrevivência dos mais fortes. Medo, fúria, cansaço, pânico, decepção, rancor, descontrole. Morte.

Até que reste o último de nós.

Ellie e Riley terríveis

Parte 3: A Perda do Medo

Daniel Kahneman, um teórico da economia comportamental, nos apresenta que somos propensos a atribuir valores excedentes às perdas, em relação aos ganhos. Isto se revela como o princípio de aversão à perda, o qual, como viés cognitivo-comportamental, tem a simples mas poderosa afirmação de que consideramos a dor de perder mais elevada do que o prazer de ganhar.

E assim se aproxima a vontade de manutenção das coisas como estão, a não-modificação do status quo, para evitar frustração, óbices e possíveis demais infortúnios consequentes da ação. Por aversão à perda nos confortamos com a inação. Incomumente nos culpamos (ou culpamos outrem) por algo reagido devido a um estado inerte; vide o famigerado exemplo do “isso é problema de quem elegeu essa pessoa, eu votei em branco…”

Alterando Newton para a análise comportamental, a reação, de mesmo modo, pode ser decorrente de uma inação:

A chance de perder promove o medo de tentar

Tendo isso, se vê que o apocalipse de TLOU estoura a bolha de conforto dos cidadãos americanos. Joel tem de enfrentar a perda de sua filha Sarah em meio aos atropelamentos e incêndios que iniciam a história; posteriormente deve aprender a perder o medo da morte. Ellie, no auge de sua adolescência, deve enfrentar a perda de sua melhor amiga; posteriormente tem de aprender a perder o medo de matar.

E ambos devem aceitar o ocorrido, superá-lo e seguir em frente. Keep Calm and Carry On

E ambos devem se desdobrar, habilmente. Com giros, saltos e corridas na selva trágica de homens-lobo.

Pois, mesmo em meio ao caos, para que não haja o medo da perda, é necessário haver a perda do medo.

Joel furioso

The Last of Us desenvolvido pela Naughty Dog.
Screenshots tirados por mim.
Agradecimentos vão a todos que desenvolveram essa obra-prima, pois The Last of Us influenciou até mesmo minha série favorita de games:
God of War.

--

--

Gustavo Simas
ReViu
Editor for

Escreve sobre o que dá na telha. Não sabe tricotar, mas sabe a diferença entre mal com “u” e mau com “l”