Salmo 4.4–5: Arrependimento e autoexame

O relacionamento do povo com Deus expresso nas obras externas e intenções internas

Salatiel Bairros
Salatiel Bairros
7 min readFeb 8, 2021

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David and Nathan, Angelica Kauffman, 1797

Perturbai-vos e não pequeis; Consultai no travesseiro o coração e sossegai. Oferecei sacrifícios de justiça e confiai no SENHOR. (Sl 4:4–5)

Nos textos anteriores, vimos Davi apontando os pecados dos poderosos e declarando sua confiança em Deus. Diante dessas declarações, Davi faz aqui uma chamada ao arrependimento, autoexame e confiança em Deus. No entanto, devido ao possível uso do versículo 4 em Efésios 4:26, a interpretação desse texto exige um pouco mais de cuidado.

A pergunta que podemos fazer para o texto, considerando que já foram apresentadas as possibilidades de contexto e autoria no primeiro estudo deste salmo, é “para quem Davi estava falando?”. Existem duas possibilidades de resposta para esta pergunta: (1) Davi estava se referindo aos inimigos e (2) Davi estava aconselhando o povo afetado pela maldade dos poderosos.

É bastante comum nos textos poéticos de Davi a ocorrência de mudanças de pronome, mudando para quem determinado trecho é dito. Neste mesmo salmo Davi começa falando com Deus (v. 1), passa a falar com os poderosos (v. 2) e depois volta a falar com Deus em nome do povo (v. 6) e em seu nome (v. 7). Devido a isso, alguns teólogos interpretem que Davi passa a falar aos próprios seguidores neste verso. No entanto, não parece existir evidências textuais claras para tal interpretação e que a leitura mais provável seja que Davi continua falando aos poderosos e os chama ao arrependimento.

Sabemos, como vimos anteriormente, que os homens a quem Davi se referia eram poderosos, influentes e representantes do povo, ou seja, eles pertenciam fisicamente ao povo da aliança. Dessa forma, uma admoestação centrada no Senhor, Sua aliança e sacrifícios não fere a naturalidade da interpretação, visto que Davi não estava falando com inimigos estrangeiros. Temos isso ainda mais evidenciado se considerarmos o contexto do golpe de estado realizado por Absalão contra Davi, seu pai, repleto de conspirações entre as lideranças do povo. Eis a tristeza de Davi: ele não estava apontando os pecados daqueles que não tinham a Lei divina e aliança com Ele, mas falava com um povo que vivia dentro das bênçãos graciosamente dadas por Deus. A maldade é sempre uma tolice, mas nem sempre ignorante.

Perturbai-vos e não pequeis

Este trecho contendo a primeira recomendação de Davi aos poderosos possui algumas dificuldades em sua tradução e interpretação devido ao seu uso por Paulo no Novo Testamento. A palavra traduzida aqui como “perturbai-vos” significa “tremer”, “agitar-se” ou “perturbar-se”. Ela é usada em outros lugares para se referir à reação de povos ou elementos da criação diante do julgamento ou ira divinos (1 Sm 14:15; Is 5:25; Pv 30:21). Grande parte das traduções utilizam deste sentido. No entanto, algumas traduções, como ARA, NVI[1] e ESV, traduzem como “irai-vos” apenas aqui, escolhendo esta tradução por causa do uso de Paulo desse texto e não pelas evidências textuais locais.

Irai-vos e não pequeis; não se ponha o sol sobre a vossa ira, nem deis lugar ao diabo. (Ef 4:26–27)

Antes de entrarmos na discussão sobre a tradução, creio ser necessário apontar as duas principais possibilidades de interpretação do verso diante das alternativas de tradução. A grande diferença está no conteúdo da recomendação de Davi aos poderosos. Se o sentido original do autor for “perturbai-vos”, o sentido mais natural da passagem seria uma composição de dois mandamentos: perturbar-se e não pecar. Ou seja, Davi estaria aconselhando os poderosos a tremerem diante das acusações feitas anteriormente e da aliança que Deus tinha com Davi e se arrependerem dos seus pecados, oferecendo sacrifícios e confiando em Deus.

Todavia, quando consideramos a tradução como “irai-vos”, especialmente diante do uso deste texto por Paulo, o sentido se torna composto por uma concessão e um mandamento. Davi estaria recomendando os homens a não pecarem diante da ira causada pelas acusações feitas por ele no verso anterior. Nesse sentido eles precisariam evitar que sua ira os levasse a pecar. No entanto, uma ira causada por uma acusação justa de pecado é também pecaminosa. A ira que não é pecado mencionada por Paulo é a ira diante da injustiça. Dessa forma, não faz sentido uma ira sem pecado após todas as acusações de Davi.

