Sentidos oníricos do Magiluth

“Tudo o que Coube numa VHS” justapõe aflições que emergem da intimidade psíquica e transbordam para o campo real das relações.

Mateus Araújo
Rubricas
3 min readMay 19, 2020

--

As inconstâncias da realidade atual — angústias, medos e incertezas que cercam todos nós — passaram a ocupar com mais intensidade os nossos estados oníricos, atravessados por imagens hipernítidas, sejam elas retomadas de um passado vivido ou figurado e até mesmo projeções de desejo e aspirações do inconsciente coletivo. Não é à toa que muitos de nós estamos mais atentos e lembrados daquilo que sonhamos às madrugadas.

É disso que trata em texto recente o psicanalista Christian Dunker, ao traçar uma leitura dos nossos sonhos contextualizada na situação caótica do Brasil. Conforme ele conta, os sonhos dos seus pacientes “se tornaram mais intensos, longos e marcantes”, e “tudo se passa como se tivéssemos nos aprofundando em nossos sonhos, como se eles tivessem sido convocados por este estado de realidade cada vez mais nebulosa e inacreditável”.

A impressão que dá é a de que, na suspensão do tempo incerto que vivemos, borraram-se os limites do real e do imaginado, de tal maneira que sonhar é a prolongar a tensão de estar acordado.

É fácil encontrar um paralelo desse fenômeno com o novo trabalho do grupo Grupo Magiluth, “Tudo o que Coube numa VHS” — uma justaposição de memórias e aflições que emergem sem contentamento da intimidade psíquica e transbordam para o campo real das relações. Expandido na fragmentação de situações contadas em pequenas mensagens de áudio e texto, telefonema, vídeos e músicas, o experimento sensorial — como a companhia se refere ao trabalho — desperta a sensação de embricamento entre as ideias com os atos concretos, e nos estimulam a ser também, em parte, dramaturgos da obra.

Durante 30 minutos, um ator conduz o interlocutor pela história de dois homens atravessada por agruras do destino. Apesar de se tratar de implicações de ordem pessoal, que dizem respeito àquela relação entre eles — as situações, em perspectiva macro, têm muito a ver com os distanciamentos de agora, que perturbam a todos com fantasmas da doença, da morte, do acaso, do inesperado ou até dos sonhos ressuscitados. O passado encontra eco no agora. É o jogo com a subjetividade característico da linguagem magiluthiana.

A história contada, no entanto, não deixa de ser uma fábula pueril. Porém, sustentada em uma forma sagaz de narrativa, nos expõe a uma divertida e sensível experiência de ouvir, imaginar e presenciar — ainda que virtualmente — o que se diz. Apartadas, a dramaturgia e a estética talvez não tivessem a mesma força que têm juntas; como nossas imagens oníricas e o contexto real, casam-se em perfeita harmonia. É, certamente, uma experiência marcante, oportuna para o presente.

Teatralmente, o Magiluth nos leva a outra imersão para além das transmissões ao vivo que pululam nas redes sociais neste momento de pandemia. Trata-se, ao contrário, de um exercício de atenção à narrativa e de experimento múltiplo das plataformas (inclusive a sonoplastia, personagem fundamental desta engrenagem), que subverte o sentido de “dependência” tecnológica da arte no contexto adverso para tornar o dispositivo elemento da história. Isso é, o grupo encontrou uma maneira arguciosa de empreender outra possibilidade da vivência cênica, além de provar como a arte subverte a mídia.

Conforme escrevi aqui em outro texto, não me atrevo a preconizar como tal estética “caseira” (no sentido de casa, e não de amadora) testada pelo Magiluth tenderá a se estabelecer em algo teórico e concreto nas artes cênicas — seja isso teatro ou não, como criticam outros colegas. Entretanto, quero acreditar, mais como espectador do que pesquisador, que, diante das possibilidades que temos, a aventura do ouvir-ver — assim como a oniropolítica (os sonhos que dialogam com nosso estado caótico) — figura entre uma das melhores traduções das nossas angústias momentâneas. Se datada, isso só o futuro dirá. Por ora, é excepcional.

--

--

Mateus Araújo
Rubricas

Jornalista. Repórter do TAB UOL. Mestre em Artes pela Unesp e membro da Associação Internacional de Críticos de Teatro