Onde Andará Caio Fernando Abreu?

Querido Caio, hoje acordei pensando onde você. Então, imediatamente, quis começar esta crônica, que também é uma carta, parafraseando a sua: “jamais esquecerei Caio Fernando Abreu”.

Rômulo Zanotto
Blog do Rômulo Zanotto

--

Aonde está você agora, além de aqui, dentro de mim? Sempre que ouço essa música, penso em ti. Para onde você foi?, porque morto não está. Primeiro, que Caio é imortal, a despeito dos silogismos. Depois, que bicha não morre, vira purpurina. Então, como é que vão as coisas por aí, onde quer que você esteja? E mais: onde é ? Para onde vão as coisas e as pessoas depois que morrem? Uma parte de você está dentro de mim e é com esta que eu falo. Mas… e o resto? (silêncio)

Por aqui, continua tudo na mesma, só que sem você. “E, portanto, um pouco mais feio, um pouco mais sujo, um pouco mais incompreensível e menos nobre.” Vão-se os morangos, ficam-se os mofos. Viver continua dando pena. E se também continua valendo um pouco a pena, é graças somente à alma, que não é pequena. Por aqui, está cada vez mais agosto. Não a gosto de Deus, claro, que esse já ficou claro que não existe. Mais agosto mesmo, como o mês que você tanto usava em metáfora de desgosto.

Avançamos em muita coisa, mas em outras retrocedemos um bocado. O amor que não ousava dizer seu nome já tem sobrenome e estado civil, mas, apesar disso, algumas pessoas continuam preocupadas em definir o sexo dos anjos: LGBTQ? XYZ ou o quê? “E os anjos, em si, já são tão interessantes com suas asas, percebe?” Você, que já na década de 80 escrevia crônicas como Meu amigo Cláudia, se perguntando que diferença fazia um artigo masculino ou feminino na definição de uma pessoa, ficaria passada com a proporção que tomou o “X” nesta questão. Certamente, ia preferir estar mortx feat enterradx.

Aliás, de lá pra cá, os brasileiros já elegeram por duas vezes a primeira mulher presidentx do país , para depois a tirarem à força — mas isso é outra história; seu romance, Onde Andará Dulce Veiga?, inspirado na sua própria crônica sobre Lyris Castellani, virou filme; uma antologia dos seus contos foi publicada agora pela Cia. das Letras; Devassos no Paraíso, o livro do seu amigo João Silvério sobre a história da homossexualidade no Brasil, acaba de ser relançado, também em edição esgotada, pela editora Objetiva; e sua crônica Vamos Comer Caetano virou nome e letra de música de Adriana Calcanhotto. Antenada e antropofágica que é, a cantora se apropriou da frase, transformou em verso, e colocou o título para dançar. O resultado é um desbunde.

Sua amiga e conterrânea Adriana, aliás, continua, toda ela, um desbunde! Se você já se surpreendia com Esquadros, de 92, certamente ia estar bege com as coisas que ela anda fazendo hoje em dia. Agora, inclusive, ela é tão boa que são duas: uma para adulto e outra para crianças. Está em turnê pelo país com A Mulher do Pau Brasil, pode? Pode! Ela é foda! Se a senhora tivesse resistido ao vírus, certamente estaria mortx com algumas das composições que ela fez depois.

E também, se estivesse aqui hoje, estaria ouvindo, Liniker, Johnny Hoker, Karol Conka, Rincon Sapiência, Francisco El Hombre e Alice Caymmi. Assistindo House of Cards, La Casa de Papel e The Handmaid's Tales. Leria Karl Ove, Miá Couto e Yuval Noah Harari; e continuaria prestando atenção nas coisas que Caetano diz e faz. Passaram-se três décadas, mas continuam sendo relevantes as coisas todas que ele pensa e fala. “Há anos Caetano dá todos os toques para o Brasil, sem cobrar nada, e o Brasil não saca. Azar do Brasil.”

Nos últimos anos, e sei que digo um clichê, a realidade brasileira superou qualquer ficção. Se você ficasse meia hora sem ouvir rádio nem ver TV, ficaria também completamente por fora das baixarias que saltavam como coelhinhos politicamente incorretíssimos das cartolas do Planalto.

O parágrafo anterior também é de sua autoria, em 1994. Cito assim, sem aspas, dono do discurso, porque caberia perfeitamente nos dias de hoje, bastaria substituir o rádio e a TV pelas redes sociais (você sabe o que é isso?). Nesse mesmo texto, você perguntava se era verdade que, como diziam, o país nunca mais seria o mesmo depois daquele lamaçal todo, ou se "seria isso só (mais) um clichê.” Era só mais um clichê.

De lá pra cá, no Brasil, Democracia virou coisa do demo! Se às vésperas da eleição de 94 você tinha medo que elegessem o fascista Enéas para a presidência, “só de brincadeira”, ficaria bege de saber quem os brasileiros estão pretendendo eleger a sério este ano. #Elenão.

Será que há uma saída onde todo mundo pensa que termina? Não sei. Só sei que quero Caio de volta, da mesma forma que se quer o tempo que já se foi. E vou escrever esta história não para provar que sou sublime, mas na esperança que meu editor, como na história de Dulce Veiga, me mande atrás de ti, onde quer que você esteja.

Tal como Caio procurava Lyris e como o alter-ego dele procurava Dulce, eu procuro Caio. Por precaução, acendi uma vela para São Lázaro, padroeiro dos ressuscitados. Se cruzarem com ele, digam que mandei meu mais carinhoso beijo. E que jamais o esquecerei. Que todo dia, apesar da ausência dele, eu acordo, reviro jornais, leio livros e vou à luta. Porque a vida grita, a luta continua, e se entregar é uma bobagem.

Seu, R.Z.

--

--

Rômulo Zanotto
Blog do Rômulo Zanotto

Escritor e jornalista literário. Autor do romance "Quero ser Fernanda Young". Curitiba.