Entrevista com Guto Parente e Tavinho Teixeira

Diretor e ator principal de O Clube dos Canibais comentam sobre o gênero de terror no cinema brasileiro no atual contexto do país

Frederico Moschen Neto
rock.rec.br
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13 min readOct 3, 2019

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Trailer oficial de O Clube dos Canibais — Divulgação: Olhar Distribuição

O Clube dos Canibais [confirma a crítica] estreia hoje, 3 de outubro, nos cinema brasileiros. Aproveitamos a passagem de Guto Parente e Tavinho Teixeira por Curitiba, para a sessão de pré-estréia, ocorrida no Cine Passeio na madrugada de sábado, para conversar sobre o filme. O encontro se deu nas dependências da Olhar Distribuição — a distribuidora do filme.

Contextualize a produção de O Clube dos Canibais. Quando surgiu a ideia, o tempo de percurso da produção até a estreia, e a entrada de Tavinho Teixeira no filme?

Guto Parente: A ideia surgiu em 2013. Estava morando na França com a Ticiana [Augusto Lima], que é a minha companheira e produtora do filme. A gente estava no processo de fazer A Misteriosa Morte de Pérola, um terror psicológico e filmado todo num apartamento. Feito só por nós dois. Tenho uma cinefilia de terror muito forte da minha adolescência, mas de terror norte americano. Já tinha visto alguns filmes, como Profondo Rosso de Dario Argento, no Festival do Rio de 2009, e eu tinha ficado muito impressionado. Mas só em 2013 que fui adentrar mais e aí fizemos maratona de Argento, [Mario] Bava, [George A.] Romero. E eu estava nessa ânsia muito grande de fazer um filme de terror. E aí fazendo o Pérola, teve uma noite que tive o insight de fazer um filme sobre um casal canibal. Comecei a pesquisar, ler coisas sobre canibalismo, descobri o livro do Décio Freitas que é sobre um casal de Porto Alegre, “O Crime da Rua Arvoredo”. O personagem do casal sempre foi o Tavinho e fui desenvolvendo esse roteiro. Em 2014, voltei ao Brasil e escrevi o projeto do filme e coloquei no edital da Secretaria de Cultura do Ceará, que tinha um arranjo regional junto com o Fundo Setorial [do Audiovisual].

Provavelmente um dos primeiros editais regionais do FSA.

Guto Parente: No Ceará foi o primeiro e a gente ganhou. Passamos pelo processo burocrático em 2015, esperando pra receber. Programamos pra filmar em junho de 2016 e recebemos o dinheiro em março de 2016. E nisso, eu fiquei trabalhando no roteiro. Em junho a gente filmou. E foi um processo bem longo, talvez o mais longo que passei.

Cartaz oficial de O Clube dos Canibais — Divulgação: Olhar Distribuição

Ficou mais tempo esperando do que filmando?

Guto Parente: Isso mesmo!

Quando assistimos o início do filme, tive a impressão que estava assistindo algo com uma pegada italiana. Filmado em widescreen, que é uma janela pouco usada no cinema brasileiro, parecia um softporn do Tinto Brass. Seria uma referência?

Guto Parente: Tem uma mistura dessa vibe do cinema de terror italiano, com filmes B e, para mim pelo menos, tem muito de Carlão Reichenbach. Tem uma vibe que tem uma relação com a pornochanchada. A ideia do filme era uma mistura muito louca de referências, de desejos. Tinha a minha vontade do que eu sinto em falar da elite. Ao mesmo tempo essa vontade de trazer a questão do canibalismo, e de trabalhar com o humor também.

Você falou que começou essa ideia em 2013 e o Carlão morreu em 2012. Ele faz muita falta?

Guto Parente: Faz muita falta. É um cara que tinha um espírito tão jovem, uma relação com o cinema tão apaixonada. É difícil envelhecer. Eu vejo no cinema brasileiro tanto cineasta envelhecendo tão mal, que de repente começa a perder o interesse pelas coisas novas. Perde a cinefilia.

Tavinho Teixeira: Perde o vício no cinema!

Guto Parente: E parece que está fazendo cinema e você não sabe nem o porquê. Só porque já tá ali e continua fazendo pra manter o nome. O Carlão era um apaixonado, um cinéfilo. Baixava filme pra caralho! Via filmes!

Compartilhava o ouro com a plebe.

Guto Parente: Total!

O diretor Guto Parente e o ator Tavinho Teixeira durante a entrevista — Foto: Frederico Moschen Neto

Mesmo a ideia vinda em 2013, o filme é contaminado com essa loucura que estamos vivendo hoje. A narrativa tem uma relação entre terror e opressão social, e esse caminho de falar dessas tensões de forma mais livre do que na ciência política ou no jornalismo. Essa construção foi intencional ou aconteceu durante o processo?

