Mostra SP: Entrevista com João Nuno Pinto (Mosquito)

Vinicius Machado
SALA SETE
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14 min readOct 30, 2020
Foto: Portal Publico.pt

Conversando com o diretor português, João Nuno Pinto, via Zoom, o diretor se mostra contente ao ouvir de mim que seu mais novo filme, Mosquito, é um dos melhores avaliados da 44ªMostra Internacional de São Paulo. Não à toa, a produção portuguesa é um dos finalistas da Competição Novos Diretores. “Uma pena eu não poder estar aí acompanhando este momento especial, esse calor todo”, responde ele, que já morou no Brasil e é casado com a brasileira Fernanda Polacow — também roteirista de Mosquito ao lado dele. “O filme foi pensado para o cinema, como uma experiência multissensorial, trabalho de som, fotografia, sonoplastia, o design daquilo foi feito pro cinema”, lamenta, assim como eu, já que, por conta da pandemia, a Mostra de São Paulo acontece toda online.

Nascido em Moçambique em 1969, João Nuno Pinto construiu sua vida na publicidade, mas o flerte com a ficção se faz há mais de dez anos, com o curta Skype Me (2008), o longa, América (2010) e agora Mosquito, filme que ele mesmo procura dizer ter uma espécie de maldição, já que enfrentou todos os tipos de percalços durante sua pré e pós produção. “Acho que nós não fizemos todas as oferendas que devíamos ter feito para os espíritos locais”, diz.

O diretor comenta que percorreu mais de 5 mil quilômetros para montar a jornada de Zacarias, um jovem português de 17 anos enviado a Moçambique durante a Primeira Guerra Mundial, e vê seu filme como parte importante na revelação das expedições e combates portugueses no continente africano.

A entrevista, que durou uma hora, pode ser conferida na íntegra aqui:

A história é baseada na vida de seu avô, mas eu queria saber o que é, de fato, inspirado em seu avô, e o que você tornou ficção?

Eu nunca o conheci. Na história original, meu avô tinha 17 anos e queria muito ir pra guerra. Já existia essa sede aventura e de descoberta. Esse perfil do personagem e da parte do orgulho é uma característica muito enraizada na parte paterna da minha família. E o Zacarias é esse personagem super orgulhoso e o orgulho nesse sentido como um espelho distorcido da nossa realidade e da maneira como vemos a nós mesmos. E essa caraterística fundamental do meu avô e eu queria que fosse parte do personagem. Depois em relação à história, ele de fato queria ir para a França, é enviado para Moçambique, quando chega a Moçambique ele pega malária, é deixado para trás pelo seu pelotão, e parte em busca da guerra, com a carregador e o guia, mata um deles e o outro acaba fugindo. E segundo a lenda familiar, ele chega a fazer 2 mil km mata adentra, e quando finalmente encontra a guerra, ela já havia terminado. Esse é o plot verídico, o restante é tudo ficção.

Você comenta sobre essa questão da sua família ser patriota, nacionalista. Aqui no Brasil, vivemos um período complicado, e de uns anos pra cá o nacionalismo tomou conta de uma parcela das pessoas, de uma forma perigosa, até. Isso ocorre em Portugal? Você enxerga uma relação com os tempos atuais em Mosquito?

Esse fenômeno dessa radicalização do pensamento a direita ou extrema direita nos populismos e nacionalismo, infelizmente não é só no Brasil, é um fenômeno mundial. E em Portugal felizmente eu tenho uma repercussão muito menor, obviamente, coisa que nunca houve antes, nós éramos o único país da Europa que ainda não tinha um partido de extrema direita no parlamento, nas últimas eleições ano passado, infelizmente les conseguiram romper e agora temos um deputado eleito. Pode se dizer que um é pouco, mas para quem nunca teve nenhum, já é muito, é dar um megafone a ideias radicais. Então essa ameaçada é estar latente e cada vez mais presente, isso foi uma das razões que pra mim era importante que o filme tivesse uma ressonância com os dias de hoje, ou seja, que o público e a juventude conseguissem se relacionar com o filme, com os personagens. É um filme de época, mas eu não queria que fosse visto como filme do passado, mas algo com que nós, nos dias de hoje, conseguíssemos nos identificar, e que pra mim era muito claro que eu tinha que utilizar uma linguagem muito contemporânea, não só na cinematografia, como na sonoplastia, na trilha sonora, como foi trabalhado com música eletrônica, que era exatamente para trazer o filme para os dias de hoje. E a mensagem é essa, é uma história do passado, mas esses personagens tem humanidade nos dias de hoje. A moralidade deles é a de cem anos atrás, mas a humanidade é constante. E a ideia era colocar o público nas botas de Zacarias, então nós vemos o que ele vê, ele está em todas as cenas, nós enxergamos o mundo e a compreensão dele por meio do próprio Zacarias. Então pra mim era muito importante que o filme pudesse nos ajudar nesse debate nos dias de hoje.

