A cantora e compositora carioca Marisa Monte, que desde seu terceiro álbum, "Verde, Anil, Amarelo, Cor de Rosa e Carvão" (1994), faz a estreia nacional de seus shows em Curitiba | (Foto: Leo Aversa)

Entre o ufanismo de Leminski e o preciosismo de Marisa Monte

A exigência do público e a efervescência da cena cultural curitibana: verdade ou lenda?

Rômulo Zanotto
Blog do Rômulo Zanotto
4 min readOct 27, 2016

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Foi Fernanda Montenegro a principal responsável por criar e perpetrar o mito, na década de 1990, de que “o curitibano é um público exigente”. Segundo a diva do teatro nacional, se um espetáculo fosse bem recebido e aplaudido em pé por aqui, teria grandes chances de sê-lo pelo restante do Brasil. Não à toa, Marisa Monte — notoriamente reconhecida pela apreço e preciosismo com que conduz tanto sua carreira quanto seus shows — faz a estreia de suas turnês por estas plagas desde 1994. Some-se a isto o frisson causado todo ano, em março, com os números megalomaníacos do Festival de Teatro de Curitiba — são centenas de espetáculos, distribuídos em dezenas de salas e assistidos por milhares de espectadores — e teremos dois exemplos que parecem ilustrar, respectivamente, a exigência e a efervescência da nossa cena cultural.

Porém, tais como outros mitos curitibanos, se analisados “à luz da cabala”, esses conceitos se confirmam ou se perdem? Jacaré do Barigui: mito ou lenda!? Dalton Trevisan: mito ou lenda!? A exigência do público e a efervescência da cena cultural curitibana: mito ou lenda!?

Se é certo que o público comparece em massa às sessões do Festival, uma vez por ano, para ver as produções de fora, também é certo que muito pouco ou quase nada conhece do que é produzido por aqui e que por aqui fica em cartaz o restante do ano. A arte produzida em Curitiba, embora quase relegada ao consumo autofágico de quem a faz, não deixa nada a desejar à arte produzida no resto do país. Poucas vezes se vê, mesmo no eixo Rio-São Paulo, uma cena cultural tão inteligente e bem acabada quanto à nossa.

Na literatura — apenas para começar falando de uma área onde o consumo parece ser menos autofágico –, estamos na vanguarda estética já há algumas décadas, com ícones notórios como Paulo Leminski e Dalton Trevisan (não estou aqui dando destaque à notoriedade dos dois, e sim ao conteúdo estético de suas obras).

Mas nas outras vertentes artísticas, as tais relegadas à autofagia, também estamos bem à frente do nosso tempo, com nomes que ganharam ou vêm ganhando cada vez mais destaque no cenário nacional. Não, eu não estou falando de nomes como o do agora galã e protagonista Alexandre Nero, mas de artistas cujas pesquisas e resultados estéticos têm sido apreciados pelo público e pela crítica especializada para bem além das Terras das Araucárias. Felipe Hirsch, Carmen Jorge, Paulo Biscaia e Cia. Brasileira de Teatro, por exemplo, são nomes das artes cênicas locais que você deveria conhecer ou, pelo menos, ter ouvido falar.

Na cena musical, o fenômeno de visibilidade ocorrido com A Banda Mais Bonita da Cidade pelo Youtube, em 2011, parece ter despertado um espírito ufanista na área. Dezenas de bandas ou artistas ganharam visibilidade e espaço a partir de então. Eventos como a Virada Cultural ou a Fifa Fan Fest trazem ou trouxeram à tona uma grande leva de artistas locais, até então relegados ao ostracismo. O fenômeno Oração parece ter despertado apreço, curiosidade e interesse sobre a música que se compõe aqui. De lá para cá, compositores locais viraram figurinhas fáceis, explorados inclusive pela RPC em horário nobre. Afinal, quem não lembra da belíssima vinheta de Dia dos Namorados da emissora nos últimos anos? Não há nada mais lindo, do talentosíssimo Leo Fressato, serviu de nome e trilha à campanha.

E falando em ufanismo, o destaque nacional obtido por Leminski e sua catapultagem ao topo da lista dos mais vendidos, também no ano passado, parece ter sido um fenômeno capaz de fazer o curitibano voltar a entender e valorizar o que se produz na cidade. Nunca se falou tanto em Leminski de lá para cá. Afinal, se é verdade que a gente comparece em massa e aplaude em pé, com facilidade, ao que não é daqui — contradizendo o mito criado por Fernanda Montenegro –, também é certo que só (re)conhece o que é local quando o público nacional lhe outorga alguma visibilidade.

As estreias de Marisa Monte por aqui, no final das contas, não tem nada a ver com a tão propalada “exigência curitibana”. De acordo com a própria cantora, as estreias acontecem em Curitiba e em Porto Alegre (segunda cidade por onde passa sua turnê) porque é uma forma de aquecer as turbinas para as estreias do Rio e de São Paulo, que são as cidades que realmente importam, pela visibilidade que têm. É lá que público e crítica podem conferir o sucesso ou a derrocada de um show.

E assim parecemos seguir nós, os artistas locais: ensaiando esboços de nossas obras bem acabadas na boemia do baixo São Francisco, aplaudidos em pé por uma plateia tão exigente quanto imaginária, até que um mecenas nos tire do limbo e nos dê à luz no eixo Rio-São Paulo, trazendo-nos à tona. Até lá, é cada um na sua, no ramerrame de sempre.

Paulo Leminski (1944–1989) ensaia em sua casa, em Curitiba, para o show que fez no extinto Dama Xoc, em São Paulo, em 1988 | (Foto: Mônica Vendramini — Folhapress)

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Rômulo Zanotto
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Escritor e jornalista literário. Autor do romance "Quero ser Fernanda Young". Curitiba.