Rolê Antropológico: um século de ocupação LGBT em São Paulo

Um roteiro para pensar a cidade de São Paulo do ponto de vista da diversidade sexual e de gênero

_erinhoos
Rolê Antropológico
5 min readMar 23, 2018

--

Poucas vezes passamos por momentos como o atual, em que tópicos relacionados à diversidade sexual e de gênero estão na ordem do dia, pautando o debate público, os grandes veículos de comunicação e as redes sociais, participando ativamente da política e impactando o cotidiano de milhares de pessoas. Baseados nisso, Marcelo Perilo e eu decidimos iniciar as atividades do Rolê Antropológico com um roteiro voltado para a reconstrução de temas relacionados à história, sociologia e antropologia da sexualidade tendo como objeto privilegiado a cidade de São Paulo.

Como explicado em nosso manifesto publicado aqui, as atividades do roteiro antropológico se baseiam em duas premissas centrais: (1) abordagem antropológica amparada por revisão bibliográfica especializada e condução realizada por dois profissionais da área e (2) atividade de campo voltada para a experimentação etnográfica. Em relação a este último tópico, salientamos duas coisas: a importância da construção do conhecimento ao longo dos trajetos, e de um conhecimento produzido coletivamente com a participação de todos e todas. A proposta de realizar um Rolê Antropológico sobre um século de ocupação LGBT na cidade de São Paulo, assim, segue os contornos delineados por essa linha programática.

No último sábado, dia 17 de março, realizamos a primeira edição da primeira parte do Rolê, cujo relato dividimos com vocês agora!

Ponto de partida dessa edição do Rolê Antropológico: Largo da Memória. À extrema esquerda, Marcelo Perilo. À extrema direita, Eros Sester. Foto por @arte.mark

Felizmente o dia estava lindo e o clima bastante amigável, apesar do evento no Facebook prever chuva torrencial. Depois que todos e todas que estavam inscritos e inscritas chegaram, apresentamos a proposta do Rolê Antropológico, salientando nossas principais premissas. Introduzimos os principais temas que norteariam o roteiro, quais sejam: (1) cidade e visibilidade; (2) encontros, mercados e estilos; (3) espaços e identidades; (4) expansão da cidade e dos espaços de encontro; (5) impacto das políticas sobre possibilidade de encontros; (6) a construção da cidade a partir dos fluxos; (7) temporalidades, processos e sobredeterminações; e (8) o direito à cidade.

Distribuímos os caderninhos de campo a todos e todas e salientamos, antes da saída, a importância de estarmos abertos para tomar partido etnográfico dos espaços pelos quais passaríamos: as pessoas, os ruídos e os fluxos. Demos início, enfim, à caminhada por volta das 16 horas, saindo do Largo da Memória rumo ao Vale do Anhangabaú.

Optamos por começar no Largo da Memória em função da sua importância simbólica no desenvolvimento da cidade de São Paulo a partir do século 19, que estava relacionado às condições de expansão das instituições, dos saberes e de espaços de encontros marcados pela pluralidade social na metrópole.

Admitindo a perspectiva de que os espaços são sobredeterminados por distintas temporalidades e processos que ocorrem simultaneamente, citamos o fato de que naquele mesmo logradouro havia existido uma danceteria chamada Nighting, que figurou na década de 1960 como um espaço onde era possível flertar e estabelecer relações com pessoas do mesmo sexo. Todo o percurso que adotamos a partir daí buscou estabelecer essas conexões: entre análise antropológica amparada pela bibliografia e compreensão dos processos históricos e sociológicos mediante os quais a cidade é produzida.

Mapa construído a partir do Google Maps, que identifica os espaços percorridos ao longo do Rolê Antropológico sobre um século de ocupação LGBT.

