Salmo 2:4–6: O Deus que zomba

Salatiel Bairros
Salatiel Bairros
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8 min readApr 10, 2019

A resposta de Deus ao desafio dos homens

Ri-se aquele que habita nos céus; o Senhor zomba deles. Na sua ira, a seu tempo, lhes há de falar e no seu furor os confundirá. Eu, porém, constituí o meu Rei sobre o meu santo Monte de Sião. (vv. 4–6 ARA)

O texto de hoje é uma continuação do estudo de Salmo 2. No anterior, lemos sobre a conspiração que os rebeldes a Deus fazem contra o seu Ungido e como nós, por causa do pecado, desesperadamente recusamos a sua autoridade e, em uma falsa busca pela liberdade, nos tornamos cada vez mais escravos de falsos deuses. Hoje estudaremos um pouco sobre como Davi expressa a resposta de Deus aos rebeldes.

“Ri-se aquele que habita nos céus; o SENHOR zomba deles”[1]

Davi expressa aqui Deus zombando, desprezando e rindo daqueles que estão em rebeldia contra Ele. Em uma primeira vista, este texto causa estranheza. Como Deus poderia ser um zombador? No Sl 37:13, se repete a afirmação de Deus zombando dos homens, pois enquanto eles tramavam contra os justos, Deus conhecia o destino e a irônica tolice deles.[2] A Bíblia de Genebra comenta que tal afirmação de zombaria por parte de Deus é “uma linguagem vívida que descreve a insensatez da rebelião contra o Todo-Poderoso”.

Não há maior ironia que a rebelião humana. Aquele que acusamos de limitar nossa liberdade, é justamente aquele que nos liberta. Até mesmo a tentativa de rebelião acontece sob autoridade dEle. Gosto, especialmente, da ironia que encontramos no relato da crucificação de Jesus, especialmente no evangelho de Mateus:

Por cima da sua cabeça puseram escrita a sua acusação: ESTE É JESUS, O REI DOS JUDEUS. (Mt 27:37)

O que, para os que estavam ali, era uma acusação, dada a um lunático fraco e humilhado, escarnecido por todos, era, na verdade, o título do qual Ele é eternamente digno. O Cordeiro que ali estava para o sacrifício é o Leão para o qual todo o joelho se dobrará e todos confessarão que Ele é o rei.[3] Em sua humilhação, Cristo é exaltado. No sofrimento da Igreja, Ele é glorificado. Toda vez que nos rebelamos contra Ele, muitas vezes de modo até blasfemo, de forma nenhuma o estamos causando algum dano. Tudo o que conseguimos fazer com isso é expor ao ridículo nossa irracionalidade e rebeldia e, com isso, exaltar a grandiosidade de Sua graça e severidade de Sua justiça.

[…] enquanto [os rebeldes contra Deus] imaginam poder confundir céu e terra, se assemelham a uma multidão de gafanhotos, e Senhor, entrementes, imperturbável contempla do alto suas enfatuadas evoluções. […] Deus não necessita de grandes exércitos a fim de reprimir a rebelião dos ímpios, como se isso fosse uma empresa por árdua e difícil; ao contrário, ele pode fazer isso com a mais perfeita facilidade. (João Calvino)

“Na sua ira, a seu tempo, lhes há de falar e no seu furor os confundirá”

Este verso expressa o motivo principal pelo qual os que planejam contra o Ungido são dignos de zombaria: o dia em que serão julgados e que a ira de Deus se derramará sobre eles segundo suas obras malignas é cada vez mais próximo. Isso é ainda mais destacado quando o salmista utiliza a palavra “furor”. Literalmente, ela significa “fervendo de raiva” ou, no contexto, “ira fervente”.

Estamos acostumados a pensar em Deus apenas como um Pai amoroso que aceita todas as coisas e não leva em consideração o mal de ninguém. Ainda que exista uma certa verdade neste entendimento de Deus, ao lermos textos como este, vemos que a justiça e ira também são atributos que Lhe dão glória e são reflexo do Seu domínio sobre o universo. Tal justiça, um dia, cobrará a todos e a Sua justa ira será derramada sobre aqueles que estiverem em estado de rebeldia contra Ele. Ter este entendimento em mente nos auxilia no conhecimento de nosso Deus através de Sua palavra revelada.

