Minuciosa Oração: Capítulo V — Deus Vult

Fellipe Fraga
Saber Teológico
Published in
7 min readApr 21, 2019

Nessa pequena série, vamos estudar os aspectos da “Oração do Pai Nosso”, que Jesus ensina aos discípulos como modelo, para que sirva como aprendizado sobre nossa forma de orar.

A série é dividida em dez capítulos, falando de cada trecho da oração e explorando a oração de forma cuidadosa.

Gruta do Pai Nosso — Jerusalém — Texto em macedônio

O título desse estudo pode parecer estranho inicialmente aos olhos de quem lê, mas sua explicação é histórica. No século XI, a frase foi entoada pelo povo quando inciou-se a primeira cruzada. Significa “É a vontade de Deus”, ou “Deus o quer”.

A vontade de Deus, tema deste estudo, carrega subsídios para que falássemos a seu respeito por textos e mais textos, de tal sorte que é desafiante nesse breve estudo sintetizar dentro do contexto da Oração do Pai Nosso do capítulo 6 de Mateus, sem deixar de lado aspectos importantes do que compreende a vontade de Deus.

Uma análise equivocada a respeito da vontade de Deus pode direcionar uma congregação a caminhos heréticos no estudo da salvação, pode levar a questionamentos de enfraquecimento sobre o problema do mal aos corações atribulados, pode afetar seriamente até mesmo a ética do indivíduo.

“… seja feita a tua vontade, assim na terra como no céu.” Mateus 6:10 — NVI

A oração do Pai Nosso inicia com três petições: santificação do nome de Deus, vinda do Reino e o cumprimento da vontade do Eterno. São três pedidos que se centralizam em Deus, sendo Ele somente o centro da oração e do coração do homem, em reconhecimento a tudo que Deus é.

No grego, a expressão é thelema, que ao lado de boulê, é uma das palavras que foram traduzidas como vontade no Novo Testamento. Tassia Soares Homobono e Luiz Felipe Xavier, em artigo sobre o tema¹, percebem a distinção entre os termos:

“Essa distinção é percebida quando os tradutores optam por “propósito” e “desígnio” ao se referirem a boulê, e por “vontade” ao se referirem a thelema. Apesar da diferença quantitativa, 8 entradas de boulê e 50 entradas de thelema, fica claro que a escolha do primeiro termo aponta para uma “vontade” imutável e irresistível associada ao plano de Deus, bem como ao seu propósito de enviar Jesus para salvar a humanidade caída. O segundo termo traduz a “vontade de Deus” de forma generalizada. Esta é apresentada como algo a ser realizado pelo homem, algo que produz consequências práticas.” (HOMONOBO e XAVIER, p. 12)

Sendo thelema, portanto, a petição citada por Mateus alcança um pedido a Deus para a nossa vida corresponda à sua vontade, àquilo que ele “espera” de nós. Se difere do plano soberano, como ocorre no momento em que Jesus orava no Getsêmani:

Indo um pouco mais adiante, prostrou-se com o rosto em terra e orou: “Meu Pai, se for possível, afasta de mim este cálice; contudo, não seja como eu quero, mas sim como tu queres”. — Mateus 26:39 (NVI)

Ao contrário dessa vontade soberana o pedido na oração refere-se a aquilo que deve ocorrer mediante o agir do homem, em cumpri ou não aquilo que Deus tem direcionado.

Essa dualidade de um mesmo termo: vontade, pode ser exemplificado mediante uma análise de um fato triste, esses que movem o questionamento a respeito do Senhor e sua vontade, chegando ao próprio caráter.

A tragédia ocorrida no Rio de Janeiro, em decorrência das chuva causou mortes, sendo o despreparo para lidar com os eventos meteorológicos causado em boa parte por corrupção e má conduta do homem, seja o político ou o mero morador. Se analisarmos sob o prisma da atitude humana, e a vontade preceitual de Deus, a resposta é que não é da vontade (thelema) de Deus. Contudo, é inegável que Ele é poderoso para impedir que tal tragédia aconteça, mas não o faz por razões que desconhecemos e que fazem parte da sua soberania, logo sua vontade (boulê).

Quando pensamos na vontade de Deus, nossa mente imediatamente nos direciona ao texto de Romanos 12:2:

Não se amoldem ao padrão deste mundo, mas transformem-se pela renovação da sua mente, para que sejam capazes de experimentar e comprovar a boa, agradável e perfeita vontade de Deus. — Romanos 12:2 (NVI)

A vontade de Deus é de tal forma correta, que o próprio Jesus, ao ensinar o modelo de oração, nos orienta a orar pedindo que a vontade de Deus seja feita, “assim na Terra como nos Céus”.

John Stott, em Contracultura Cristã², conecta as três petições:

A vontade de Deus é “boa, aceitável e perfeita”, pois é a vontade de “nosso Pai que está nos céus”, que é infinito em conhecimento, em amor e em poder. Portanto, resistir-lhe é loucura; e discerni-la, desejá-la e fazê-la é sabedoria. Assim como o seu nome já é santo e ele já é Rei, também a sua vontade está sendo feita “no céu”. O que Jesus nos incita a orar é que a vida na terra se aproxime o mais possível da vida no céu, pois a expressão na terra como no céu parece aplicar-se igualmente à santificação do nome de Deus, à propagação do seu reino e à consumação da sua vontade. (STOTT, p. 68)

O caminhar com Deus nos torna capazes de entender a instrução do Eterno para seguirmos pelos lugares que ele quer que passemos.

