Salmo 1.2–6: o prazer do justo e o destino do ímpio
Antes tem o seu prazer na lei do Senhor, e na sua lei medita de dia e de noite. Pois será como a árvore plantada junto a ribeiros de águas, a qual dá o seu fruto no seu tempo; as suas folhas não cairão, e tudo quanto fizer prosperará. Não são assim os ímpios; mas são como a moinha que o vento espalha. Por isso os ímpios não subsistirão no juízo, nem os pecadores na congregação dos justos. Porque o Senhor conhece o caminho dos justos; porém o caminho dos ímpios perecerá.
Salmos 1:2–6
O texto de hoje é continuação do comentário anterior sobre o Salmo 1. Para saber mais sobre o salmo e sobre o seu primeiro versículo, acesse Salmo 1:1.
A ênfase desta segunda parte são as consequências da vida do justo e da vida do ímpio, culminando no destino de cada uma. Oro para que, de alguma forma, este comentário seja edificante para a sua vida.
“Antes tem o seu prazer na lei do Senhor, e na sua lei medita de dia e de noite.”
Algumas traduções utilizam “Ao contrário” ao invés de utilizar “antes”. Particularmente eu gosto desse uso, pois deixa mais clara a oposição entre os caminhos do ímpio e do justo. Quando o salmista se refere a “prazer na lei do Senhor”, ele está se referindo a obediência da mesma, pois se o justo ama a lei de Deus, ele deseja fazer o que Deus requer através dela. A tradução para o inglês NET Bible traz o texto assim:
Instead he finds pleasure in obeying the LORD’s commands; he meditates on his commands day and night.
As palavras “Instead” e “obeying” traduzem de forma mais literal o que o salmista quis dizer neste versículo, pois o original hebraico traz a ideia de oposição[1]. Na sequência, o texto apresenta a forma de ter prazer na lei do Senhor (e em obedecê-la): “na sua lei medita de dia e de noite”. Como podemos, então, nos afastar dos caminhos dos ímpios e obedecer a lei do Senhor? Meditando em sua lei de dia e de noite. Este termo (dia e noite) é uma forma hebraica de expressar intensidade, ou seja, estudar e memorizar a lei do Senhor, refletindo sobre as implicações dela na nossa vida durante o dia. Em cada situação da vida, devemos pensar em como aplicar as escrituras. É uma meditação constante que, aos poucos, transforma os nossos pensamentos e coração de tal maneira, que encontramos real prazer por meio estudo e prática da Lei do Senhor.
Ao fazer o contraste entre o ímpio e o justo e pôr como consequência e evidência do justo o estudo da Palavra de Deus, o salmista, conforme observou Calvino, “designa o estudo da lei como sendo marca da piedade, nos ensinando que Deus só é corretamente servido quando sua lei for obedecida”. Servir a Deus e amar a Sua lei é evidência de ser um servo dEle. Na verdade, aquele que obedece com amor a Deus é considerado muito mais do que servo, mas amigo:
Vós sereis meus amigos, se fizerdes o que eu vos mando. Já vos não chamarei servos, porque o servo não sabe o que faz o seu senhor; mas tenho-vos chamado amigos, porque tudo quanto ouvi de meu Pai vos tenho feito conhecer. (João 15:14,15)
O prazer no estudo e obediência da lei do Senhor é mencionado muitas vezes, fazendo com que tenha uma grande ênfase na Bíblia.
Folguei tanto no caminho dos teus testemunhos, como em todas as riquezas. Meditarei nos teus preceitos, e terei respeito aos teus caminhos. Recrear-me-ei nos teus estatutos; não me esquecerei da tua palavra. (Salmos 119:14–16)
Faze-me andar na vereda dos teus mandamentos, porque nela tenho prazer. (Salmos 119:35)
Não se aparte da tua boca o livro desta lei; antes medita nele dia e noite, para que tenhas cuidado de fazer conforme a tudo quanto nele está escrito; porque então farás prosperar o teu caminho, e serás bem-sucedido. (Josué 1:8)
John Piper aponta que somos rápidos em buscar prazer em jornais, internet, revistas, televisão ou outras tantas fontes de informação que temos por aí, mas muito desleixados ao buscar prazer na Palavra de Deus e é justamente esta busca pela Palavra que é posta como argumento no contraste realizado no Salmo. Na pregação mencionada no estudo anterior, Piper vai ainda mais além: ele afirma que o contraste real que o Salmo está tentando transmitir não é apenas entre ímpio e justo, mas a ênfase do contraste está entre o que influencia um ímpio e o que influencia um justo. O ímpio é influenciado pelo conselho dos maus, estando cada vez mais íntimo com eles, enquanto o justo se deleita na Palavra de Deus. Como os versículos estão organizados de forma contrastante, então é possível concluir que o ímpio se deleita em sua iniquidade, assim como o justo se deleita na Palavra do Senhor. Ao observar desta maneira, a tensão que o salmista estava expressando no Salmo se torna ainda maior que mera instrução comparativa entre justo e ímpio, certo e errado, o que fazer e o que não se deve fazer. Somos moldados pelo que nos influencia.