A Septuaginta, também chamada de LXX, foi uma tradução do Antigo Testamento do hebraico para o grego realizada no século III a. C. Foi esta a tradução usada por Paulo na citação ao salmo, assim como em outros usos do AT no NT. Como sabemos, ainda que as traduções que temos sejam altamente confiáveis, apenas os originais são inerrantes e não seria nenhum problema apontar que, neste caso, a LXX não traduziu o texto da melhor forma. Como lidar, então, com o uso desta tradução por Paulo? Como poderíamos apontar uma tradução diferente da que Paulo, apóstolo e grande erudito, escolheu? Apresentarei um auxílio na interpretação destes versos, pois essas questões são bastante complexas. Destaco alguns aspectos importantes:

1. O uso da LXX por Paulo não está confirmando ou canonizando esta tradução, mas utilizando ela para o propósito que desejava em Efésios. Isso não implica em um erro da parte de Paulo, visto que ele era judeu e grande erudito, mas uma escolha da tradução grega já conhecida e, “pelo menos, fazer alusão ao sentimento de Davi” (Waltke).

2. Nem sempre o uso do AT pelos apóstolos é estritamente correspondente ao hebraico. No mesmo capítulo que Paulo cita Sl 4:4 ele cita Sl 68:18 de forma livre sem distorcer o sentido da palavra, mas complementando.

3. Se não considerarmos o versículo 4 como uma mudança de a quem Davi se dirige, o sentido mais natural do texto é mesmo “tremer” ou “perturbar-se”

4. Mesmo o “uso mais comum” não ser um indicativo forte para o sentido de uma palavra no hebraico, somado aos outros argumentos, funciona como um reforço do sentido dessa palavra. É possível dizer que a palavra usada contém o sentido de ira, mas não é completamente representado por ele no contexto do salmo 4.

Por fim, muitos argumentos podem ser levantados apontando para uma interpretação diferente, especialmente quanto à mudança de destinatário do discurso no versículo 4, porém optarei pela interpretação como “perturbai-vos” e para uma mudança de destinatário apenas no versículo 6, ainda que não a considere como definitiva para o problema.

Diante disso, entendo que o sentido desta exortação de Davi consiste em uma chamada a tremer diante do julgamento de Deus e não mais pecar. Não são poucos os momentos em que o julgamento do Senhor é apresentado nas Escrituras e somos chamados a temê-lo. Todos os que se encontram conscientemente em rebeldia contra Deus, os quais podem estar inclusive dentro dos que se declaram como Seus Filhos, devem ser chamados a tremer e perturbar-se diante da santidade de Deus, abandonar os ídolos do seu coração e se humilharem diante do único que pode nos salvar. Não há verdadeiro arrependimento sem profundo temor diante do Senhor. A santidade que nos maravilha é também motivo de profundo terror, dada nossa condição de pecadores rebeldes.

Consultai no travesseiro o coração e sossegai

É muito comum ouvirmos sobre uma separação onde o Antigo Testamento é considerado como composto por várias eras da lei e obras enquanto o Novo Testamento corresponde a era da graça. Certamente existem grandes descontinuidades entre as alianças dos testamentos, mas algumas vezes somos tentados a entender que a obediência à lei como obras externas pertencia ao Antigo Testamento e que no Novo somos chamados primeiro a uma obediência introspectiva que leva a atitudes externas, como se a lei do AT não exigisse um constante sondar do coração, das intenções e como se a busca por obedecer sinceramente à Lei não demandasse também um coração regenerado. Desde o início, o relacionamento do homem com Deus se deu por disposição e inclinação do coração antes de se refletir em obras. Até mesmo nos 10 mandamentos, o último (“Não cobiçarás”) trata dos desejos e inclinações do coração que nos levam a quebrar os outros mandamentos. A cobiça só poderia ser combatida verdadeiramente quando olhássemos para dentro do nosso coração.

O autoexame faz parte do viver cristão, desde a entrada na comunidade de fé, pelo arrependimento, até a vida comum da comunidade, partindo o pão em memória de Cristo (1 Co 11:28). Por fim, devemos lembrar que o autoexame não deve ser uma forma de buscar justiça própria diante de Deus, mas de considerar a sua situação de falho e necessitado da graça salvadora de Deus e descansar em confiança nesta graça.

Conclusão

O verso estudado aqui nos levou a uma análise mais dedicada do que costumo fazer aqui, mas creio que nem sempre as respostas simples e o evitar da questão bastam. Encerro com uma breve reflexão sobre o que foi discutido aqui:

Não existe sincera aliança entre Deus e seu povo nesta vida onde ainda estamos lutando contra o pecado sem que ouçamos frequentemente o chamado a tremer diante da santidade de Deus, consultar o nosso coração e nos arrependermos dos nossos pecados e, ao fazermos isso, confiarmos no perdão dEle e nos oferecermos, agora, como sacrifícios vivos — pois o verdadeiro sacrifício já foi feito por Cristo.

Que não sejamos ímpios no meio do povo de Deus, joio no trigo, mas pessoas que ouvem a afirmação de Davi e tremem pela mera possibilidade de pecarem contra o seu Deus.

[1] É destacável que a NVI traduz como “ficarem irados” mas a NIV traduz como “tremble”. Dessa forma, elas discordam entre si do sentido dado ao texto.

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Salatiel Bairros
Salatiel Bairros

Cristão, marido, pai e programador. Trabalha como Engenheiro de Dados. Especialista em IA (PUC Minas) e pós-graduando em Teologia Filosófica (STJE).