Rolê antropológico em São Paulo: espaços LGBT no Centro e além

Uma declaração sobre o luto como um verbo

Marcelo Perilo
Rolê Antropológico
5 min readMar 30, 2018

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Era uma tarde quente de sábado. As muitas cores de São Paulo reluziam. Nesse dia, 24 de março, algumas pessoas toparam experimentar a cidade caminhando em grupo e com caderninhos na mão. Era a segunda edição do Rolê Antropológico em São Paulo.

O Rolê Antropológico é uma atividade organizada por Eros Sester e eu na qual participantes são convidados a produzir e compartilhar conhecimentos sobre cidades. Assim como consta em nosso manifesto, trata-se de um evento a ser vivido em grupo e no qual participantes deslocam-se pelo espaço.

O convite para a caminhada no sábado ensolarado havia sido lançado via facebook e Medium. As pessoas que atenderam a esse chamado se encontraram às 15 horas na Praça da República. A partir dali seguimos em um roteiro por espaços no Centro e além.

São oito milhões de habitantes
De todo canto e nação
Que se agridem cortesmente
Morrendo a todo vapor
E amando com todo ódio
Se odeiam com todo amor

Assim como se lê no trecho acima, na música “São São Paulo” (1968) Tom Zé narra a cidade destacando sua população, conflitos e símbolos. Atualmente a região metropolitana de São Paulo tem mais de 21 milhões de habitantes e, assim como sua população, seus conflitos e símbolos também se multiplicaram.

A fim de narrarmos cidades e quem as compõem, no Rolê Antropológico adotamos textos das Ciências Sociais como fundamento teórico, conceitual e metodológico. Elaboramos roteiros e relatos a partir de artigos, dissertações de mestrado, teses de doutorado e livros que discutem espaço, arquitetura, urbanismo e demografia.

As narrativas são tecidas ao longo das caminhadas considerando-se as experiências e conhecimentos de todos os participantes. Eros e eu compartilhamos nossas referências e as demais pessoas são convidadas a compartilharem as suas.

Na segunda edição do Rolê, no 24 de março ensolarado, tivemos a continuação direta da edição anterior, que ocorreu uma semana antes e tematizou a ocupação LGBT especificamente no Centro de São Paulo.

Nossa proposta para a segunda edição era começarmos na região da República, onde havíamos parado na semana anterior, para então seguirmos até a avenida Paulista. E assim ocorreu. Depois do encontro na Praça da República seguimos em caminhada discutindo sobre a expansão de espaços de encontro e de convivência LGBT relacionada à expansão de São Paulo.

Nossa primeira parada foi na rua Bento Freitas. Ali falamos sobre Kaique dos Santos, jovem gay que foi arremessado de um viaduto logo após sair de uma balada que era situada nessa rua. Ele foi encontrado morto.

Esse episódio ocorreu em janeiro de 2014 e foi narrado em diversos veículos de comunicação. Houve intensa mobilização de ativistas e coletivos do movimento LGBT, que fizeram manifestações cobrando apuração do caso e indicando que se tratava de um assassinato motivado por homofobia.

Ao passarmos por outras vias públicas no Centro, como a rua Marquês de Itu e avenida São Luís, comentamos sobre as operações policiais que tentavam regular moralmente o espaço público nessa região de São Paulo. Eram ações que tinham como propósito escuso expurgar do Centro as populações marginalizadas.

Néstor Perlongher no livro “O negócio do michê: prostituição viril em São Paulo” (1987) indica que houve diversas ações policiais como essas, principalmente entre as décadas de 1960 e 1980. Nessas operações, gays, lésbicas e travestis eram detidas arbitrariamente enquanto transitavam por vias públicas ou mesmo quando estavam em estabelecimentos comerciais.

