PÓ de ESTRELAS

Um artigo sobre Solidão e análise de Everybody’s Gone To The Rapture

Gustavo Simas
ReViu
9 min readDec 2, 2018

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Parte 1: “Stars are never sleeping. Dead ones and the living…”

Pela cabeça de muitas crianças (senão todas) já deve ter se passado a imagem de um futuro no céu: profissão astronauta, viajante do espaço, flutuando pelo vácuo em qualquer rota que faça, parceiro do futuro na reluzente galáxia. Seja pela NASA, SpaceX ou Roscosmos, a possibilidade de admirar o globo azul lá embaixo (ou seria lá em cima?) é capaz de encantar e erguer sobrancelhas, traçar um sorriso no rosto infantil. Mais do que isso, uma jornada além-Terra pode ter como objetivo, para muitos, não apenas a contemplação de estrelas (que talvez já estejam mortas por conta do longo tempo necessário para que a luz faça todo o caminho no espaço até alcançar nossa íris), mas também a identificação de formas viventes extraterrenas, por maior que seja o estranhamento — e exaltação — ao se confirmar tal hipótese.

Várias das 11 artes já exploraram de diversas formas o conceito de vidas inteligentes fora da Terra. Pelo cinema me lembro da história de suspense e tensão de Sigourney Weaver contra o assustador Alien, o Oitavo Passageiro; do tecnológico Predador de aspecto tribal; do inocente e assustado E.T. de Spielberg. Pelos games, me recordo do famigerado e simples Space Invaders, da matança e sanguinolência de Doom, do elaborado, belo e moral Mass Effect. Enfim, existem centenas de obras que abordam este assunto.

Contudo as que mais me intrigam são aquelas que apresentam alienígenas que vêm em missão pacífica ̶t̶a̶l̶ ̶q̶u̶a̶l̶ ̶C̶r̶i̶s̶t̶ó̶v̶ã̶o̶ ̶C̶o̶l̶o̶m̶b̶o̶ para estabelecer contato, trocar ideias e bater um papo conosco. Posso citar as entidades que fazem isso de maneira sutil, discreta e perfeita em 2001: Uma Odisseia no Espaço; assim como os escuros linguistas heptapods de A Chegada.

Quando comecei a jogar Everybody’s Gone To The Rapture, não sabia que (**spoilers**) o mesmo abordaria o tópico discutido acima, e nem tinha ideia de que a Santa Monica Studios (desenvolvedora de God of War) estava envolvida no game. Só pensava que seria um jogo diferente onde todo mundo desapareceu e você fica perambulado pela cidade como um detetive amador à procura de evidências para juntá-las e, no fim, dizer “A-rá!” e solucionar o caso. Ao menos, pelos trailers e sinopses foi isso o que me pareceu.

Mas, para minha felicidade, errei feio… Errei rude.

“Se não existe vida fora da Terra, então o universo é um grande desperdício de espaço” — Carl Sagan

Parte 2: “ They watch us from behind their shades. Gleaming like blackened sunshine…”

Escrevo este texto no Dia Nacional da Astronomia. Não a confunda com Astrologia, a arte/pseudociência que avalia as posições relativas dos corpos celestes para determinar se você vai ter sorte no jogo, no amor e qual cor de camiseta deve vestir hoje. A Astronomia, que também estuda os corpos celestes, é mais preocupada com o desenvolvimento do universo e objetos do cosmos, utilizando de conhecimentos da Física, da Química, entre outras áreas.

E imagino que os produtores de Everybody’s Gone To The Rapture tiveram de estudar um pouco sobre esse campo de conhecimento e/ou receber consultoria de físicos.

Assim como em Journey, o minimalismo é evidente em Everybody’s. A ausência de instruções para movimentação, interação com objetos, assim como o constante silêncio ou som da natureza compõem a proposta de simplicidade da obra. Somos largados ̶e̶ ̶p̶e̶l̶a̶d̶o̶s̶ na vila inglesa de Yaughton, típico local pacífico onde todos os habitantes se conheciam e viviam suas vidas pacatas no campo, na piscina comunitária, em escolas e pubs. Não mais, pois agora nos questionamos: “Pra onde foi toda essa galera?”. Com o caminhar pela estrada observamos casas abertas, bicicletas caídas, estabelecimentos desordenados, cigarros ainda acesos, balanços ainda em movimento.

