Consciência negra na Teodoro Sampaio

Uma intervenção urbana revela a cidade como campo de disputas

Marcelo Perilo
Rolê Antropológico
4 min readApr 20, 2018

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Colchões, instrumentos musicais, mobília para casas e escritórios. Esses são alguns dos produtos oferecidos em uma infinidade de lojas na Rua Teodoro Sampaio, em São Paulo. Os estabelecimentos comerciais fazem dessa via pública um dos polos de consumo na cidade para esses produtos. E quais são as demais referências que também compõem a Teodoro?

Essa foi uma das questões que estimularam os participantes da edição do Rolê Antropológico que ocorreu em uma tarde ensolarada e calorenta do dia 13 de abril. O evento não estava previsto para 2018, mas o modo como ele surgiu corresponde a um imponderável bem-vindo da vida real.

Em abril eu participei de um curso da Manifesto 55 intitulado Crie Engajamento. Eu e mais nove participantes do curso fomos instigados pelo facilitador Henrique Versteeg-Vedana a pensar sobre diversas modalidades de trabalho em grupo a partir de técnicas de facilitação que visam gerar engajamento de pessoas.

Fomos convidados a apresentar projetos que desenvolvemos, pois assim poderíamos receber contribuições dos colegas considerando as referências e ferramentas compartilhadas no curso. Eu então indiquei o Rolê Antropológico como trabalho para o qual eu gostaria de ouvir sugestões e comentários.

A fim de que eu pudesse receber feedback, meus colegas deveriam experimentar o Rolê. Assim surgiu uma oportunidade para que eu oferecesse uma edição do evento para os participantes do curso.

O Crie Engajamento foi realizado em um coworking situado na Rua Dr. Virgílio de Carvalho Pinto, uma travessa da Teodoro Sampaio. Nosso passeio a pé e em grupo pela cidade deveria ocorrer desde esse ponto de partida. Então saímos juntos para um mergulho nessa região.

Participantes do Rolê Antropológico na Rua Teodoro Sampaio, em São Paulo. Foto por Adriana Sonnewend

Enquanto caminhávamos pelas calçadas, estimulei que os participantes do Rolê observassem quais pessoas passavam, como cada uma interagia com o espaço e com quem elas se relacionavam.

Nosso grupo era observado com curiosidade pelos transeuntes, seja por conta de estarmos andando muito próximos uns dos outros como se fôssemos matilha, seja por conta do caderno que cada participante levava em suas mãos. Os cadernos são oferecidos em todas as edições do Rolê como um estímulo a que as pessoas tomem nota do que observam e para que, dessa forma, produzam conhecimento sobre a cidade ao longo da caminhada.

Enquanto eu notava os olhares atentos dos participantes do Rolê e o movimento incessante dos transeuntes pela região, indiquei que na sociologia e na antropologia há muito se discute sobre a impessoalidade como uma experiência peculiar à vida em grandes centros urbanos. Caminhar por ruas, praças e avenidas tendo o contato com multidões de estranhos como algo trivial é inclusive um dos temas que Georg Simmel discute em “A metrópole e a vida mental” (1903), um texto fundamental para debates sobre cidades nas Ciências Sociais.

Além de falarmos sobre impessoalidade na movimentada Teodoro Sampaio, também discutimos sobre pessoas e grupos que disputam essa rua em São Paulo. Essa questão foi explicitada durante o Rolê quando chegamos à esquina da Teodoro com a Rua Cônego Eugênio Leite. Nesse momento atentamos para uma intervenção urbana que consta em tal cruzamento.

Placa no cruzamento das ruas Teodoro Sampaio e Cônego Eugênio Leite, em São Paulo. Foto por Marcelo Perilo

Essa placa não corresponde ao estilo padrão adotado pela prefeitura de São Paulo. Enquanto as placas oficiais têm fundo azul e letras bancas e pretas, essa placa específica na Teodoro tem fundo preto e letras exclusivamente brancas. Essa sinalização não foi implantada pela prefeitura, mas por um coletivo da sociedade civil que, por meio do projeto Consciência Negra na Rua, aplica adesivos sobre placas a fim de destacar negros que se se tornaram figuras públicas importantes em seus campos de atuação.

Assim como se lê na placa, Teodoro foi “engenheiro, escritor e um dos maiores pensadores de seu tempo”. Trata-se de um intelectual negro que viveu no Brasil de 1855 a 1937 e influenciou outros pesquisadores no país.

A intervenção sobre a placa se tornou um detalhe revelador nessa edição do Rolê. A ação do coletivo que reivindica visibilidade a negros em um contexto em que há agudo racismo estrutural e institucional sobrepôs a sinalização do espaço promovida pela prefeitura em suas políticas e planejamentos urbanos.

Essa marca deixada na Teodoro Sampaio pelo coletivo orientou o itinerário e os debates de nosso grupo. Uma vez que no Rolê exercitamos o desadestramento do olhar, tornou-se possível observar tanto os menores detalhes quanto os elementos monumentais que compõem o espaço urbano. Assim conseguimos nos sensibilizar a fim de perceber as pessoas, os grupos e as políticas que disputam cotidianamente a cidade.

No experimento de trinta minutos foi possível estranhar o que nos era comum sobre São Paulo e, especificamente, sobre a Teodoro Sampaio. A intervenção do coletivo, o planejamento urbano da prefeitura, os letreiros coloridos das lojas, os transeuntes desviando do mobiliário urbano nas calçadas estreitas, o movimento de veículos na via pública congestionada.

O que antes era apenas a rua das lojas de colchões, instrumentos musicais e mobília para casas e escritórios tornou-se uma via pública de muitas camadas, formas, texturas e cores.

São Paulo definitivamente são muitas. No Rolê Antropológico mergulhamos juntos a fim de experimentar a cidade assim, múltipla.

Agradeço a Eros Sester e Tales Gubes pela leitura atenta do texto e pelas sugestões de revisão.

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