Lugares percorridos nessa edição do Rolê Antropológico:
(1) Largo da Memória —Nighting; (2) Vale do Anhangabaú — Feira da Diversidade; (3) Avenida São João e Largo do Paissandú; Cines Pornôs; (4) Avenida Ipiranga — Bar do Jeca, Bar Brahma; (5) Rua Barão de Itapetininga — Casa de Chá Vienense; (6) Praça Ramos de Azevedo, Rua Xavier de Toledo, Praça Dom José Gaspar e Avenida São Luiz — Autorama, Pari Bar e Galeria Metrópole; (7) Praça da República — Trabalho de campo no logradouro; (8) Avenida Vieira de Carvalho e Largo do Arouche — Estabelecimentos comerciais e diferentes sociabilidades; (9) Rua do Arouche, Rua Aurora e Rua Bento Freitas — Prostituição feminina e michês; (10) PZA, na Rua Bento Freitas.

O roteiro acima descrito foi embasado por etnografias clássicas como Homossexualismo em São Paulo, de José Fábio Barbosa, escrita na década de 1950, e O negócio do michê, de Néstor Perlongher, publicada em 1987. Vários outros iminentes autores e autoras, como Isadora Lins França, Julio Assis Simões, Regina Facchini, Roldão Arruda, João Silvério Trevisan e Bruno Puccinelli, além de nós mesmos, foram fundamentais para a construção de uma errância fundamentada antropologicamente. A exequibilidade do Rolê também foi levada em consideração, e a ordem estabelecida entre os lugares buscou favorecer as reflexões propostas.

Foi uma experiência muito gratificante, pois pudemos revisitar diversos logradouros extremamente conhecidos, como o Vale do Anhangabaú, a praça da República e o largo do Arouche, sob uma ótica pouco comum no dia-a-dia, que priorizou a análise das dinâmicas urbanas, (micro)políticas, marcas da diferença, processos sociais e camadas temporais.

Graças ao dia ensolarado e à disposição de todos e todas foi possível executar quase todo o roteiro. Contudo, algo inusitado ocorreu na rua Bento Freitas, quando estávamos prestes a fazer uma parada estratégica para descansar e recarregar as baterias (UFA! Cansa andar, conversar e pensar ao mesmo tempo). Fomos surpreendidos pela seguinte situação: uma mulher desconhecida que passava por um surto psicótico estava devaneando nua pelas ruas da Vila Buarque.

Nesse momento, alguns de nós nos engajamos em dar assistência àquela moça para que ela não sofresse acidentes e nem fosse filmada por terceiros. Isso tudo tomou bastante do nosso tempo, pois o socorro institucional tardou a vir. O fato desestabilizou o roteiro previsto, mas, ao contrário do que se poderia achar, tal situação foi tomada por nós como o exemplo de um “imponderável da vida cotidiana”, para usar a consagrada expressão do antropólogo Bronislaw Malinowski. Além disso, foi possível tomar essa “situação social” para desvendar uma estrutura social complexa, à semelhança do que faz o antropólogo Max Gluckman em seu célebre ensaio sobre a Zululândia.

Certamente o Rolê Antropológico não foi sabotado. Ao contrário, fomos engolidos pela proposta e, para instrumentalizar o clássico exemplo de Clifford Geertz, entendemos como alguns processos sociais ocorrem quando “corremos” junto com os nativos.

Depois de resolvida a questão e restabelecidos os ânimos, sentamos todos e todas para conversar sobre o Rolê que tínhamos experimentado até aquele ponto. Os caderninhos de campo foram fundamentais para estimular as pessoas a adotarem suas próprias estratégias para consolidar o conhecimento que era coletivamente construído a partir dos trajetos e registrar os imponderáveis que se mostravam na caminhada, bem como para organizar intervenções orais no debate. Por fim, agradecemos a todos e todas e nos despedimos com a promessa de uma nova ida a campo!

A próxima edição está marcada para o dia 24 de março, sábado (clique aqui para acessar o evento). O ponto de encontro será em frente à Secretaria de Educação, o grande prédio amarelo que fica na praça da República. A concentração será 14h30 e o Rolê começa às 15 horas. Vamos seguir a partir desse ponto e terminar na região da Paulista.

Acesse também nossa página no Facebook.

Participe, divulgue!

Um dos pontos de parada dessa edição do Rolê Antropológico: rua Barão de Itapetininga. Foto por @arte.mark

--

--

_erinhoos
Rolê Antropológico

_antropólogo, barista informal, errante incorrigível, cantor de karaokê, sérião nas horas vagas