Ao caracterizar o santo se deleitando na lei do Senhor, daí podemos aprender que a obediência forçada ou servil não é de forma alguma aceitável diante de Deus, e que só são dignos estudantes da lei aqueles que se chegam a ela com uma mente disposta e se deleitam com suas instruções, não considerando nada mais desejável e delicioso do que extrair dela o genuíno progresso. (Calvino)
“Pois será como a árvore plantada junto a ribeiros de águas, a qual dá o seu fruto no seu tempo; as suas folhas não cairão, e tudo quanto fizer prosperará.”
A Bíblia de estudo de Aplicação Pessoal traz um comentário muito interessante sobre este texto:
A expressão “e tudo quanto fizer prosperará” não significa imunidade ao fracasso ou às dificuldades. Nem garante saúde, riqueza ou felicidade. O que a Bíblia quer dizer, com prosperidade, é isto: quando aplicamos a sabedoria de Deus, o fruto (os resultados ou subprodutos) que daremos será bom e receberá a aprovação de Deus.
Um complemento que eu acredito existir para esta definição da prosperidade é o que a Bíblia aponta como propósito da nossa eleição e salvação:
E sabemos que todas as coisas contribuem juntamente para o bem daqueles que amam a Deus, daqueles que são chamados segundo o seu propósito. Porque os que dantes conheceu também os predestinou para serem conformes à imagem de seu Filho, a fim de que ele seja o primogênito entre muitos irmãos. (Romanos 8:28–29)
Os dois versículos juntos mostram que o “bem” que o autor do texto (Paulo) se refere é sermos “conforme à imagem de seu Filho”. Como podemos, na prática, sermos transformados para conforme a imagem do Filho de Deus? Cristo disse que “Aquele que tem os meus mandamentos e os guarda esse é o que me ama” (Jo 14:21). A bem-aventurança do verso 1 deste salmo é a prosperidade de que o salmo se refere.
O salmista compara o justo, aquele que tem prazer em estudar e obedecer a lei do Senhor, como uma árvore plantada em um lugar com um abundante, estável e contínuo suprimento de água (corrente de águas). Graças a isso, a árvore desenvolve fortes raízes e se torna cheia de frutas e folhas. Tal analogia é utilizada de forma semelhante em outra passagem:
Bendito o homem que confia no Senhor, e cuja confiança é o Senhor. Porque será como a árvore plantada junto às águas, que estende as suas raízes para o ribeiro, e não receia quando vem o calor, mas a sua folha fica verde; e no ano de sequidão não se afadiga, nem deixa de dar fruto. (Jeremias 17:7–8)
Em uma árvore, a vida chega pela raiz. Ao nos deleitarmos na Palavra de Deus, nossas raízes ficam cada vez mais profundas e os nutrientes são cada vez melhor absorvidos.
Sobre o trecho onde o salmista diz que a árvore “da fruto no seu tempo”, Calvino comenta ser uma ideia de completude, ou seja, os frutos dos ímpios são frutos prematuros que secam rapidamente, mas o fruto da árvore que está perto da fonte de águas dá o fruto a seu tempo de forma que o ciclo seja completo e correto, com as coisas acontecendo na ordem correta. O justo é nutrido até que apresente frutos saudáveis, conforme esperado de uma boa árvore, diferindo do ímpio, cujos frutos são podres, prematuros e cheiram a morte.
“Não são assim os ímpios; mas são como a moinha que o vento espalha.”
Assim como foi feito anteriormente, um novo contraste entre o ímpio e o justo é feito, baseado na metáfora da árvore. A palavra “moinha” é traduzida como “palha” em algumas versões. Entretanto, moinha é a casca removida dos cereais, que eram lançadas ao ar e se espalhavam facilmente, por serem leves. Neste processo era fácil separar os grãos das cascas, pois o vento levava as cascas e apenas os grãos caiam de volta. A comparação entre uma árvore cheia de folhas e frutas, com suas raízes bem firmadas e bem alimentada com a palha seca (ou moinha) que o vento facilmente dispersa traz a diferença entre a saúde espiritual do ímpio e do justo, além de diferença de duração dos mesmos. O ímpio, ainda que prospere por algum tempo, por estar longe da verdadeira fonte de água, acaba sendo como a moinha que o vento espalha.
Porque são [os ímpios] como a palha diante do vento, e como a pragana, que arrebata o redemoinho. (Jó 21:18)
“Por isso os ímpios não subsistirão no juízo, nem os pecadores na congregação dos justos. Porque o Senhor conhece o caminho dos justos; porém o caminho dos ímpios perecerá.”
O Salmo chega ao final com uma esperança escatológica: a justiça de Deus será plenamente aplicada a todos. Esta esperança é reforçada e ampliada no Salmo 73, onde o problema da prosperidade do ímpio é abordado e a esperança escatológica é reforçada.
