Minuciosa Oração: Capítulo IX — O Mal

Fellipe Fraga
Saber Teológico
Published in
9 min readJun 2, 2019

Nessa pequena série, vamos estudar os aspectos da “Oração do Pai Nosso”, que Jesus ensina aos discípulos como modelo, para que sirva como aprendizado sobre nossa forma de orar.

A série é dividida em dez capítulos, falando de cada trecho da oração e explorando a oração de forma cuidadosa.

Gruta do Pai Nosso — Jerusalém — texto em Catalão

Seguindo no versículo final da Oração do Pai Nosso, após compreender a respeito das tentações, somos ensinados por Jesus e pedir ao Pai que nos livre do mal. É o último dos pedidos, antes da doxologia.

Porque esse pedido? Como Deus nos livra do mal? O que é, afinal de contas, esse mal?

“… mas livra-nos do mal…” Mateus 6:13 (NVI)

O pedido de livrar do mal é intimamente ligado ao pedido a respeito das tentações. Ambos dizem respeito a uma atuação do Maligno, do Adversário. Sendo nós, sem a ajuda do Eterno, incapazes de vencê-lo.

A palavra grega usada no original do evangelho de Mateus é Poneros. É uma palavra que não representa o mal como um todo, mas sim a singularidade dele na figura de Satanás.

Somos necessitados da proteção de Deus. Que nos guarde dos perigos, em diversas formas de apresentação.

O pedido para que Deus nos livre de todo o mal está intimamente ligado ao reconhecimento da Soberania de Deus sobre nossas vidas, sendo somente Ele capaz de nos proteger e blindar daquilo que nos rodeia, nos tornando aptos a enfrentar o cotidiano à espera da Eternidade.

O Mal é um conceito complexo. É o contraponto do que é Bom, do que é correto. Independente se escrito na língua portuguesa com L ou U no final, o Mal representa a negatividade, a dor, amargura, tristeza. Seja mal-assombrado, mau-hálito, mau-humor, mal-amado. São adjetivos que não gostamos de ouvir a nosso respeito.

No dicionário Michaelis existem pelo menos dezessete significados para o verbete “mal”, nas mais diversas aplicações, desde religião, filosofia, medicina ou veterinária¹.

A existência do mal é, sobretudo, um motivo de muitos questionarem ao próprio Deus, ou mesmo negarem sua existência. Muitos cristãos têm se perdido na Fé quando enfrentam a discussão sobre o mal face a existência de um Deus todo-poderoso, todo-presente, todo-bom e que tudo-sabe. Quando esses quatro pontos (onipotência, onipresença, onibenevolência e onisciência) são colocados num mesmo campo que o mal, sendo o sujeito o próprio Deus, a presença do mal não encontra espaço, o que leva a duas possíveis conclusões precipitadas a esse respeito: ou Deus não existe ou aquilo que nós cristãos falamos dele é mentira.

“Se Deus pode acabar com o mal, mas não quer, é monstruoso; se quer, mas não pode, é incapaz; se não pode nem quer, é impotente e cruel; se pode e quer, por que não o faz?” (Epicuro)

Muito se deve ao fato de que não existe uma compreensão da Bíblia adequada — não é feito nas igrejas e assembleias de santos o estudo das Escrituras como deve ser feito.

Não existe, todavia, uma resposta precisa para isso. Ao mesmo tempo, não é algo sem que haja como contrapor pensamentos.

A existência de Deus e do Mal não são incompatíveis!

Jonas Madureira, um dos mais jovens e importantes teólogos brasileiros, traz em seu texto sobre o tema²:

Alvin Plantinga desenvolveu uma tese muito interessante a respeito disso, dizendo para deixarmos de tentar justificar a Deus diminuindo algum dos seus atributos, mas mostrar que não há nenhuma contradição entre a existência de Deus e do mal. Contradição = Dizer que A é igual a não-A. Afirmar algo e negar este mesmo algo no mesmo sentido e contexto. Ex.: Jesus é homem e Jesus não é homem. Antinomia = Uma aparente contradição quando afirmada no mesmo contexto. Ex.: Jesus é homem e Jesus é Deus. As antinomias aparecem não só na Bíblia, mas na filosofia, biologia, física [um exemplo de todo dia é a luz que é uma onde e uma partícula]. Quando um ateu chegar e falar “Deus não existe, pois o mal existe”, pergunte “Você sabe que é uma antinomia?”. Se ele responder que não, mande-o ir estudar e voltar depois.