Ao homem que teme ao Senhor, ele o instruirá no caminho que deve escolher — Salmos 25.12 (NVI).

Instruir-te-ei e te ensinarei o caminho que deves seguir; e sob minhas vistas te darei conselho — Salmos 32:8 (NVI)

E é esse relacionamento que o teólogo John Piper direciona como ferramenta necessária para que a oração seja cumprida: a vontade de Deus realizada, exatamente mediante a transformação da mente proposta pelo apóstolo Paulo no texto de Romanos, que, tal como na oração ensinada pelo Mestre, usa a vontade preceitual de Deus.

Para Piper³, existem três estágios do conhecimento e do cumprimento da vontade revelada de Deus.

O primeiro deles é entender que a vontade de Deus é revelada somente na Bíblia. Ou seja, é na Palavra que estão os fundamentos e a solidez necessária para compreender o que de fato Deus quer, e para tal é preciso ter a mente renovada, sem a qual acabamos distorcendo as coisas para não cumprir a vontade de Deus ou “adequá-la” aos desígnios pecaminosos do nosso coração.

A vontade de preceito autoritária de Deus é encontrada apenas na Bíblia. Paulo afirma que as Escrituras são inspiradas e tornam o cristão “perfeito e perfeitamente habilitado para toda boa obra” (2 Timóteo 3:17). Não apenas para algumas boas obras. “Toda boa obra”. Ó, quanta energia, tempo e devoção os cristãos deveriam dedicar meditando na Palavra de Deus escrita. (PIPER, Qual é a vontade Deus e como a conhecemos?)

O segundo estágio é prático: aplicar a vontade de Deus no dia-a-dia, quando nem sempre as atitudes são explicitadas na Bíblia. É o aspecto principiológico da vontade de Deus.

A mente renovada e o conhecimento pleno do que é a vontade de Deus faz com que as nossas decisões corriqueiras sejam sempre pautadas naquilo que o Senhor espera de nós enquanto seus servos, seguidores e filhos. Realizar determinadas condutas e dizer “assim Deus quis” como justificativa, ou “Deus mandou”, sem que isso esteja de acordo com o que o Eterno se apresenta nas Escrituras é a demonstração clara de que não há a mente de fato renovada.

Há uma diferença imensa entre orar e trabalhar para uma mente renovada que discerne como aplicar a Palavra de Deus, por um lado, e o hábito de pedir a Deus para lhe dar uma nova revelação sobre o que fazer, por outro lado. Adivinhação não requer transformação. O propósito de Deus é uma nova mente, uma nova forma de pensar e julgar, não apenas nova informação. Seu propósito é que sejamos transformados, santificados, libertos pela verdade de sua Palavra revelada (João 8:32; 17:17). Assim, o segundo estágio da vontade de preceito de Deus é o discernimento da aplicação das Escrituras às novas situações da vida por meio de uma mente renovada.(PIPER, op. cit.)

Por fim, o terceiro estágio, na conduta impensada. Agir de forma que não haja uma reflexão prévia sobre nossas decisões e ações nos impede de aplicar a vontade de Deus, e somos tomados pelos pecados quando não nos posicionamos diante das situações como verdadeiros cristãos.

Portanto, não está claro que há uma grande tarefa na vida cristã? Ser transformado pela renovação de sua mente. Precisamos de novos corações e novas mentes. Faça com que a árvore seja boa e o fruto será bom (Mateus 12:33). Esse é o grande desafio. É o que Deus o desafia a fazer. Você não pode fazer isso com suas próprias forças. Você precisa de Cristo, que morreu por seus pecados. E você precisa do Espírito Santo para conduzi-lo à verdade que exalta a Cristo (PIPER, op. cit.)

Assim, quando nós oramos para que a vontade de Deus seja feita, a oração alcança o Senhor para que nos ajude a aplicar os seus preceitos na terra como eles o são no céu.

Ora, ainda que possamos interpretar como a vontade soberana de Deus, esta ocorrerá de todo modo dentro de sua onipotência e predestinação, desde a fundação do mundo.

Contudo, ao sermos participantes mediante a oração, reconhecendo que a Deus pertence a vontade, clamamos para que sejamos capazes de satisfazê-la e cumprí-la.

Non nobis, Domine, sed nomini tuo ad gloriam.

Em Cristo,

Fellipe Fraga.

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Referências:

¹ HOMOBONO, Tassia Soares e XAVIER, Luiz Felipe. “Discernindo a vontade de Deus — uma análise dos termos gregos boulê e thelema no Novo Testamento”

² STOTT, John. Contracultura cristã — A mensagem do Sermão do Monte. ABU Editora. São Paulo, 1981

³ PIPER, John. “What Is the Will of God and How Do We Know It?”. Desiring God Ministries. 2004. Disponível em: https://www.desiringgod.org/messages/what-is-the-will-of-god-and-how-do-we-know-it?lang=pt

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