"Quem tem medo de travesti?" (Dir.: Silvero Pereira), em cartaz no último Festival de Teatro de Curitiba | Coletivo Artístico As Travestidas | (Foto: Luiz Alves — Divulgação)

Quem tem medo de travesti?

Crítica à montagem de “Quem tem medo de travesti?”, da Cia. As Travestidas

Rômulo Zanotto
Blog do Rômulo Zanotto
4 min readNov 11, 2016

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Quem tem medo de travesti?, que também esteve em cartaz no Teatro Paiol, pelo Festival de Teatro de Curitiba, é daquelas peças que não te levam ao desbunde estético e visual — como no caso de Um Bonde Chamado Desejo — ou ao deleite da metalinguagem — como Why the Horse?. Mas, ainda assim, por outro viés, o viés do grotesco, a montagem atinge o espectador no mesmo cerne — qualquer que seja ele — em que o espectador é atingido quando o que chamo de “fenômeno teatral — o que quer seja ele — acontece. Quando somos atingidos num ponto em que a alma vibra — ou treme — e alguma coisa acontece, tornando aquela vivência artística única, vibrante e inesquecível.

Para além das estrelas — muitas vezes cadentes — do Festival, o teatro — e todas as outras artes — tem como objetivo colocar em cena e trazer à berlinda reflexão e pensamento. Transgredir, romper com os limites e os paradigmas de seu tempo. Levá-lo adiante.

Elenco de "Quem tem medo de travesti?" | (Foto: Leonardo Pequiar — Divulgação)

Apesar da escolha pelo grotesco, em muitos detalhes a montagem, dirigida por Jezebel de Carli e Silvero Pereira, poderia ser melhor acabada ou melhor resolvida: nas marcas dos atores, na iluminação, na qualidade de movimento, e sobretudo no arremate dos textos.

No entanto, nada disso — não aqui! — diminui o espetáculo. Sua pungência não está na sua estética ou na sua pretensão enquanto arte cênica, mas sim no discurso, na perspicácia, na relevância transgressora de conseguir levar o “incômodo da travesti”, condignamente, para os olhos de quem não quer ver. Com todo o respeito e a autoridade que lhe outorgam um evento com o porte e a envergadura do Festival de Curitiba.

Fosse em uma temporada usual na cidade e provavelmente o alcance da atração estaria restrito ao mesmo nicho autofágico de sempre, que já conhece as dores e a ausência de delícias de ser o que não se é. Mas colocá-la em cartaz no Festival, significa cumprir com plenitude o propósito do espetáculo: colocar a sociedade no escuro e a travesti iluminada, em destaque, no centro do palco. Não apenas para que seja vista. Mas para que a conheçam. Conhecer é entender.

De forma velada e sutil, o espetáculo faz uma crítica à intelectualidade e às suas sempre tão nobres preocupações existenciais e metafísicas.

Parodiando músicas e textos clássicos da literatura e do teatro universal, a montagem parece acusar que, mesmo aqueles que se ocupam em refletir, por séculos e séculos sem fim, com profundidade e seriedade, as “mazelas da existência” — como os grandes Kakfa ou Shakespeare — , são incapazes de refletir com a mesma legitimidade as complexidades de ser ou não ser quando este é, de fato, o X da questão.

Cena de "Quem tem medo de travesti?" | (Foto: Leonardo Pequiar — Divulgação)

Em uma das cenas, alude-se à Metamorfose e à lendária transformação de Gregor Samsa em inseto na obra de Kafka. E o que a cena parece dizer é: nós nos impressionamos e levantamos peças e teses e questões e reflexões e compaixões por um homem que vira barata, mas ao mesmo tempo enxovalhamos e ignoramos como baratas a metamorfose verdadeira de homens que, tal como Gregor Samsa, nunca couberam em sua própria existência.

Dissociamos uma coisa da outra como se a transformação e a inadequação fossem nobres na literatura e, na realidade.

Compaixão é o mais nobre dos sentimentos. Vem de "sentir junto", “sentir com” o outro. Não se trata de sentir por ele ou no lugar dele. Mas sim de sentir com ele. Não há resignação, vitimismo ou piedade na compaixão. Pelo contrário: há apenas a compreensão. Tão plena e explícita que, por mais que você não compartilhe com o outro da realidade dele, pode sentir com ele, por ele, através dele, a sua dor. Este, o grande mérito de Quem tem medo de travesti?.

Realizando duas sessões no Festival de Curitiba, num teatro de 200 lugares, o espetáculo atinge quatrocentas pessoas. É pouco. Mas vai chegar o dia em que aqueles que não têm medo, nojo, asco ou ódio das travestis, lotaremos uma plateia do Guaíra.

Até lá, cabe a cada um de nós, estes quatrocentos que estivemos no escuro ontem e hoje, ampliar o alcance do teatro através da compaixão despertada por ele. A gente só tem medo do que não conhece. E o escuro do teatro pode te levar a conhecer muitas coisas.

Elenco de "Quem tem medo de travesti?" é ovacionado pela plateia ao final de uma das sessões do espetáculo no Festival de Teatro de Curitiba | Teatro Paiol | 2016 (Foto: Kelly Knevels — FTC)

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Rômulo Zanotto
Blog do Rômulo Zanotto

Escritor e jornalista literário. Autor do romance "Quero ser Fernanda Young". Curitiba.