Dentro da soberania de Deus, é possível concluir que o mal é na verdade um decreto do próprio Deus. A Soberania do Senhor pode ser vista nos versículos a seguir:

Desde o início faço conhecido o fim, desde tempos remotos, o que ainda virá. Digo: Meu propósito ficará de pé, e farei tudo o que me agrada. — Isaías 46:10

Não se vendem dois pardais por uma moedinha? Contudo, nenhum deles cai no chão sem o consentimento do Pai de vocês. — Mateus 10:29

Em seu coração o homem planeja o seu caminho, mas o Senhor determina os seus passos. — Provérbios 16:9

…pois é Deus quem efetua em vocês tanto o querer quanto o realizar, de acordo com a boa vontade dele. — Filipenses 2:13 (NVI)

Segundo Vincent Cheung³:

Baseados nas passagens acima, chegamos à seguinte conclusão: Deus controla tudo o que existe e tudo o que acontece. Não há nada que aconteça que Ele não tenha ativamente decretado — nem mesmo um simples pensamento na mente do homem. Visto que isto é verdadeiro, segue-se que Deus decretou a existência do mal; Ele não o permitiu meramente, como se algo pudesse se originar e acontecer aparte de Sua vontade e do Seu poder. Visto que temos mostrado que nenhuma criatura pode fazer decisões completamente independentes, o mal nunca poderia ter começado sem o decreto ativo de Deus, e não poderia continuar nem por um momento aparte da vontade de Deus. Deus decretou o mal, no final das contas, para a Sua própria glória, embora não seja necessário conhecer ou declarar esta razão para defender o Cristianismo do problema do mal.

O censo que o Rei Davi fez em Israel é um exemplo de como Deus promove o mau, por vezes através de próprio agente secundário, com fins da Sua glorificação.

Mais uma vez, irou-se o Senhor contra Israel. E incitou Davi contra o povo, levando-o a fazer um censo de Israel e de Judá. — 2 Samuel 24:1

Satanás levantou-se contra Israel e levou Davi a fazer um recenseamento do povo. — 1 Crônicas 21:1 (NVI)

Ou seja, ainda que o mal seja negativo, quando seu objetivo de ser é a glorificação do nome de Deus, se torna em segunda análise algo positivo, pois justifica-se por um bem maior.

Cheung assim explica:

Alguém que pensa que a glória de Deus não é digna da morte e sofrimento de bilhões de pessoas tem uma opinião muito alta de si mesmo e da humanidade. A dignidade de uma pessoa pode ser derivada somente do Seu criador ou lhe dada por Ele, e à luz do propósito para o qual o Criador lhe fez. Visto que Deus é o único padrão de medida, se Ele pensa que algo é justificável, então, este é, por definição, justificável. Os cristãos não deveriam ter problemas em afirmar tudo isto, e aqueles que acham difícil aceitar o que a Escritura explicitamente ensina, deveriam reconsiderar seu compromisso espiritual, para ver se eles estão verdadeiramente na fé.

O mal, portanto, à luz das escrituras apresenta quatro características que R. C. Sproul muito bem apresenta:

A primeira é que o mal não é uma ilusão: ele existe. A Bíblia apresenta seus relatos sem deixar de demonstrar sofrimento e dor, individuais ou coletivos. Em seguida, Deus não é caprichoso, arbitrário, irracional: quando enfrentamos um mal que nos é incapaz de culpabilizar ou explicar, podemos tão somente reconhecer a Soberania de Deus e ter a certeza que tudo caminha segundo o seu propósito.

Terceiro, o mundo onde esse mal existe é um mundo caído, que constantemente é retroalimentado pela própria maldade, que vem sendo destruído cotidianamente, principalmente pelo homem.

Por fim, o mal não é definitivo. O cristianismo nunca nega o horror do mal, mas também não o considera como tendo qualquer poder maior ou igual ao de Deus. A palavra final da Escritura sobre o mal é triunfo. A criação geme enquanto aguarda por sua redenção final, mas esse gemido não é em vão. Sobre toda a criação está o Cristo ressurreto — Christus Victor — que triunfou sobre os poderes do mal e fará novas todas as coisas. (SPROUL).

Assim, ao orarmos para que Deus nos livre do mal, nós oramos para que Ele na sua infinita misericórdia, da qual tanto necessitamos, possa nos proteger do Maligno, para que o inimigo de nossas almas não ofereça a nós ameaça de qualquer mal, tampouco tentações.

O Senhor nos livrará do mal pois Ele é poderoso para tal, sendo Ele o Senhor das nossas vontades e condutas, plenamente poderoso, plenamente ciente, plenamente bom e plenamente presenta nas nossas vidas para, em atendimento à sua Vontade, sermos livrados do mal.

Não existe para nós promessas de uma vida isenta de tristezas, provações, desafios. Os pedidos que são realizados a Deus nessa oração ensinada por Jesus são o retrato fiel de que dependemos única e exclusivamente do Senhor para o nosso dia-a-dia. Pedir o livramento do mal deve ter como objetivo, portanto, não somente a própria manutenção de nossa vida, porque ela perante Deus nada vale. Mas sim, para que quando livres do mal, o Seu Santo Nome possa ser glorificado.