Voltando na questão familiar, como sua família recebeu a construção do personagem, um homem moralmente questionável, sendo ele baseado em seu avô?

Eu acho que fui deserdado (risos). Eu nunca conheci o meu avô, mas estamos falando do pai do meu pai, e eu quando estava filmando, via muitas atitudes que eu olhava pro céu e pedia perdão. Mas o que é certo, a partir do momento que nós começamos a pensar no filme, rapidamente eu percebo que não quero contar a história do meu avô. Não quero tornar isso um filme de aventura, quero falar de assuntos que são mais urgentes e importantes, e é nesse momento em que eu decido abandonar a história do meu avô, e usa-la apenas como um início de conversa. Então ficou muito claro: eu vou usar algumas características dele, mas vou me afastar dele, e aqui eu só não mudei o nome, porque não consegui, pois ficava todo tempo o chamando de Zacarias. O nome possui muita força, e nós ficamos emocionalmente agarrados aos nomes e a forma como tratamos, e não consegui me afastar do nome, embora o personagem em si esteja completamente afastado. Então, quando escrevemos o personagem, estava muito claro, era um jovem doutrinado, e ele tem que se comportar de acordo com sua doutrinação, com sua inocência e arrogância, se se comportasse de outra forma, eu já estaria tomando partido enquanto realizados, fazer o próprio julgamento moral do personagem. Então eu precisava deixar ele ser quem ele era. Ele toma atitudes que eram questionáveis, e minha questão era de como manter o espectador do lado de um personagem que é moralmente questionável, que toma atitudes deploráveis, pois nossa tendência é ter repulsa a quem faz isso, então sendo o Zacarias mais como um anti-herói, e isso tem a ver, mais que verbalizar, com mostrar o outro lado, sua vulnerabilidade, sua inocência, sabemos que no fundo, aquela é uma criança, está na guerra, mas não deixa de ser uma criança.

Eu enxergo algumas referências e um conceito parecido com Appocalypse Now no filme. Quais são as suas principais referências na construção do filme?

Appocalypse Now é um filme da vida de todos nós, eu vi não sei quantas vezes. Mas não voltei a vê-lo enquanto estava preparando-o, o que me interessava na história de Appocalypse Now, mais do que o filme era o livro, Heart of Darkness, do Joseph Conrad. Mas ele não serviu como ponto de partida, mas serviu quanto estávamos pensando sobre o filme, porque tem a ver com isso, essa jornada e essa visão eurocêntrica de quem entra na selva e encontra todos os seus demônios, o europeu em busca da riqueza e do poder, com toda sua ganancia e sua luta contra a natureza, essa indomável. O filme tem isso, a história de Zacarias tinha isso, essa caminhada pra loucura, através da entrada na selva. Mas por outro lado, o Heart of Darkness também é um livro bem racista, e como ele repassa esse clichê do selvagem, como uma ameaça e da África como ameaça, que é uma visão exatamente de como os europeus tinham a cem anos atrás. O continente negro tem mais a ver com um continente cheio de mistérios e ameaças, e o negro é uma ameaça, de um lugar onde os animais eram ameaçadores que era possível ver um gorila gigante igual ao King Kong.

Outro filme que eu fui buscar, mas na forma de como abordar o filme foi o Aguirre, a Cólera dos Deuses, de Werner Herzog, porque eu sabia que seria uma jornada difícil. Não só toda a preparação, que foi desgastante, e houve uma grande perseverança para conseguir levar a frente, como a própria filmagem, que foi feita em condições muito difíceis, e por ser um road movie, estávamos sempre em movimento, onde não havia hotéis, restaurantes, a estrutura que estávamos acostumados a ter. Então a própria linguagem do filme é um reflexo das limitações que encontramos, então a loucura e a obsessão de conseguir este projeto. Então no caso de Aguirre, era o caso da consciência deste lugar, de fazer cinema.

Agora o filme que mais me inspirou foi Lore, da Cate Shortland, que tem uma coisa incrível. É um filme sobre uma menina filha de nazistas, que no final da segunda guerra ela tem que fugir e salvar seus irmãos, os pais trabalhavam em campos de concentração eram nazis de primeiro escalão, e o filme é incrível, ele é filmado com uma sensibilidade, com uma delicadeza no olhar e a forma de como essa diretora filme e nos leva ao personagem faz com que nós, espectadores, estejamos ao lado da nazista e não dos aliados, e entre o confronto da nazi e do judeu, estamos ao lado da protagonista, e é impressionante, e estamos porque entendemos a fragilidade da personagem, entendemos toda a doutrinação que ela levou para ter as atitudes que tem, e pra mim foi muito claro qual era o caminho que tinha que seguir com o Zacarias tal como ela conseguiu fazer com a Lore.

