Mostra SP: Entrevista com Liu Ze (Apenas Mortais)

Vinicius Machado
SALA SETE
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9 min readNov 6, 2020

Liu Ze nasceu em Yuncheng, na China, em 1983. O diretor, apesar de estrear em seu primeiro longa agora em 2020, começou a fazer filmes quando ainda estava na faculdade, com os curtas-metragens, como The Other Side of the Mountain (2006) e River (2018), além do documentário The Third Uncle (2017). No entanto, é Apenas Mortais, seu projeto mais recente, o mais ousado, em que ele aborda a história de uma mulher que decide voltar à sua cidade natal para cuidar do pai, que sofre de Alzheimer e, ao longo do tratamento, passa por mudanças, que envolvem sua vida profissional e seus relacionamentos. “Basicamente, cada personagem apresentado no filme pode ser direcionado a alguém próximo a mim”, diz ele, em uma entrevista sincera e muito emocionante ao SALA SETE.

Apesar de ser uma história baseada no romance de Li Yanrong, há diversas conexões pessoais dentro do filme que fazem não só o público refletir, como também o próprio diretor. A entrevista pode ser conferida na íntegra abaixo:

Você trabalha no conceito de morte desde o começo do filme. Como você construiu essa atmosfera em Apenas Mortais?

Eu estava pensando no porquê de adaptar este romance, não percebi que ele tinha tanta conexão comigo quando o li pela primeira vez. Mas quando começo a escrever o roteiro, descobri que todos os personagens estão realmente conectados a mim.

Como eu e minha esposa visitamos seus avós durante o feriado, a avó dela tem Alzheimer por oito anos e seu marido cuidara dela durante todo esse tempo. Eu posso realmente sentir essa situação. Então eu estava pensando, se eu fosse ele, como vou lidar com isso, posso fazer isso por tanto tempo assim? Eu acho que é tão difícil. Existe um núcleo que me fez pensar no romance. Todo mundo está esperando a morte do Sr. Xia (Zhang Hongjing), e eu observei o que o avô da minha esposa passou nestes oito anos, e quero mostrar isso às pessoas. Então, eu uso uma doença trágica desde o início até a morte como a linha principal da história, conectando as mudanças no estado diário dos parentes em torno deste paciente. Uso os detalhes e trivialidades da vida para construir a atmosfera psicológica desses personagens e sua atitude em relação a este problema.

O filme é inspirado em um romance, mas o quão pessoal ele é para você?

Como o prato “arroz de porco no vapor” é uma coisa minha, vou para a casa da minha avó com frequência, ela sempre cozinha este prato para mim. E o diário do filme é real mesmo, é do avô da minha esposa, ele tem mais de 90 anos, ele escreveu muitos diários, ele acha que vai deixar sua cabeça sóbria, então eu escolhi um e extraí dois trechos dele para colocá-los no filme.

E o pai no filme é na verdade a avó da minha esposa, tem incontinência, e ela não tem ideia do que está acontecendo ao seu redor, como uma criança inocente. Cada vez que a visito, ela agarra minha mão e diz “Você está aqui”, sorrindo para mim. Depois, ela anda pela casa por um tempo e vem novamente pegar minha mão, repetir a mesma coisa. E embora toda vez que eu os visse, com a casa tão limpa e arruma, eu sei, quando eles estão sozinhos, deve doer muito. Ele me disse que literalmente pode ter um colapso às vezes, e não sabe onde isso vai acabar, e ninguém está lá para ajudá-lo. Naquele momento eu estava pensando em como mostrar para o público essa ruptura. O personagem da mãe que persiste por mais de dez anos, mas nesse momento, reclama para o pai na mesa e diz, “Não me torture mais”, penso que este é o meu verdadeiro estado de espírito.

A relação entre Qin Mu(Shi Xiaofei) e seu pai também é um reflexo entre eu e meu pai, que não somos tão próximos. Ele não expressa muito o que está sentindo, e eu já saí de casa há tantos anos, mas estou ansioso para voltar para casa durante o ano novo chinês, ao mesmo tempo em que tenho medo de voltar, porque não sei como me comunicar com meu pai. Eu me sinto longe, mas também perto dele, então exteriorizei esse sentimento e conspirei em Qin Mu.

As pessoas podem não entender ou acharem que não há necessidade de descrever Qin Mu e sua família na trama, mas eu quero colocar minha situação aqui. E, na verdade, a ideia que coloquei aqui é, Qin Mu odeia seu pai, porque seu pai é muito inútil em toda a sua vida. Mas no filme, há um momento em que Qin Muse sente tão inútil quanto seu pai, então acho que a razão pela qual ele o odeia é porque ele odeia a si mesmo, mas ele não percebe isso. Por muito tempo eu me senti um fracasso, tenho família e também sou pai, mas não fazia as coisas tão bem. Eu dava desculpas de que estava ocupado com minha carreira, mas minha carreira não foi tão boa em certos momentos.

Meu pai é de uma aldeia, mas neste momento acho que esta é a minha cura para este estágio da minha alma. Tentei voltar mais para casa nos últimos anos, e tentei me aproximar do coração do meu pai. Quero que ele venha morar comigo. Basicamente, cada personagem apresentado no filme pode ser direcionado a alguém próximo a mim.

Existe um choque notável entre as gerações ao lidar com a morte e as tradições…

Você pode ver no filme, a mãe (Li Kunmian) de Xia Tian (Tang Xiaoran) está esperando morrer com o Sr. Xia, e o Sr. Xia está esperando voltar para sua cidade natal, mas quando ele está sóbrio sabe que está esperando por sua morte. Para a geração jovem, como Qin Mu, quando ele enfrenta a família de Xia Tian, ele entende que é um problema insolúvel, então basicamente ele quer o Sr. Xia morto, pois aí não haverá problemas quando ele estiver com Xia Tian, mas Xia Tian, por sua vez, como filha, está esperando pelo milagre de que seu pai possa ser curado.

