Doutor Sono respira obra de Kubrick com muito respeito

Vinicius Machado
SALA SETE
Published in
4 min readNov 7, 2019
(Foto: Warner)

Antes mesmo de Doutor Sono começar, de fato, o público já recebe sua primeira referência de O Iluminado. A trilha sonora do filme de 80 chega junto ao letreiro da Warner Bros, com a impressão de que o filme em questão é o clássico de Kubrick. Não é. Mesmo recheado de momentos prontos para agradar aos fãs, o diretor e roteirista, Mike Flanagan, consegue entregar uma obra que funciona só e complementa seu anterior.

Adaptado do livro homônimo de Stephen King, escrito em 2013, Doutor Sono traz Dan Torrence, ainda marcado pelos traumas causados pelo seu pai e pelos acontecimentos no Hotel Overlook, em busca de uma vida mais tranquila, longe de seus vícios em álcool e os fantasmas que lhe assombram. Ao aflorar novamente seus dons de Iluminado, ele entra em contato com Abra, uma adolescente com dons semelhantes aos seus. A garota pede por ajuda ao entrar na rota de Rose, líder do grupo Verdadeiro Nó, que se alimenta do brilho de outras pessoas.

Muitos dos livros de King costumam ser um tanto quanto confusos, cheio de recortes e personagens, fazendo com que a adaptação para o cinema seja difícil. Aqui não é diferente. O filme demora a engatar por conta de diversos elementos que se ligam dentro da narrativa. A montagem se alterna entre a história — passado e presente de Dan, a introdução do Verdadeiro Nó e, posteriormente, a inserção de Abra no enredo. Todo esse processo demora cerca de uma hora até todas as peças se posicionarem no tabuleiro.

Mas isso não é sinônimo de cansaço. Flanagan sabe como usar a montagem a seu favor e tudo fica muito fluído na narrativa. E se o filme anterior usava a crescente e a evolução de uma narrativa comum, baseada na loucura, Doutor Sono já chega pronto pra expandir esse universo dentro da mitologia de O Iluminado. É quase uma história independente, não fossem as referências diretas que levam à construção da atmosfera do filme.

Para criar algo genuíno, Mike Flanagan usa suas armas já conhecidas por obras anteriores. O diretor, que já adaptou outro longa de Stephen King e também dirigiu uma das melhores séries dos últimos anos sabe criar momentos de tensão e sequências que utilizam bem os espaços, favorecendo a criação de uma atmosfera aterrorizante. Sem abusar dos jumpscares, ele consegue criar uma história que une os gêneros de fantasia, terror e suspense com muita competência.

A recriação das cenas com novos atores é a prova de que é possível criar alternativas sem recorrer ao digital (Foto: Warner)

Além de oferecer uma construção ainda maior desse cenário repleto de pessoas com dons sobrenaturais, é interessante como ele amarra as pontas do clássico. Se antes haviam algumas questões nebulosas aos espectadores, agora as informações ficam mais acessíveis. O que são os Iluminados? Qual é a função do Hotel Overlook? Quem são aqueles fantasmas que aterrorizavam Dan? As respostas estão todas lá, o que também pode ter seu lado negativo, já que toda a subjetividade de O Iluminado — um de seus grandes trunfos, cai por terra.

As referências são incontáveis, que vão desde os mesmos personagens, sejam eles em cenas inéditas ou revisitadas, até enquadramentos e planos que lembram a obra de Kubrick, a exemplo de Dan na sala de um médico ou até mesmo dele no bar dentro do Hotel Overlook. Muitas delas servem para compor a história, mas outras soam completamente forçadas, como as com o machado, já no seu terceiro ato — esse que não passa um segundo sequer sem um fan service. No entanto, a escolha de utilizar novos atores para representar Shelley Duvall (Alex Essoe) e Jack Nicholson (Henry Thomas) é muito acertada. Ambos conseguem trazer a essência de Wendy e Jack Torrence tanto pelas expressões, quanto pelas falas e trejeitos.

Já o elenco principal funciona. Ewan McGregor como Dan traz todo o peso de seus traumas e o cansaço de fugir deles. Rebecca Ferguson como a vilã, as vezes caricata demais, conquista o espectador com o carisma e a periculosidade da personagem.

Kyliegh Curran, guarde esse nome (Foto: Warner)

Porém, é a estreante Kyliegh Curran que segura boa parte do filme no papel de Abra. A garota carrega uma personagem cheia de camadas e momento algum se mostra frágil ou indefesa diante dos conflitos que o enredo lhe oferece. É uma personagem madura e que se impõe em cena, mesmo diante de dois experientes como McGregor e Ferguson.

Apesar de respirar O Iluminado por suas duas horas e meia de duração, Doutor Sono não busca ser uma cópia ou uma mera sequência. Pelo contrário, ele carrega o peso de expandir esse universo ao mesmo tempo em que respeita e homenageia um clássico, além de funcionar como um bom filme de suspense. Se Stephen King grita para todos os cantos sua reprovação ao filme de Kubrick, aqui ele não terá motivos para reclamações, já que a adaptação é quase uma cópia fiel de sua obra.

--

--

Vinicius Machado
SALA SETE

Jornalista, cinéfilo, fanático por Star Wars e editor do blog Sala Sete. Escreve sobre filmes e não dispensa uma boa conversa sobre o assunto.