A Biblioteca Alemã da Liberdade em Paris

A história do local criado um ano após a queima de livros em Berlim, em 1933, pelos nazistas, para funcionar como espaço de resistência

Roteiros Literarios
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7 min readNov 9, 2020

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por Leonardo de Lucas

Cité Fleurie: o lugar que abrigou a biblioteca. O local é um conjunto de estúdios/casas/ateliês para artistas localizado nos números 61–67, entre o Boulevard Arago e a Léon-Maurice Nordmann.

E m 10 de maio de 1934, uma nova biblioteca foi inaugurada em Paris, no número 65 do Boulevard Arago. Dois andares acomodaram cerca de 20 mil livros, em sua maioria de língua alemã. Não são quaisquer títulos, eles foram cuidadosamente escolhidos. A data também não veio ao acaso. Exatamente um ano após a nefasta queima de obras ocorrida em Berlim e em outras cidades do Reich, um grupo de intelectuais europeus, formado inclusive por exilados, organiza um espaço de cultura/resistência dedicado a preservar e a divulgar as mesmas publicações incineradas e banidas em solo alemão.

A ideia de fundar a biblioteca vem na esteira das lutas antifascistas que se intensificaram após a chegada de Hitler ao poder. Com o avançar do nacionalismo/autoritarismo pela Europa, formou-se uma cooperação internacional para juntar documentos e disseminar panfletos políticos sobre os horrores que já se faziam presentes nos primeiros meses do governo nazista. Um desses exemplos é o Livro Marrom sobre o Incêndio do Reichstag (Braunbuch), que desmontava a teoria da conspiração que teria alicerçado o golpe hitlerista. Esses materiais formavam a base do Arquivo Internacional Antifascista, sediado na capital francesa, no quarto de hotel do escritor e crítico literário Alfred Kantorowicz.

A inspiração para formar um espaço dedicado aos livros veio de uma carta aberta que Romain Rolland, conhecido romancista francês, dirigiu aos jornais alemães num protesto inflamado contra os infames acontecimentos de maio. No final de 1933, já se iniciam os preparativos para concretizar o projeto. Os primeiros volumes vieram da coleção de Kantorowicz, estabelecida em seu apartamento. No início do ano seguinte, o Comitê Mundial para as Vítimas do Fascismo, que era a organização que geria o arquivo antifascista e outras atividades ligadas aos escritores exilados, fez uma convocação para que os livros fossem doados à biblioteca. Muitos emigrantes e cidadãos franceses deram suas bibliotecas particulares, em parte como doação, em parte como empréstimo.

O número 65, onde funcionavam a biblioteca em Paris, localizado na Cité Fleurie, um conjunto de estúdios/casas/ateliês. São 29 chalés brancos em estilo de arquitetura enxaimel. A construção data dos anos 1878/1888 e contou com materiais utilizados na Exposição Universal de Paris de 1878. Por lá viveram e trabalharam muitos artistas como Paul Gauguin, Henri Cadiou, Max Bezner e Louis Bouquet. O local foi quase destruído nos anos 1960, mas graças à mobilização dos moradores permaneceu intacto até que em 1994 tornou-se patrimônio histórico da cidade.

Como reconhecimento ao empenho de Rolland, ele tornou-se o presidente honorário da instituição em gestação. Ao seu lado também estavam André Gide e Lion Feuchtwanger. Heinrich Mann, porta-voz dos exilados na Europa, foi alçado ao cargo de presidente, e Alfred Kantorowicz ficou como secretário geral, responsável por toda a gestão e organização da biblioteca. Outros nomes ligados à intelectualidade europeia também tiveram atuação importante como: Anna Seghers, Georg Bernhard, Gaston Gallimard, John Burdon Haldane, Harold Laski, Henri Lévy-Bruhl, Frans Masereel, Rudolf Olden, Theodor Plievier e Ernst Toller.

Anna Seghers, escritora envolvida na criação da biblioteca

Na Grã-Bretanha, com participação decisiva do escritor H. G. Wells, foi formada uma associação de patrocinadores, a Sociedade de Amigos da Biblioteca de Livros Queimados. Rapidamente o órgão afiliou milhares de membros e sustentou a biblioteca com somas consideráveis ​​de dinheiro. Até a data da inauguração, os associados e simpatizantes conseguiram reunir mais de 11.000 títulos, em conjunto com centenas de milhares de jornais (inclusive com acervos dos veículos da propaganda nazista), panfletos políticos, brochuras e impressões proibidas no Reich.

No evento de abertura do espaço à sociedade, o orador principal foi o escritor tcheco Egon Erwin Kisch. Em sua fala, ele destacou que os livros queimados não foram perdidos e que agora iriam se reunir em um único lugar. Acima de tudo, frisou que o objeto revolucionário do estabelecimento da biblioteca era a luta contra o nacional-socialismo. Além dele, vários outros intelectuais franceses e alemães também discursaram, incluindo Alfred Kantorowicz. Muitas cartas de solidariedade e de incentivo chegaram de vários cantos do globo e outras organizações de escritores exilados começam a estreitar laços para parcerias em projetos futuros.