Você cita as dificuldades de rodar o filme, quais foram elas?

Antes mesmo de produzir o roteiro, nós percorremos mais de cinco mil quilômetros de carro por Moçambique, por caminhos complicados, só para fazer entrevistas, fazer pesquisas, elaborar tudo e entender o lado africano desta história. Quanto nós estamos a uma semana de filmar, acontecem conflitos armados entre duas facções políticas, entre o governo e os rebeldes e nós temos que cancelar as filmagens, depois de já ter feito todo um trabalho de preparação. Depois, passado um ano, começam os ataques no norte de Moçambique de islamitas radicais, porque o norte moçambicano é mulçumano e aquela região é tão largada ao esquecimento pelo governo que se torna um terreno fértil para estes radicais islâmicos, então começam esses ataques justamente onde íamos filmar, ou seja, as tropas desembarcavam em mocambo da praia e os ataques começaram exatamente ali, então mais uma vez adiamos as filmagens. Depois precisamos passar todas as filmagens para o sul do país, onde era mais seguro de filmar, tivemos que voltar a fazer novas visitas de locação, novas pesquisas locais, pois todo o sul do país é savana, enquanto o norte é floresta então tive que reescrever o roteiro para adaptar a jornada às novas locações, porque o espaço físico era o estado psicológico do personagem. Antes da filmagem, um dia antes de embarcar para Moçambique, meu assistente de direção, que estava comigo desde o início, teve um problema na vista e ficou proibido de viajar. Então foi bem caótico. Tivemos uma incompatibilidade técnica com os vídeos assists, então tiver que acompanhar as filmagens por uma tela pequena e sem retorno de áudio. Portanto, eu ouvia o que os atores diziam e tinha que gravar na cabeça o que tinha sido feito, tive que estar com muita atenção.

E tivemos outros também, como os rios, que em Moçambique todos possuem crocodilos. Então, era complicado escolher um lugar para fazer as cenas dentro da água, tínhamos que perguntar aos moradores se os rios tinham crocodilos e todos tinham. Até finalmente encontrarmos um local que não haviam crocodilos, para fazer as cenas da aldeia. Quando construímos a aldeia na locação, veio uma pessoa e disse que a propriedade era dela e não autorizava para a construção. E aí, durante as filmagens procurar um lugar novo para construir a aldeia. E, por fim, quando o filme finalmente estreia, uma semana depois, os cinemas fecham e entramos em lockdown.

Entrando no âmbito dos processos de pesquisa, quais foram os cuidados para não cair nos estereótipos africanos de uma visão eurocêntrica, que estamos acostumados a ver?

O tema do filme é esse. O Zacarias começa o filme com uma visão super eurocêntrica da África, e nós com ele também, porque também temos uma visão inocente e achamos que sabemos das coisas, mas na verdade não sabemos. E o personagem cresce, a África o transforma. Mas que África era essa? Se a África é quem o transforma, então precisa ser a África verdadeira, não pode ser um clichê. Então, para nós era muito claro precisávamos entender, enquanto ocidentais brancos, que olhar era esse. E por isso fizemos muita pesquisa. A Fernanda Polacow (roteirista do filme) já trabalha com temas africanos há muito tempo, eu nasci em Moçambique, então venho com muita bagagem do que é a África. Mas depois fizemos um trabalho muito grande de pesquisa, onde acabamos por estudar e pesquisar muito a cultura Macua, que é o povo que habita a região norte de Moçambique, onde se passa a história. Isso foi um dos conhecimentos estruturais no qual nos baseamos a história, que na verdade é o cruzamento entre o olhar europeu, com a narrativa clássica de uma jornada do herói, e o misticismo e a filosofia de vida Macua.

Todos os eventos que ele encontra, os significados deles, a razão de ser e como eles foram criados, tem a ver com a filosofia de vida Macua. E isso é obviamente subliminar, não está explicito no filme, mas está lá. E isso foi muito interessante, porque estudamos muito este entendimento do que é a África pelos olhos deles, isso ajudou a criarmos o filme. Então esta África, que ia crescendo para o personagem, tem a ver com as experiências que ele vivia e, que, segundo os Macua, são a base para o entendimento da vida.

Aliás, outra dificuldade que tive, como o filme seria no Norte, a cultura seria Macua, mas como precisamos filmar no Sul, a cultura de lá e Changana, e aí tive que tomar a decisão de filmar a tribo, que supostamente seria Macua, mas as mulheres eram da cultura Changanas. Eu tive que optar por colocar as mulheres falando Macua, ou seja, a atuação delas seria pior, ou elas falando na língua nativa delas, que é Changana, e vão estar muito mais à vontade sem precisar pensar como se pronuncia certas palavras. E obviamente interessa pra mim muito mais a verdade na atuação do que ser exatamente a mesma língua.