Guto Parente: A partir do momento que eu decidi fazer um filme sobre personagens da elite, eu acho que a questão da desigualdade social, de classe, e opressão, elas vêm. É inevitável. É quase como se o cinema brasileiro, de alguma maneira, sempre fosse tocado por essas questões em algum lugar. A questão desta cadeia opressiva, dessa desigualdade social e de uma elite que alimenta isso — e que não sente muito peso na consciência por alimentar isso. Mas o que está acontecendo agora, que é mais assustador, é a perda de pudor em se mostrar agressivo e em se mostrar violento. A gente tá vivendo um momento em que todas as máscaras caíram e que ninguém finge mais nada. Então é assim, é gente apoiando tortura. É gente apoiando tortura e sendo eleita! É gente apoiando ditadura, é um negócio assustador.

Tem saído uma leva de filmes de gênero no cinema brasileiro — As Boas Maneiras, Animal Cordial e Bacurau. Muitos desses filmes de gênero têm sido colocados como filmes políticos e de resistência. E tem a questão da emergência dos filmes nordestinos com muitos lançamentos recentes, o que até um tempo atrás era improvável. Como vocês enxergam tudo isso?

Guto Parente: Tem duas coisas aí. Tem esses cinemas fora dos Estados de Rio de Janeiro e São Paulo, que é uma consequência direta de uma política pública que é relativamente recente e que é uma política de descentralização. E que agora estamos vendo ser interrompidas e que vai causar uma catástrofe no cinema brasileiro. A coisa do cinema de gênero, ao meu ver, tem a ver com uma relação de realizadores e cineastas que cresceram dentro de uma cinefilia de assistir televisão, de uma cinefilia de filmes de gênero americanos — principalmente. Filmes de terror e comédia. A minha infância foi na frente de uma televisão, eu comecei vendo muita televisão e depois locadora. Alugar filmes em VHS. Mas o que tem se destacado mais são os filmes que apontam para umas misturas estranhas; apontam por trazer para o contexto daqui e aí vem essa questão política também. Por exemplo O Animal Cordial, que poderia ser um filme que se você olhasse para ele como um filme não tão ligado a realidade social. Acaba que é o filme que está falando do cidadão de bem armado e tem relações de classe ali no filme. Então, muitas vezes, por mais que os filmes não tematizem isso, essas nossas questões, eu acho que elas acabam atravessando.

Tavinho Teixeira: E a política da descentralização que foi o mais importante. Tem filme do Oiapoque ao Chuí. O povo fazendo filme no seu lugar. E isso pra mim foi a coisa mais bonita, essa descentralização e o cinema lá no interior da Paraíba, no Pico do Jabre, estão documentando as coisas. Todo o lugar tem o seu núcleo, tá com cineclube.

Guto Parente: E esse jogo de você estar fora do mercado faz com que você se sinta mais livre. Porque, em São Paulo, por exemplo, que tem um mercado mais forte e tem muita gente fazendo, parece que você tem que acertar de qualquer maneira. Então você fica tentando encontrar e prever os erros. Enquanto, na verdade, é bom errar. Estar disposto ao erro e poder errar, eu acho que é onde coisas interessantes acontecem.

Tavinho Teixeira: Errar é um grande barato!

Como chegou o caso verídico retratado no livro “O Crime da Rua Arvoredo”, veio antes ou depois de já ter definido a temática de um casal canibal?

Guto Parente: Veio depois. Foi algo que funcionou mais para pensar como seria esse jogo do casal do que como ideia inicial. Já tinha a ideia de que tinha um casal que era canibal.

O diretor Guto Parente durante a entrevista — Foto: Frederico Moschen Neto

O filme passa um humor debochado e o cinema brasileiro se leva muito a sério. Como vocês vêem a sátira e o humor dentro deste momento onde as reações de classe artísticas estão um tanto mornas em relação a tudo o que está acontecendo no país?

Guto Parente: Eu gosto da ideia de não se levar muito a sério. O filme lida com questões sérias, mas a história em si retrata um universo muito peculiar desses dois personagens que são canibais e tem esse clube. E eu acho que o fato do filme não se levar muito a sério faz com que essa relação com o que existe de espelhamento da realidade não seja tão determinista, ou de querer dar resposta aos problemas ou querer entrar numa reflexão profunda. Não! São coisas que a gente tem que estar pensando e a maneira da gente pensar essas questões pode ser a partir de vários caminhos diferentes e o humor é um deles.

