Entrevista com Otto Guerra

Aproveitamos a passagem de Otto Guerra​ por Curitiba, onde veio para fazer a primeira sessão comercial do seu último longa-metragem A Cidade dos Piratas, baseado na obra e vida da Laerte, no Cine Passeio para conversar sobre o filme e o estado de coisas da vida brasileira. A “entrevista” se deu após o debate da sessão e no trajeto até ao Lado B Bar​.

Frederico Moschen Neto
rock.rec.br
6 min readNov 1, 2019

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Cinestésico: Hoje em dia tanto a arte como o humor são possibilidades para discutir tudo o que vem ocorrendo no Brasil e no mundo. Como você vê isso no seu filme?

Otto Guerra: O trabalho da Laerte foi uma ponta de lança. No Golpe de 1964, a adversidade alimentou a resistência da cultura, vemos a reação da música brasileira e do cinema brasileiro na época. Isso se repete agora de uma forma não tão direta, é muito disfarçado o que foi o Golpe de 2016, as pessoas não sabem que foi um golpe. É incrível! A gente tem liberdade, ainda, de falar o que queremos, espero que isso siga mesmo com os ataques.

O diretor Otto Guerra comentando sobre o seu último filme A Cidade dos Piratas — foto de vino

Cinestésico: O filme tem a proposta de mesclar documentário, animação, questões biográficas da Laerte e você se colocar também na narrativa. Fale um pouco disso.

Otto Guerra: Fizemos um trabalho híbrido. É uma mistura de ficção com documentário e com animação, algo sem gênero definido. Em Bacurau (2019) tem uma cena muito boa quando aparece um disco voador e a gente fica se perguntando: que filme é esse? Filme de extraterrestre?! Bacurau não é um filme fácil e sai do padrão, é um filme comercial que não tem a forma dos filmes americanos, pelo contrário, ele brinca com isso, ri do filme de faroeste e de heróis. Até então todos os filmes brasileiros de sucesso de público, Central do Brasil (1998) e até mesmo os do José Padilha com essas merdas dele, têm aquele padrão americano. Fiquei muito feliz com Bacurau e tenho dito que o Kleber [Mendonça Filho] se baseou no nosso filme para fazer isso — tô brincando!

Cinestésico: Sem dúvida eles conversam. O projeto do filme é antigo.O que estava na proposta original e o que veio agora? Quando encerrou o filme?

Otto Guerra: O filme fechou o corte no ano passado. A animação iniciou em 2013 e tínhamos um roteiro, mas eu botei ele no lixo e chamei o roteirista Rodrigo John e em seis meses ele fez uma história nova. A história original era clássica, com começo, meio e fim. Puxando para a vida real, por sorte eu tive câncer e por sorte a Laerte virou uma mulher, então a vida real atropelou a ficção.

Cinestésico: Quanto foi o orçamento total do filme?

Otto Guerra: Acho que foi em torno de 3 a 4 milhões de reais.

Debate após a sessão de A Cidade dos Piratas com a presença de Otto Guerra, e mediação do cartunista Benett e do jornalista Sandro Moser — Fotos de vino

Cinestésico: Foi barato! Fala para um gringo que fez um longa com 1 milhão de dólares e ele surta.

Otto Guerra: Os norte americanos ficam espantados com a gente fazendo um filme dessa qualidade com essa grana. O Até Que A Sbórnia Nos Separe (2013) tem uma qualidade superior, foi em full animation. A técnica é foda!

Cinestésico: Eu gostei muito da introdução do filme, ele tem uma radicalidade formal e temática.

Otto Guerra: Foi muita sorte esse Golpe (impedimento da presidente Dilma em 2016)!

Cinestésico: Foi um golpe de sorte! Mas o recorte do filme é muito específico, mesmo sendo ele livre.

Otto Guerra: O filme é contracultura. No Festival de Gramado ficou muito claro isso, eu fui hostilizado pelo público. O conservador gosta daquela coisa família e propriedade. A Laerte se fodeu, ela foi casada e teve filhos. Viveu essa pressão fodida, viveu essa hipocrisia. Se tornou uma mulher aos 57 anos.

Cinestésico: Qual foi a linha de costura narrativa? Vocês comentam o roteiro anterior no filme em uma linha, outra linha são os personagens Piratas do Tiête, outra linha são os personagens novos da Laerte e tem ainda a Laerte e você no filme. Como foi essa costura narrativamente falando.