Até que entrei no santuário de Deus; então entendi eu o fim deles. (Salmos 73:17)
No Salmo 73, o salmista expressa a dificuldade em resistir à tentação de buscar o mesmo caminho dos ímpios devido a aparente prosperidade deles. Todavia, o fim das coisas traz a esperança de que a justiça será aplicada. Diante disso, podemos voltar a bem-aventurança do início do salmo e parafraseá-la da seguinte maneira:
Bem-aventurado o homem que não se deixa levar pela tentação da aparente prosperidade dos ímpios. Que se mantém no caminho reto com o Senhor, tem prazer em Sua palavra e coloca a sua esperança de justiça nEle.
Muitas vezes, durante o início da minha vida cristã na adolescência, ao refletir sobre a ira e justiça divina, não conseguia compreender por que um Deus teria tamanha ira e maldade com as pessoas. Parecia ser errado pregar que Deus não era só amor, mas também justiça, e que sua ira e vingança seriam aplicadas. Hoje entendo que não é apenas um desejo de Deus, mas parte de Sua personalidade. Quando vemos a moral existente dentro de nós, ainda que corrompida pelo pecado, tais conceitos ficam mais simples de entender. Desejamos a justiça de Deus sendo aplicada, contudo sabemos que esta justiça nos consumiria também, pois todos somos pecadores diante dEle. Que Graça enorme poder seguramente desejar a justiça divina sobre o pecado, sabendo que alguém pagou o preço por mim! Todavia, temam aqueles que não são verdadeiramente convertidos e clamam ignorantemente em suas músicas clamando pelo “fogo consumidor” do Senhor. Deus é fogo consumidor para condenação daqueles que não são dEle. Ai deles.
Por fim, destaco o termo “conhecer”. Certamente Deus conhece cada um e suas intenções de forma mais íntima possível. Não há como se esconder dEle e Sua sabedoria é infinita. A palavra é usada aqui para se referir a intimidade e proximidade, não conhecimento como entendemos em nosso idioma. O texto está, na verdade, afirmando que Deus não tem comunhão com o ímpio, não compactuando com seu caminho. Mais sobre esta palavra será falado nos comentários dos próximos salmos.
Conclusão
O início do salmo é basicamente um conselho indireto, mas por ser a própria palavra divina inspirada, podemos entender claramente como um princípio a ser seriamente seguido. Tal princípio possui um motivo explicado, não é em vão. É estabelecida uma diferenciação entre o justo e o ímpio, que vai se alargando durante o Salmo até um fim escatológico, onde a esperança final se encontra. Entretanto, além da esperança final, a figura da árvore denota um crescimento e nutrição constante, até que o fruto seja produzido. O salmo trata do processo, não apenas do destino.
Os conselhos deste Salmo são empiricamente prováveis. É fácil observar cristãos que se afastam da fé ao começarem a ter comunhão com não crentes. Interessante observar, principalmente para quem já passou por isso, que a progressividade do salmo com esta comunhão é bastante real. Iniciamos ouvindo os conselhos, passamos a nos deter com eles e aumentar a convivência, até que chega um ponto onde nos sentamos à mesa, nos tornando um deles.[2]
Quando o salmista fala que “o Senhor conhece o caminho dos justos”, e entendemos conhecer como intimidade e proximidade, podemos concluir que o oposto é válido: Deus conhece intimamente e está em comunhão com o justo. A nossa proximidade com Deus, então, é um termômetro para guiar o nosso próprio caminho, sendo que a ausência dela faz com que haja uma tendência a termos uma comunhão com os ímpios. É fácil de notar a relação entre estes dois fatos e ligarmos diretamente às palavras de Jesus: “não podeis servir a dois senhores”.
Portanto, em vez de admitirmo-nos ser enganados com sua imaginária felicidade, tenhamos sempre diante de nossos olhos, em circunstâncias de estresses, a providência de Deus, a quem pertence a prerrogativa de estabelecer os negócios do mundo e fazer com que, do caos, surja a perfeita ordem. (Calvino)
Caso deseje receber uma versão do estudo de Salmo 1 em PDF, envie um e-mail solicitando o estudo que deseja para salatiel.costabairros@gmail.com. Sugestões de textos e temas também são bem-vindos.
Referências
Archer, G. L. (1994). A survey of Old Testament Introduction. Chicago: The Moody Bible Institute.
Bíblia de Estudo Cronológica Aplicação Pessoal. (2015). Rio de Janeiro: CPAD.
Bíblia de Genebra Revista e Ampliada. (2009). São Paulo: Cultura Cristã.
Bruce K. Waltke, J. M. (2015). Os Salmos como Adoração Cristã. São Paulo : Shedd.
Calvino, J. (2013). Comentário de Salmos (Vol. 1). São Paulo: Editora Fiel.
Pib Barueri. (s.d.). Salmo 1. Acesso em 12 de janeiro de 2019, disponível em Pib Barueri: http://www.pibbarueri.org.br/arquivos/Salmo_1.pdf
Notas
[1] Em hebraico, este trecho é כִּ֤י אִ֥ם. Mais informações sobre o original disponíveis pelo link do site BibleHub https://biblehub.com/interlinear/study/psalms/1.htm, acessado em 01/03/2019.
[2] Mais sobre o funcionamento desta progressão na pregação de Leandro Peixoto sobre este salmo, disponível em https://www.youtube.com/watch?v=yUGkj8SqcQk.