E nos deparamos, logo no início, com uma luz: um globo luminoso, radiante em amarelo e ouro, com suas flâmulas ondulantes orbitando o seu centro gravitacional. O jogo nos apresenta isto como sendo a órbita de Jeremy. Um nome, a princípio, não nos diz nada; é somente com a condução da narrativa que entendemos o que realmente simboliza, tão como a personalidade e motivações.

A órbita de luz nos guia. Em alguns espaços-chave podemos assistir aos espectros luminosos de pessoas conversando, chorando, brigando; acontecimentos passados representados em outro domínio. Telefones públicos tocam. Sempre que atendemos somos capazes de ouvir a mensagem de Kate. Quem é ela, descobrimos aos poucos. No momento, exploramos a vila, acompanhando, abandonando e reencontrando Jeremy, que agora já sabemos se tratar do padre do vilarejo, um homem com a característica serenidade de religioso cristão, mas com suas ânsias e questões com os habitantes de Yaughton. Em análise linguística histórica podemos verificar que Jeremy se refere a Jeremias, um dos profetas bíblicos, autor do Livro das Lamentações, com nome podendo significar “Javé exalta/eleva”. E, mesmo em base das virtudes divinas, o padre Jeremy se amedronta ante a possibilidade de dizimação da vila; pena não pela sua morte apenas, mas pela fatal e lamentável perda de todos os demais semelhantes.

“Não temas diante deles; porque estou contigo para te livrar, diz o Senhor” — Jeremias 1:8

E o fim chega.

E a noite vem. Com o céu noturno salpicado de luzes, numa miríade de pontos estelares. Canção em coro. Escuridão. Partículas de luz ascendem. Mas há um novo globo luminoso.

E a manhã surge novamente. Voltamos no tempo? Veremos, agora, a história de uma nova pessoa.

Vamos atrás da luz de Wendy, uma senhora dita “exagerada e intrometida” nos assuntos de outrem, ornitóloga amadora desesperada ao notar a mortandade crescente dos pássaros da região. Seguimos a jornada dela em busca de seu filho Stephen, continuando a ouvir mensagens no rádio e telefones sobre o fenômeno anormal que assola o local. Os sintomas ocasionados nos que sofrem influência do fenômeno são tachados em eufemismo evidente como consequências duma doença tratável, uma gripe comum, uma influenza provisória, curável por meio de tradicionais medicamentos disponíveis nos postos de saúde da vila. A vila está em quarentena. Esbarramos e encontramos os espectros luminosos de personagens novos, de amigos, vizinhos e, inclusive, do prévio Jeremy.

Tudo se encaminha para o topo.

Tudo se encaminha para o fim. E para a solidão… Ou não? O filósofo pessimista Arthur Schopenhauer diria audaciosamente que “a solidão é a sorte de todos os espíritos excepcionais”. Eu diria que seria a “solitude”, já que o primeiro conceito envolve a sensação de estar vazio, contrária à plenitude, mesmo que só, do segundo.

Fim. Noite. Escuridão. Estrelas. Luzes.

Manhã.

Chega a vez do franco Frank, um homem sério do campo que tenta iluminar (metaforicamente) os demais com a luz da sensatez. É interessante perceber que a cada personagem obtemos mais pedaços de informações e, durante a jornada de cada um, o espaço muda significativamente. O clima, a sonoridade, os ambientes; as características audiovisuais complementam e reforçam o humor da pessoa que acompanhamos e as memórias observadas. O tempo, de mesmo modo, não é sequencial.

Falas adicionais de Kate escutadas pelos rádios espalhados no vale de Yaughton expressam que o fenômeno está sendo chamado de “Padrão”, e que se alastra por televisores, telefones e demais equipamentos de comunicação. Surge, então, o alerta aos habitantes para evitarem o uso destes.

Ciclo completo. Período finalizado. O som de aviões. Repetição.

Chuva e tempo nublado na vez de Lizzie. Espectros (ou espíritos?) agora de crianças também aparecem, juntas em combinação para uma futura encenação teatral do eterno jovem Peter Pan.

Pessoas se infectam. Narizes sangram. Queimaduras. Agitação.