Otto Guerra: Desde o início da produtora, do primeiro longa Rocky e Hudson (1994), nunca tivemos condições ideais de produção, então a impossibilidade de fazer um filme sempre foi muito presente nas produções. Eu uso isso a nosso favor, a impossibilidade vira a linguagem do filme. Foi um princípio anárquico, caótico.

Trailer do filme A Cidade dos Piratas — Divulgação: Otto Desenhos Animados

Cinestésico: Isso que você fala tem muito a ver com a estética da charge, que tem esse poder de síntese. Um humor que não precisa dar conta de uma análise de conjuntura.

Otto Guerra: São recortes pontuais. Quando eu chamei o Rodrigo, eu falei: “Bah, agora faremos o roteiro e um filme marginal”. O Cinema Marginal não tem uma lógica e um encaminhamento. Lembro de um filme que me marcou muito, tem um diálogo de dois meninos e um pergunta pro outro: “o que você vai querer fazer da vida?”. O outro responde: “vai se foder, a vida é agora seu merda!”. São frases contundentes e soltas. Eu acho que é Copacabana Mon Amour (1970, direção de Rogério Sganzerla), mas não tenho certeza. Eu acabei vendo um monte de filme marginal para poder fechar o roteiro.

Cinestésico: Quando você decidiu se colocar com a questão do câncer no filme?

Otto Guerra: Eu acho que coloquei como uma desculpa pra chutar o pau da barraca. Quando eu fui no médico ele disse que eu deveria ter feito o filme antes. E eu respondi “puta merda!”.

Cinestésico: Vocês chegaram a fazer um animatic a partir do storyboard da ideia inicial ou ela já morreu no storyboard?

Otto Guerra: Na real a gente pagou a Laerte para fazer, ela estava muito sem grana na época e tinha uma verba para fazer o projeto. Poderia ter feito o animatic direito, mas preferi fazer o storyboard.

Cinestésico: Vocês a ideia de publicar esse storyboard?

Otto Guerra: Não sei aonde ficou isso. A gente até conseguiu uma verba para fazer a preservação do filme, que é importante. Teve esses tempos a comemoração dos 100 anos de animação brasileira, o primeiro filme brasileiro animado de 1917 não tem um fotograma, não sobrou nada, só tem matéria de jornal. Então, porra! A preservação é um negócio sério.

Otto Guerra fazendo "Lula livre" no Bar Lado B em Curitiba

Cinestésico: Você comentou depois da sessão do filme que fazendo animação para publicidade conseguiu juntar dinheiro pra comprar uma Ferrari ou um apartamento, mas comprou uma truca para animação (câmera adaptada para fotografar cada fotograma/folha de acetato em 35mm). Hoje em dia, o que você faria?

Otto Guerra: Hoje em dia eu compraria uma Ferrari! Tô brincando. Na real, nos anos 70 e 80 não tinham muitas produtoras que faziam animação de ficção. Tinha em São Paulo o Walbercy que fez o Grilo Feliz (2001), mas era algo debilóide e tinha o Maurício de Souza que também fazia algo debilóide. Eu sou muito irresponsável, essa que é a verdade, comprei o equipamento sem ter a grana e parcelei. O cara que fazia o equipamento em São Paulo também faliu, ele atrasou dois anos pra entregar e eu atrasei uns cinco anos para pagar. Eu não tinha a grana, era uns 200 mil dólares na época. Uma truca inglesa custava 1 milhão de dólares e em São Paulo tinha uma cara que fazia uma cópia por 200 mil dólares. Ele fazia igual, peça por peça e eu comprei com esse cara.

Cinestésico: Você ainda tem ela?

Otto Guerra: Eu quebrei ela várias vezes e aí doei ela para a Cinemateca Capitólio em Porto Alegre. Eu espero que exista porquê esse equipamento pesava meia tonelada. Eu comprei em 1983 e usei até 2000. Foram 17 anos, a gente fez inúmeros curtas e o longa Rocky & Hudson. Só esse filme pagou a truca.

Entrevista por Frederico Moschen Neto e Vinícius "vino" Carvalho. Edição por Heloisa Nichele. Agradecimentos ao Sandro Moser, Marcos Jorge, Marden Machado e toda a equipe do Cine Passeio, além da distribuidora Lança Filmes. O cinestésico.rock.rec.br é uma publicação colaborativa mantida pela Sangue TV.

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Frederico Moschen Neto
rock.rec.br

Documentarista e produtor executivo especialista em licenciamentos musicais e audiovisuais. frederico@sangue.tv | +55 (41) 99132–5995 | www.sangue.tv