A mãe dela entendeu muito bem a situação e fez os preparativos para esperar por aquele dia. Xia Tian tinha fantasias no início, mas quando ela realmente voltou para casa para enfrentar as fezes dia e noite, no fundo de seu coração, começou a concordar que a morte é uma espécie de alívio, então ela interrompeu o oxigênio de seu pai em seu sonho. Matou seu pai em seu coração. A visão de duas gerações sobre a morte, uma é saber que esse dia chegará e enfrentá-lo com calma, e o outro deve ser forçado a concordar. Mas a morte é realmente um alívio? Talvez seja apenas um alívio para os mortos. Há reflexões sobre esse tema implantadas no filme, mas não quero me valer de conflitos de eventos para apresentá-lo, procuro traçar aos poucos o estado mental de cada um ao longo do dia a dia.

Os últimos minutos de Apenas Mortais flertam com um tipo de linguagem de terror, talvez mais espiritual. O que te aproximou desse formato?

Na prática, essa não é uma linguagem de terror, mas um estado do coração do personagem. É uma cena surrealista. Quando estava escrevendo o roteiro, estava pensando em como apresentar as emoções e estados internos do personagem por meio de imagens. Eu me pergunto se posso incluir algumas coisas irrealistas e, ao mesmo tempo, acrescentar um pouco do meu próprio pensamento nisso. As ruínas são as ruínas da cidade natal, e também as ruínas do coração.

Pela minha experiência pessoal, eu saio para estudar em outras cidades, moro e me instalo nelas, mas do fundo do meu coração, sinto que não é minha terra natal. O lar em meu coração pertence ao lugar onde nasci e cresci, mas nele pode haver um sentimento de solidão, sem nenhum sentimento de pertencimento. Quando eu volto para minha cidade natal, eu descubro que este lugar é realmente impossível de retornar, na memória a cidade natal se tornou uma ruína no fundo do meu coração, e muitos lugares realmente se tornaram ruínas. Plantei este terreno no Sr. Xia. Ele está sempre procurando por sua cidade natal. Ele sempre confunde sua filha com sua mãe. Lar é o lugar onde ele nasceu, o lar com emoções e memórias reais no fundo de seu coração e sua raiz. Por fim, ele caminhou sobre as ruínas, que era a aldeia onde ele tinha uma pequena vida. Ele caminhava sobre as ruínas, mas em seu coração caminhava pelas ruas antigas, ao lado de seus vizinhos. Como de costume, há jogadores de mahjong, tricoteiros de suéter e lavadoras de cabelo. Essas pessoas podem ser entendidas como inexistentes, também podem ser entendidas como pessoas que um dia vagaram em sua terra natal, e também podem ser entendidas como um reflexo de seu coração.

Por que essa opção de migrar para o lado sobrenatural? Como isso combina com a filosofia do filme?

No início do filme, há uma cena na loja funerária, o chefe diz “A morte é a liberação, você precisa ser puro e bonito quando for para a próxima fase”. Mas é realmente essa liberação? Todos estão esperando a morte do pai, mas a filha ela tem esperança. Ela acha que virá o milagre de que seu pai será curado. A maior distância na vida é quando a filha está na frente dele, mas ele não sabe que ela é sua filha. Ela desejava que seu pai melhorasse, não mais sofresse, desejava que ele pudesse reconhecê-la, mas quando ela começa a enfrentar essa vida, ela começa a desmoronar, ela começa a concordar que talvez a morte seja mesmo uma liberação. Quando o pai dela morre, naquele momento ela está perdida e chocada, e eu preciso colocar meus pensamentos sobre Xia Tian nisso, deixar as pessoas pensarem nessa questão cruel. Existe um ditado famoso na China: “Quando os pais estão vivos, você sabe de onde veio (ou nasceu); mas se os pais faleceram, o único caminho que você deixou em sua vida é em direção à morte”.

Em Apenas Mortais, existe uma ideia de como funcionam os tratamentos de saúde no Oriente, e também como se encaram as doenças e até a morte. Como é transmitir isso ao mundo?

Não tenho certeza se a atitude em relação à morte apresentada no filme é um pensamento puramente oriental. É apenas essa história familiar diária, que desencadeia o pensamento de todos sobre este assunto. Quando as pessoas estão no tormento da doença, como as pessoas devem escolher, se devem viver com segurança ou morrer com dignidade, se devem apenas considerar seus próprios sentimentos ou levar em conta os sentimentos de seus parentes ao seu redor. Como uma pessoa que sofre de uma doença e está morrendo, as pessoas ao seu redor também precisam enfrentar esse pensamento cruel. A morte é realmente um alívio? Isso precisa ser considerado da perspectiva dos vivos e da vida

Aliás, como é para você ser visto em diversos locais do mundo, já em um de seus primeiros projetos?

Para um diretor novo, espera-se que o trabalho tenha mais público e as vozes das críticas aumentem. Isso também é emocionante. O filme pode ser considerado como completo assim que ele enfrenta o público. Se o filme é visto em todas as partes do mundo, você pode ouvir o feedback em diferentes ambientes culturais sobre o filme, o que pode tornar o pensamento e a visão do diretor mais amplos, o que pra mim é uma enorme honra.

Apenas Mortais está disponível na plataforma Mostra Play, pela repescagem da 44ª Mostra Internacional de São Paulo.

Você pode conferir a crítica do filme aqui!

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Vinicius Machado
SALA SETE

Jornalista, cinéfilo, fanático por Star Wars e editor do blog Sala Sete. Escreve sobre filmes e não dispensa uma boa conversa sobre o assunto.