John Stott⁵ assim fala a respeito dos pedidos:

“Os três pedidos que Jesus coloca em nossos lábios são magnificamente completos. Incluem, em princípio, todas as nossas necessidades humanas: materiais (o pão de cada dia), espirituais (perdão de pecados) e morais (livramento do mal). O que fazemos, sempre que proferimos esta oração, é expressar nossa dependência de Deus em cada setor da vida humana. Além disso, um cristão trinitário é levado a perceber nestes três pedidos uma alusão velada à Trindade, uma vez que é através da criação do Pai e da sua providência que recebemos o nosso pão de cada dia, e é através da morte expiatória do Filho que recebemos o perdão, e através do poder do Espírito que habita em nós que somos livrados do maligno. Não nos causa admiração que alguns manuscritos antigos (embora não os melhores) terminem com a doxologia, atribuindo a este Deus triúno “o reino e o poder e a glória”, os quais somente a ele pertencem” (STOTT, p. 70)

A oração de Matthew Henry⁶ sobre “livra-nos do mal”, uma continuidade da mesma oração sobre as tentações, é digna de reprodução:

E livra-nos do mal, nós te imploramos; guarda-nos, para que o Maligno não nos toque (1Jo 5.18), para que ele não semeie seus joios no campo dos nossos corações (Mt 13.25), para que nós não sejamos enganados pelas suas ciladas ou feridos pelos seus dardos inflamados (Ef 6.11,16); que a palavra de Deus permaneça em nós, para que nós possamos ser fortes e possamos vencer o Maligno (1Jo 2.14). Livra-nos de toda coisa má, nós oramos, para que não façamos mal algum (2Co 13.7): ó, livra-nos de toda obra maligna (2Tm 4.18); salva-nos dos nossos pecados (Mt 1.21); redime-nos de toda iniquidade (Tt 2.14), especialmente do pecado que tenazmente nos assedia (Hb 12.1). Livra-nos da soberba (Jó 33.17); afasta de nós o caminho da falsidade (Sl 119.29); que nós não comamos das iguarias dos pecadores (Sl 141.4); inclina-nos o coração aos teus testemunhos e não à cobiça (Sl 119.36); e guarda-nos de falar irrefletidamente (Sl 106.33); mas, especialmente, da soberba guarda os teus servos, que ela não nos domine (Sl 19.13). Preserva-nos, nós te pedimos, que nenhum mal nos suceda (Sl 91.10); e guarda-nos do mal, para que ele não nos fira (Sl 121.7). Ó Salvador dos que à tua destra buscam refúgio, mostra as maravilhas da tua bondade, e guarda-nos como a menina dos olhos, esconde-nos à sombra das tuas asas (Sl 17.7,8); guarda o teu depósito (2Tm 1.12). Tu que nos livraste, por favor, livra; e nós esperamos e oramos que tu nos livres novamente (2Co 1.10), nos livres de todos os nossos temores (Sl 34.4). Ó, faze-nos habitar seguros e concede-nos que possamos estar tranquilos e sem temor do mal (Pv 1.33). E traga-nos seguros, finalmente, ao teu santo monte, onde já não haverá espinho que pique, nem abrolho que cause dor (Ez 28.24), onde não se fará mal nem dano algum (Is 11.9).

Ainda que tudo passe pela soberania de Deus, ainda que o mal sirva para glorificá-lo em razões que nos fogem à compreensão, é fundamental que oremos clamando pela sua proteção, de forma que tomamos nós a consciência de todo o seu poder a respeito das nossas vidas, sabendo que os dias bons e os dias maus servem somente para louvor do Seu Santo Nome.

Non nobis, Domine, sed nomini tuo ad gloriam.

Em Cristo,

Fellipe Fraga.

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Referências:

¹ MICAELIS ONLINE. Verbete “mal”. Disponível em http://michaelis.uol.com.br/busca?id=poRo1

² MADUREIRA, Jonas. “O Problema do Mal”. Voltemos ao Evangelho. Disponível em: https://voltemosaoevangelho.com/blog/2012/03/jonas-madureira-o-problema-do-mal/

³ CHAUNG, Vincent. “O problema do Mal” — Monergismo. Traduzido por Felipe Sabino de Araújo Neto. Cuiabá, MT. 2005. Disponível em: http://www.monergismo.com/textos/problema_do_mal/mal_cheung.htm

SPROUL, R.C. — “Respondendo ao Problema do Mal”. Traduzido por Alan Cristie. Ministério Fiel. Disponível em: https://www.ligonier.org/learn/devotionals/praying-gods-forgiveness/

STOTT, John. Contracultura cristã — A mensagem do Sermão do Monte. ABU Editora. São Paulo, 1981

HENRY, Matthew. “Lead us Not into Temptation”, traduzido por André Aloísio Oliveira da Silva. Ministério Fiel, 2016. Disponível em: https://voltemosaoevangelho.com/blog/2016/09/orando-o-pai-nosso-e-nao-nos-deixes-cair-em-tentacao-mas-livra-nos-do-mal/

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