Então as mulheres da tribo não eram todas atrizes?

São atrizes e não atrizes, e isso foi uma coisa impressionante, o que se passou naquela aldeia dificilmente eu imaginaria aquilo em outro lugar. Porque foi de uma generosidade, de uma entrega incrível, o fato delas estarem expostas, seminuas, e terem de cortar o cabelo, porque era assim que usava há 100 anos atrás, é muito complicado. As crianças, não houve um choro de não querer estar ali, as mulheres que não eram atrizes se entregaram muito, e as filmagens eram duras, com muita testosterona, com soldados, homens e de repente chega ali, a Aldeia, e somos acolhidos por aquelas mulheres. Foi um momento muito especial.

O filme foi a abertura do Festival de Roterdã. Qual foi a recepção de Mosquito pelos europeus e portugueses?

Uma das razões pelas quais o filme foi escolhido para abrir o Festival de Roterdã, eu queria de fato abrir o festival com um filme que tivesse uma importância neste olhar sobre a relação entre a Europa e suas colônias. E foi isso que senti no impacto do filme, foi perceber que ele não era mais um filme que falava sobre isso, tem um olhar muito especial e eu queria mostrar aos outros realizadores europeus, principalmente ali na Holanda, que os holandeses também tem suas questões de colônias, de que é possível fazer outro cinema, é possível falar do nosso passado e abordar essas questões sem um floreamento, ir direto ao assunto. Esse foi o primeiro impacto, com essa crueza da relação dos europeus com seu passado. Nós continuamos a perpetuar uma narrativa e olhares que foram construídos por séculos em uma doutrinação, que não nos condiciona o olhar, nem as atitudes. Temos que esclarecer de que essas igrejas maravilhosas que temos, foram feitas com ouro que tiramos da américa do sul e da África. O nosso bem estar social, que tanto nos orgulhamos como europeus, só foi possível porque antes disso recebemos muita riqueza que não era nossa. É preciso ter essa consciência, para que possamos fazer as reparações necessárias. Em Portugal esse assunto é muito embrionário ainda, nós continuamos ainda achando que o país foi incrível durante seu descobrimento, como se Brasil fosse uma ilha inabitada. Mas é importante que ninguém, quando vê o filme, diz que não aconteceu. Há uma tentativa de fugir do confronto, como algumas desculpas, mas não é possível dizer que não foi assim, porque foi.

É muito perceptível que os acontecimentos do filme não são ensinados em escolas ou repassados à população. Você entende que este filme pode ser útil como apoio para conhecermos melhor a história?

Quando eu procuro a fazer pesquisa, eu começo a entender que há muito poca coisa, em Portugal ainda menos. Nossa referência para a Primeira Guerra Mundial é muito ainda na França, na guerra das trincheiras, mas uma das razões pela primeira guerra existir, foram as colônias, aluta dos impérios europeus pelo seu império ultramarino, em que a Alemanha não tinha e queria ter. E Portugal só entra na guerra para defender as colônias, que se não fizesse isso, ou os alemães tomavam, ou os ingleses, que também cobiçavam essas terras. Portugal era um republica jovem, implantada em 1910, e a primeira guerra começa em 1914, ou seja, Portugal não tinha ainda estrutura para entrar numa guerra. Então, morreram mais soldados na África, do que na França, e lá foi um desastre. E quando você começa a ler isso, ver a quantidade de africanos mortos e nunca contabilizados, o impacto foi brutal. E tudo isso foi apagado e não foi ensinado porque foi tão atroz, que não interessava a ninguém que se falasse disso, porque isso ia contra tudo o que se falava e toda a narrativa oficial da legitimação dos europeus como colonizadores, que era para trazer civilização, que era para civilizar aquele povo e trazer progresso, bem estar. Essa guerra mostra que foi ao contrário, trouxe morte, destruição. Nada disso é ensinado nas escolas, os livros são censurados e não se fala mais no assunto. E quando percebo que há cada vez mais a urgência de contar a história, com a responsabilidade de ser factualmente verdadeiro em tudo que se passa no filme. Claro, há uma grande divagação psicológica, onírica, mas os fatos são reais e a constituição histórica é a mais verdadeira possível. E Mosquito é um dos poucos que fala sobre isso.

Mosquito pode ser visto online no portal Mostra Play. Você pode conferir a crítica do filme aqui!

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Vinicius Machado
SALA SETE

Jornalista, cinéfilo, fanático por Star Wars e editor do blog Sala Sete. Escreve sobre filmes e não dispensa uma boa conversa sobre o assunto.