Kate mantém seu tom monótono e científico, informa que o Padrão parece estar tentando se comunicar. Uma onda crescente de preocupação quanto ao modo de exterminar essa coisa e impedir que se expanda para comunidades externas.

O som de aviões.

Lizzie ama Stephen, que ama Kate, que ama o Padrão (que ama alguém ou alguma coisa que não entrou na história). Sol intenso para a história do vigoroso e jovial Stephen. Ambicioso e decisivo em suas ações, afasta-se das asas de sua mãe ornitóloga Wendy. E divulga sua visão polêmica sobre a maneira de destruir o Padrão. Mas, como falaria um velho ditado: “nem Jesus agradou todo mundo…

Memórias reveladas sobre conversas de bar, discussões acaloradas na noite, mudança de lar, estudos sobre o fenômeno, um assassinato acidental(?), briga com Kate. Um abrigo longe de toda luz que não podemos ver.

Luzes.

Não era surpresa que a jornada de Kate seria a derradeira. Equações pintadas no chão, gráficos, integrais, o símbolo do infinito. Borboletas iluminadas batendo as asas. Antenas parabólicas e antenas diretivas para captar sinais de longe, de muito além. Torres com telescópios. Escadas a serem subidas, fitas a serem ouvidas. Palavras grafadas no chão, nas paredes.

Chegamos ao grande Observatório, no topo de Yaughton. Tecidos alvos e escarlates nadam na abóbada celeste, quase como uma Aurora Boreal. A entrada é convidativa e misteriosa. Um eco de ondas.

Contato. E a beleza de encontrar o que se buscava.

Logo o corpo fica obsoleto. E fim.

Afinal, tudo fica mais bonito justamente porque existe um fim. Não é mesmo?

“A ausência da evidência não significa evidência da ausência” — Carl Sagan

Parte 3: “We will never be rid of these stars. But I hope they live forever”

Everybody’s Gone To The Rapture se encaixa numa contracultura de gêneros de games denominada “walking simulators”, tais como Gone Home, The Stanley Parable e Dear Esther. Os jogos deste estilo permitem a caminhada longa e vagarosa por ambientes repletos de detalhes e objetos que, quando interagidos, fornecem pedaços de informações sobre uma ou várias histórias. Cabe aos jogadores juntarem estas peças e comporem o cenário completo. Entretanto, mesmo no fim, sempre uma ou mais peças parecem estar faltando… Eis a beleza dos walking simulators.

A obra não-linear traz interpretações intensas (melhores na versão original do que na brasileira), trata sobre questões de existência e solidão, brinca com o tempo e faz referências à Harry Potter, a Animais Fantásticos, a Philip K. Dick, a Carl Sagan, ao matemático Laplace, ao sinal “Wow!” e coisas mais que nem descobri ainda…

Everybody’s faz Arte da Ciência. Ou melhor: não distingue Arte de Ciência, como exemplo: a beleza com que a cientista Kate trata o Atrator de Lorentz desenvolvido pelo Padrão como borboletas (quando na verdade é um mapa caótico que mostra como o estado de um sistema dinâmico evolui no tempo num padrão complexo). Feynman se orgulharia.

Everybody’s Gone To The Rapture é capaz de nos apresentar diversos níveis de solidão. Um padre desamparado religiosamente; uma mãe que procura seu filho em face da possibilidade de não vê-lo mais; um casal separado que tem dúvidas quanto ao retorno do amor; um homem que se vê isolado com sua decisão adversa; uma cientista em busca de contato e companhia, mesmo que extraterrena.

Vivemos nessa solidão cosmológica à procura de respostas.

Estamos sozinhos no Mundo? Temos a possibilidade de nos sentirmos solitários mesmo em meio a milhares de corpos.

Seguimos e nos encaminhamos para o fim, questionando:

Afinal, estamos sozinhos no Universo?

“Existem duas possibilidades: ou estamos sozinhos no universo ou não estamos. Ambas são igualmente aterrorizantes” — Arthur C. Clarke

Everybody’s Gone To The Rapture desenvolvido pela The Chinese Room e pelo SCE Santa Monica Studio
Screenshots tirados por mim

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Gustavo Simas
ReViu

Escreve sobre o que dá na telha. Não sabe tricotar, mas sabe a diferença entre mal com “u” e mau com “l”