Quando, então, conseguimos entender um pouco mais sobre a seriedade e a santidade da ira de Deus, podemos ficar ainda mais gratos e assombrados com o preço que Jesus pagou por nós. Sobre Ele foi derramado um cálice de ira que era para estar sobre nós. O que Cristo fez por nós na cruz não foi um mero exemplo, um martírio, uma possibilidade de caminho. “O castigo que nos traz a paz estava sobre Ele” (Is 53:5b). Veremos mais adiante no salmo que o Ungido possui plena autoridade para julgar a todos. Temos, em Cristo, um severo e justo juiz e um humilde, vitorioso e amoroso justificador.

“Os confundirá”

Destaquei aqui a palavra “confundirá”, pois creio que essa tradução não expresse completamente o que o autor quis dizer, ainda que esteja contida no significado. Creio que “os aterrorizará” seja uma melhor tradução[4] mas, a meu ver, também não transmite a profundidade do sentimento expressado aqui. Apocalipse 6 traz uma descrição do Cordeiro abrindo os selos do rolo que só Ele era digno de abrir. Cada selo que era removido aproximava o fim. No sexto selo, lemos o seguinte:

Os reis da terra, os grandes, os comandantes, os ricos, os poderosos e todo escravo e todo livre se esconderam nas cavernas e nos penhascos dos montes e disseram aos montes e aos rochedos: Caí sobre nós e escondei-nos da face daquele que se assenta no trono e da ira do Cordeiro, porque chegou o grande Dia da ira deles; e quem é que pode suster-se? (Ap 6:15–17)

Ainda que não possamos dizer que Davi antevia a cena descrita ao escrever o salmo 2, à luz da revelação que temos hoje, sabemos que o cumprimento completo do salmo se dará nesse dia. E ai daqueles cujos pecados não tiverem sido cobertos pelo sangue do Cordeiro.

Os ímpios podem, agora, conduzir-se tão perversamente quanto desejarem, mas chegará o momento em que sentirão o que significa guerrear contra o céu. (João Calvino)

“Eu, porém, constituí o meu rei sobre o meu santo monte de Sião”

Algumas traduções trazem este versículo como uma frase independente, fazendo assim uma tradução mais literal e menos contextualizada[5]. Contudo, a NVI deixa mais claro que isto está sendo dito para aterrorizar os rebeldes:

“(…) e em seu furor os aterroriza, dizendo: “Eu mesmo estabeleci o meu rei em Sião, no meu santo Monte”

Para os rebeldes à autoridade de Deus, Ele os apavora ao estabelecer o reino do seu Ungido, humilhando publicamente seus esforços de se tornarem a autoridade máxima de suas próprias vidas. Para aqueles que não são regenerados pelo Espírito Santo de Deus, o Evangelho é aterrorizante, confuso e confrontador. Para quem está em estado de rebeldia contra Deus, nada resta senão entrar em um desesperado estado de negação. Entretanto, para aqueles que nasceram do Espírito, há esperança de um final onde Cristo reinará eternamente e o mal será completamente extinto e severamente punido.

Pelo que também Deus o exaltou sobremaneira e lhe deu o nome que está acima de todo nome, para que ao nome de Jesus se dobre todo o joelho, nos céus, na terra e debaixo da terra, e toda língua confesse que Jesus Cristo é Senhor, para glória de Deus Pai. (Fp 2:9–11)

Calvino defende que nossa esperança é fortalecida neste texto, pois nele “vemos posto diante de nós o imutável e eterno propósito de Deus a defender eficazmente […] o reino de seu filho, do qual ele é o fundador”. Sejam quais forem as situações pelas quais viermos a passar e quais planos os homens tramarem contra Cristo, nada será suficiente para superar o propósito divino.