Tavinho Teixeira: Quando eu li o roteiro, eu fiquei pensando na elite e agora eu já mudei o pensamento. Eu sempre pensei que a elite iria se amarrar. Hoje, como a corda está esticada, só de falar o nome “elite”, ela já estremece. Já entende um pouquinho do que ela é. Agora que estamos todos com os corpos mais politizados nessa década, porque o tempo exige. Na década anterior eu não entendia isso, eu era um desvairado. E isso é tudo novo pra mim, e quando a corda esticou você teve que tomar partido.

Guto Parente: Tem um lugar do cinema de gênero por oferecer uma experiência, a partir de certos códigos que as pessoas conhecem, ele pode chegar em um grupo que está sendo criticado e ridicularizado pelo filme e, mesmo assim, essas pessoas entrarem. Por exemplo, o filme Corra!, de Jordan Peele, que é sobre racismo e a barbaridade que é o racismo introjetado na cultura americana e eu acho que deve ter uns brancos racistão que assistem e podem achar até legal o filme. Talvez em algum lugar o filme opere alguma coisa, em alguma área da cabeça ou do coração da pessoa que pode gerar uma crise de consciência ou uma reflexão. Isso pensando de uma maneira mais otimista, pensando que o filme pode mudar alguma coisa na pessoa. Os filmes que a gente faz não vão mudar o status das coisas, isso só vai mudar pelo acúmulo e a gente é impedido de gerar acúmulo. Os nossos filmes são quase proibidos de existir pelo establishment. Existe uma permissão ali, o cinema independente pode um pouquinho vir até aqui.

Você fala que o neoliberalismo anestesia a arte, mas é isso que a gente vive há uns 30 anos.

Guto Parente: É isso! Cara, vamos olhar para a coisa como é: estamos falando dessas políticas públicas do Fundo Setorial e ANCINE, mas o cinema independente recebe migalhas! A gente tá brigando hoje por migalhas! Primeiro, isso é muito recente. Eu comecei a fazer cinema em 2006 e não tinha perspectiva nenhuma de ganhar um edital de longa metragem e fazer qualquer coisa. Eu fui começar a ganhar edital agora. A descentralização chegou há muito pouco tempo.

Tavinho Teixeira: O boom dos cursos e as escolas de cinema é recente.

O ator Tavinho Teixeira durante a entrevista — Foto: Frederico Moschen Neto

Depois da sessão de pré-estréia em Curitiba, comentava-se se o personagem Otávio tinha alguma inspiração no Aécio Neves. Teve?

Guto Parente: Saudades da época que o Aécio era o risco!

Tavinho Teixeira: O Otávio era eu! O Otávio estava muito próximo de um povo que eu convivi a vida inteira. E foi nessa anestesia de pensamento, de se colocar no mundo e de pensar o mundo numa escola nunca concluída, numa saída de uma ditadura e o pensamento lá embaixo. Você pode ver, o rock nacional era uma bobagem nos anos 1980. Todo mundo ficou com os ovos frios. Esfriou-se os culhões de todo mundo. É muito frágil isso, esses acordos dos últimos 20 anos e eu sou fruto disso. De família que estava no outro lado. As obrigações que tinham. Eu acho insano morar em um prédio de 50 andares. Verticalizar os espaços dessa forma e achar ok.

Guto Parente: Eu me lembro de quando a gente leu o roteiro junto, o Tavinho falou: Cara! Eu sei o que é isso. E ele me contou várias histórias, de irmão que com 15 anos ganhou uma arma.

Tavinho Teixeira: Então, eu ganhei um carro com 14 anos e com 15 uma arma. E ao mesmo tempo eu era o louco da cidade, das drogas e de tudo. E aí fica uma coisa até perigosa, porque é uma coisa sem sentido. De fazer arruaça. Saía de caminhonete jogando ovo nas pessoas e é o que se faz. Se aumenta a potência, já matam travestis. Esse grupo era de amigos do meu irmão e a minha família me cobrava para ser parecido com ele. Imagina! Eu gay e hoje o meu irmão é um fazendeiro do Pará. Com o seu avião e com Bolsonaro… e a gente se encontra [imita barulho de faíscas]… Isso não é um drama, é uma reconstituição familiar de onde eu venho e tiro proveito disso.

Ainda sobre a construção das personagens, nós temos uma protagonista que é uma fêmea fatal. Como foi essa construção dentro da narrativa e como foi a da atuação da atriz, Ana Luiza, com o Tavinho? Alguém reclamou que a personagem era machista?