Alfred Kantorowicz

Com o passar do tempo, o espaço se torna o centro intelectual do exílio em Paris. Vários escritores, cientistas, jornalistas e estudantes usam o arquivo para seus trabalhos; alguns emigrantes/exilados procuram o local como ponto de referência cultural e de conexão linguística; outros, recém-chegados, vivendo ainda em alojamentos de emergência, aproveitam a estrutura como local de estadia. Além disso, o espaço também ganha vida por meio de exposições de arte, seminários sobre literatura alemã, apresentações de teatro, leituras públicas, espetáculos de música e de dança.

A biblioteca estreita relações com outra organização de escritores, a Associação de Proteção aos Escritores Alemães. Como resultado tem-se a realização, em junho de 1935, do I Congresso Internacional de Escritores em Defesa da Cultura, na Maison de la Mutualité, em Paris. Mais de 3.000 visitantes estrangeiros participam, em conjunto com 250 autores de 38 países. O evento é um sucesso e um marco na história da instituição. Também, como resultado da reunião, tem-se a publicação “Deutsch für Detsche” (Alemão para alemães), uma coleção de artigos e poemas escritos por autores proibidos pelo Reich. Mais tarde, esses textos circulariam de modo clandestino entre resistentes dentro e fora dos domínios nazistas.

Após o congresso, a biblioteca amplia seus acervos e consegue chegar a um número próximo dos 20 mil títulos que foram destruídos sob o comando de Joseph Goebbels naquela trágica noite de 10 de maio de 1933. Em decorrência do destaque alcançado, a instituição desperta o interesse da Internacional Comunista, que aos poucos vai ampliando o seu domínio na organização. Kantorowicz vai para a Espanha lutar ao lado dos republicanos, assim como parte dos funcionários e dos frequentadores da biblioteca. Em 1938, o secretário geral volta à França e encontra um outro estabelecimento, desunido e hostil. Seu grande projeto estava deformado.

Placa na vila de casas que lembra que naquele espaço existiu entre os anos 1934 e 1939 a Biblioteca Alemã da Liberdade

Os desentendimentos se ampliam, ele perde a biblioteca e se retira para o sul da França, onde graças ao apoio de Ernest Hemingway pode voltar a dedicar-se à literatura. Em 1939, com a eclosão da guerra, as associações de escritores alemães são proibidas e a polícia francesa confisca os acervos e arquivos da biblioteca. Os exilados alemães são presos em campos de internamento como “estrangeiros indesejáveis”. Para o Camp des Milles, perto do município de Aix-em-Provence, são enviados Alfred Kantorowicz e Lion Feuchtwanger (fundadores da biblioteca) em conjunto com um grupo de escritores e artistas que incluía Max Ernst, Franz Hessel e Golo Mann.

O destino dos livros da Deutsche Freiheitsbibliothek (Biblioteca Alemã da Liberdade) ou Bibliothek der verbrannten Bücher (Biblioteca dos Livros Queimados) é um mistério.

Molly Manning, no “Quando os livros foram à guerra”, afirma que os preciosos títulos, numa ironia nefasta com o que ocorreu em Berlim, foram cuidadosamente preservados pelos nazistas. Na mesma linha segue Anders Rydell em “Ladrões de livros”, destacando que a queima de livros foi mais um ato simbólico de propaganda porque as intenções do Reich eram de se apropriar de toda a cultura/história/memória europeia para reescrevê-la de acordo com seus interesses. Mas há outros pesquisadores que acreditam que os arquivos tenham sido propositalmente destruídos.

Com o fim do regime nazista, Alfred Kantorowicz e Arthur Drews publicam Verboten und verbrannt: Deutsche Literatur 12 Jahre unterdrückt (Proibidos e queimados: 12 anos de supressão à literatura alemã). É uma antologia sobre a produção literária banida em solo germânico — com a reprodução de pequenos trechos de ensaios, poemas, romances, seguido de uma biografia sucinta sobre os seus autores. Nessa mesma época, Kantorowicz relembrou sobre os tempos em que geria os arquivos da Biblioteca Alemã da Liberdade:

Deixe-me apenas dizer brevemente que a biblioteca coletou uma parte substancial de todos os livros e escritos que foram proibidos, queimados, suprimidos e censurados na esfera de influência de Hitler e que também poderia disponibilizar as principais obras de todos os tempos da literatura alemã”.

Entre 1933 e 1945, mais de 2.500 escritores deixaram a Alemanha. Estimativas indicam que ao menos 100 milhões de livros foram perdidos/destruídos durante os anos da Segunda Guerra Mundial.

** Lista de parte dos escritores banidos (de língua alemã): Walter Benjamin, Ernst Bloch, Bertolt Brecht, Hermann Broch, Max Brod, Alfred Döblin, Lion Feuchtwanger, Sigmund Freud, Ernst Hardt, Franz Hessel, Hugo von Hofmannsthal, Franz Kafka, Karl Kraus, Egon Erwin Kisch, Thomas Mann, Heinrich Mann, Rudolf Leonhard, Theodor Lessing, Robert Musil, Erich Maria Remarque, Anna Seghers, Arnold Zweig, Hedda Zinner e Stefan Zweig.

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