Conclusão

Muito se é corretamente pregado de que buscar por Jesus apenas por medo de ir para o Inferno não é um motivo correto. Praticar a moralidade cristã de forma egoísta, apenas buscando evitar um possível sofrimento futuro pode acabar “saindo pela culatra”, pois a confiança nas obras nada mais é que um falso evangelho. Todavia, em certo sentido, o temor da severidade da justiça de Deus é essencial para qualquer um que deseje conhecê-lo mais. Podemos ver isso nas palavras de Jesus:

Não temais os que matam o corpo e não podem matar a alma; temei, antes, aquele que pode fazer perecer no inferno tanto a alma quanto o corpo. (Mt 10:28)

E, se um dos teus olhos te faz tropeçar, arranca-o; é melhor entrares no reino de Deus com um só dos teus olhos do que, tendo os dois seres lançado no inferno, onde não lhes morre o verme, nem o fogo se apaga. (Mc 9:47–48)

Em nenhum dos dois textos citados Jesus estava pondo o medo do inferno como motivação direta para o reino. No primeiro, a ênfase era na provisão e sustento de Deus e que a obediência a Deus deve ter primazia sobre a obediência aos homens, mesmo que isso custe a própria vida. Já no segundo, o principal tópico é a santidade, onde Jesus destaca o custo de abandonar um hábito pecaminoso. No entanto, em ambos, a motivação para o argumento é o conhecimento da justiça e santidade de Deus que, diante da nossa impureza, deve nos causar temor.

Tendo isso em mente, podemos entender um pouco melhor o quão ridícula é a rebeldia contra Jesus. Sendo nós criados e sustentados por Sua vontade e, futuramente, destinados a prestar contas de tudo o que fazemos, o desafio à Sua autoridade pode ser considerado a maior das tolices.

No início do estudo deste salmo, fizemos uma divisão do mesmo e a parte que estamos estudando no momento foi chamada “a resposta de Deus”. Nos versículos que estudamos aqui, Deus responde aos que desejavam livrar-se de Sua autoridade. A resposta dada foi o reino do Filho. Ainda que o restante do salmo destaque o poder e autoridade do Ungido e Seu reino, quando refletimos que a resposta para a rebeldia do homem foi o reino trazido pelo Filho, notamos que toda a obra na cruz está também dentro desta resposta.

O Rei que, exaltado, regerá com vara de ferro (Sl 2:9, que estudaremos no próximo texto), foi também humilhado, coroado com espinhos. Contudo, Sua humilhação despojou nosso acusador, e o expôs publicamente ao desprezo, pois a cruz onde nossa dívida foi com Ele encravada consumou o Seu triunfo sobre o mal que nos matava (Cl 2:14–15).

Caso deseje receber uma versão do estudo em PDF, envie um e-mail solicitando o estudo que deseja para salatiel.costabairros@gmail.com. Sugestões de textos e temas também são bem-vindos.

Notas

[1] Para o trecho “Aquele que habita nos céus”, a tradução para o inglês HCSB traz: “The One enthroned in heaven”. De forma semelhante, a NVI traduz para “Do seu trono nos céus o Senhor (…)”. Ambas trazem a ideia de reinado, poder e governo (NVT). Ainda que, literalmente, a palavra hebraica significa “sentar” ou “habitar”, creio que as traduções que deixam mais claro a ideia de “governo” transmitem melhor a ideia que está sendo passada no texto.

[2] Outros exemplos de textos onde Deus zomba: Sl 59:8 e Pv 1:26.

[3] Sugiro uma leitura cuidadosa das ironias presentes no livro de Mateus.

[4] Outras possibilidades para esta palavra seriam “os fazer perder os sentidos” ou “os perturbar”.

[5] Nem sempre um texto traduzido mais literalmente traz o significado mais preciso da mensagem original.

Referências

Bíblia de Genebra Revista e Ampliada. (2009). São Paulo: Cultura Cristã.

Bruce K. Waltke, J. M. (2015). Os Salmos como Adoração Cristã. São Paulo: Shedd.

Calvino, J. (2013). Comentário de Salmos (Vol. 1). São Paulo: Editora Fiel.

Peixoto, L. (18 de fevereiro de 2016). Salmo 2 | A supremacia de Cristo. Fonte: YouTube: https://www.youtube.com/watch?v=27S3SEdwHo0

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Salatiel Bairros
Salatiel Bairros

Cristão, marido, pai e programador. Trabalha como Engenheiro de Dados. Especialista em IA (PUC Minas) e pós-graduando em Teologia Filosófica (STJE).