Havia resistência, contudo. Julio Simões e Regina Facchini no livro “Na trilha do arco-íris: do movimento homossexual ao LGBT” (2009) contam que havia manifestações em repúdio a ao menos algumas dessas abordagens policiais. Em 1980, por exemplo, houve uma macha contra um delegado que comandava diferentes ofensivas, principalmente contra mulheres e travestis que atuavam como profissionais do sexo no Centro.

Participantes da 2ª edição do Rolê Antropológico na Rua Bento Freitas, em São Paulo. Foto por Fernando Alves

Em nossa caminhada passamos pela Praça Roosevelt e então seguimos pela rua Augusta. Nesse momento destacamos o processo de expansão de espaços LGBT para além do Centro de São Paulo, especialmente na década de 1980.

Nessa década também expande-se o que Edward MacRae no artigo “Em defesa do gueto” (1983) chama de “aparição pública” da homossexualidade. Esse processo diz respeito ao aumento da visibilidade para temas e eventos que destacavam a população LGBT no debate público e no espaço público.

Na década de 1980 a epidemia de aids e o surgimento de grupos do então chamado movimento homossexual colocaram a homossexualidade em evidência no debate público. E, especificamente no espaço público em São Paulo, multiplicaram-se regiões onde pessoas do mesmo sexo demonstravam afeto entre si por meio de mãos dadas e beijos.

Após explanação sobre esses contextos e processos durante o Rolê, chegamos ao cruzamento das ruas Peixoto Gomide e Frei Caneca. Nessa esquina e em suas imediações há vários espaços de encontro e de convivência LGBT.

Em minha pesquisa de doutorado estudei alguns desses espaços ao acompanhar adolescentes e jovens gays e lésbicas que frequentavam a região. Como estávamos ali, compartilhei resultados e discussões de minha pesquisa.

Participantes da 2ª edição do Rolê Antropológico no cruzamento da rua Peixoto Gomide com a rua Frei Caneca, em São Paulo. Foto por Marcelo Perilo

Paramos nesse cruzamento das ruas Peixoto Gomide e Frei Caneca. Eros e eu então convidamos os participantes do Rolê a realizarem um exercício.

Pedimos que eles se dividissem em dois grupos para observarem a região reparando os modos como as pessoas lidavam com o espaço e como se relacionavam entre si.

Indicamos dois temas principais para os grupos. Um deles observou relações entre espaços e identidades. O outro grupo observou relações entre espaços e estilos.

Cada participante tomou notas individualmente utilizando caderninhos que foram distribuídos no início do Rolê.

Após vinte minutos de exercício todos compartilharam suas experiências e impressões. Houve então um debate a partir dos temas apresentados por cada um, como as relações entre mercado e população LGBT.

Depois das trocas de referências e aprendizados continuamos nossa caminhada rumo à avenida Paulista.

Finalizamos o Rolê às 18 horas no vão do Museu de Arte de São Paulo (MASP). Escolhemos esse espaço para encerramento da atividade porque nele ocorreram diversas manifestações para reivindicação de direitos e cidadania para lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais.

Nessa edição do Rolê Antropológico as narrativas apontaram criticamente a diferentes episódios de violações e ameaças a direitos da população LGBT. Além disso, as mobilizações, os movimentos e os engajamentos em reação a tais violações e ameaças também compuseram as narrativas.

Durante a caminhada estiveram em questão situações nas quais o luto por alguma morte ou ação violenta tornou-se mote para a luta. Assim ocorreu por conta do assassinato de Kaique e das operações policiais no Centro. Então celebramos coletivamente as pessoas e grupos que exigem o direito à vida e à liberdade de expressão pública de seus desejos e paixões.

Em nosso Rolê por São Paulo frisamos luto como um verbo. E não estamos sozinhos: na “São São Paulo” de Tom Zé essas lutas se fazem visíveis também.

Salvai-nos por caridade
Pecadoras invadiram
Todo centro da cidade
Armadas de rouge e batom
Dando vivas ao bom humor
Num atentado contra o pudor

Confira o manifesto do Rolê Antropológico.
Confira o
relato da primeira edição.
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