Guto Parente: Eu tenho escutado o contrário. Hoje, durante uma entrevista a um podcast, tinha uma menina que achou legal o fato dessa personagem feminina ter um poder, até no sexo mesmo. Ela que conduz a coisa toda na relação deles, parece que ela tem cérebro e ele não. Tem uma questão fundamental no filme que é de sacanear essa virilidade masculina. Boa parte do humor do filme tá ligado a isso, esse lugar do homem se colocar como chefe, o poderoso, o dono da casa, quem manda, o provedor.

Tavinho Teixeira: O [personagem] Borges cobra isso de Otávio com a mulher.

Guto Parente: O filme tinha isso de tirar a onda do lugar masculino e precisava de uma personagem forte, que vai rir na cara dele e que vai criar toda a ideia de um plano e fazer com que ele ache que está criando a ideia. A Ana Luiza é uma grande atriz. E eu convidei ela e o Tavinho para ler o roteiro e quando ela leu o roteiro já deu pra sentir que ali tinha uma química.

Desde o início era pra ser a Ana Luiza?

Guto Parente: No início a ideia era que a personagem fosse uma mulher mais velha. Eu pensei pessoas diferentes, mas teve um momento que ela veio. Eu estava montando um filme onde ela atua e tinha um plano que era fechado no rosto dela, que ela virava e olhava. E aí eu vi no rosto dela uma força que eu pensei: pô, podia ser ela. Aí fiz esse teste, nessa leitura de roteiro e vocês se deram super bem?

Tavinho Teixeira: Nos demos super bem! É incrível e a gente ficou muito junto no filme, chegamos a dormir juntos como casal.

Fotograma de O Clube dos Canibais, na cena o ator Tavinho Teixeira e a atriz Ana Luiza Rios — Divulgação: Olhar Distribuição

Como é dar machadadas nos outros?

Tavinho Teixeira: Foi uma delícia! Não teve nenhum momento que foi sofrido, era a gente brincando de ser aquilo e levamos às últimas consequências. Era engraçado. A minha filha disse: — Porra pai! É cheio de sangue!

O cinema brasileiro no geral tem uma certa dificuldade com cenas de violência. No filme tem muitas cenas explícitas e não-explícitas, teve alguma questão de escolhas ou dificuldade de produção?

Guto Parente: Eu identifico o problema de nosso tempo essa literalidade das coisas. Tudo é entendido de uma maneira muito literal, não estão entendendo o sarcasmo. O que a gente faz? Abre mão das figuras de linguagem?! Não! A gente tem que afirmar esses lugares também, não vamos perder o senso de humor e de falar das coisas de maneira diferente.

Tavinho Teixeira: Existe qualidade nisso, que deboche você está usando? Tem o deboche pelo deboche que é o objeto da direita, que é diferente. A gente usa a política no deboche.

Guto Parente: O humor de direita é uma merda! Eles são muito ruins fazendo isso, porque é um humor que reitera preconceitos, reitera o status quo. Só está repetindo coisas. Eu acho que no terror a gente precisa separar o que é uma experiência artística de uma experiência do mundo do real. A gente sempre tem que partir de um respeito à inteligência do público, de que o público vai saber distinguir as coisas. Eu tenho visto muita gente querendo problematizar Bacurau: “na sessão as pessoas ficam vibrando com a vingança com sangue e as pessoas são bárbaras igual aos fascistas”. Não! A experiência dentro da sala de cinema, a experiência de um filme não é a mesma coisa da realidade! Você gostar de ver tripas em um filme não quer dizer que você é um assassino, isso é experiência artística. A gente tem que afirmar a diferença das coisas. É óbvio que tem essas pontes com a realidade, mas ela não precisa ser uma forma pudica, purista e uma forma “politicamente correta” no pior sentido da expressão. Porque o “politicamente correto” era uma expressão da esquerda, quando você tinha uma posição muito dogmática e tiravam onda. E a partir de 1990 a direita e depois a extrema-direita se apropria deste termo para definir tudo aquilo que você diz e ofende o outro, e o outro que é ofendido reclama para interditar o debate. Até essa expressão foi capturada.

Entrevista e fotos por Frederico Moschen Neto. Perguntas elaboradas por vino e Frederico Moschen Neto. Edição por Vinícios "vino" Carvalho. A publicação colaborativa rock.rec.br é uma iniciativa da Sangue TV. Conheça o nosso expediente e colabore.

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Written by Frederico Moschen Neto

Documentarista e produtor executivo especialista em licenciamentos musicais e audiovisuais. frederico@sangue.tv | +55 (41) 99132–5995 | www.sangue.tv

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