Salmo 3: O Deus que fere

O Deus que salva os humildes, mas quebra de forma humilhante os dentes dos orgulhosos

Salatiel Bairros
Salatiel Bairros
10 min readDec 8, 2019

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O Salmo 3 é o primeiro de vários salmos escritos por Davi onde ele clama a Deus por socorro e anuncia sua confiança nEle na ordem disposta no saltério. Se tivéssemos que escolher um sentimento para definir o salmo em seu contexto, creio seria humilhação. Davi estava sendo humilhado de diversas formas e, ao clamar a Deus, pediu que Deus humilhasse os seus inimigos severamente como justiça ao que ele estava sofrendo.

Contexto

2 Sm 12–19

O salmo se inicia com o título “Salmo de Davi quando fugia de Absalão, seu filho”. Mesmo Davi sendo um servo fiel a Deus, suas inúmeras falhas, ainda que sempre seguidas de arrependimento sincero, tiveram consequências enormes em sua família. Uma dessas consequências foi o Golpe de Estado que Absalão, seu filho, executou contra Davi, que era rei em Israel.

Tudo começou com o conhecido pecado de Davi, quando ele cometeu adultério ao deitar-se com a esposa de Urias e enviá-lo para morrer a fim de acobertar seu pecado. Após algum tempo, o profeta Natã vai até Davi e o confronta com seu pecado, profetizando o juízo de Deus sobre Davi e sua família ao dizer que o as mulheres de Davi seriam dadas a outro diante de todo o povo em plena luz do dia, como castigo de Davi ter tomado a mulher de outro às escondidas (2 Sm 12:11–12).

Pouco tempo depois, uma tragédia imoral ocorre na família de Davi. Tamar, filha de Davi, irmã de Absalão, é estuprada por seu meio-irmão Amnom. Ao saber do acontecido, mesmo que tenha se irado, não há qualquer atitude tomada por parte de Davi por causa dessa situação. A Septuaginta e alguns dos Manuscritos do Mar Morto acrescentam a 2 Sm 13:21 a seguinte frase: “mas ele não feriu Amnom porque era seu filho mais velho e o amava”. Sendo esta frase pertencente ou não aos originais, a complacência de Davi com esse grave crime acontecido em sua casa foi clara e lhe custou muito caro.

Dois anos após esse acontecido, Absalão mata seu irmão em vingança ao que tinha acontecido, sendo expulso da presença de Davi e foge. Ao voltar à Jerusalém e ser admitido outra vez diante de Davi, Absalão dá um golpe em seu pai, o entristecendo e humilhando publicamente. Uma dessas humilhações foi o cumprimento da profecia de Natã. Absalão diante do povo, publicamente, tem relações com as concubinas de Davi. É nesse contexto de ressentimento, culpa, humilhação e injustiça que Davi escreve este salmo.

O salmo

Tendo o contexto que vimos em mente, creio que é possível entender melhor o que se passava no coração de Davi quando escreveu o salmo. Este não foi o único salmo que ele escreveu enquanto era perseguido pelo seu filho Absalão e o próprio relato em 2 Samuel nos mostra os diversos sentimentos que Davi teve enquanto passou por tudo isso.

SENHOR, como tem crescido o número dos meus adversários! São numerosos os que se levantam contra mim. São muitos os que dizem de mim: Não há em Deus salvação para ele. (vv. 1, 2)

A estratégia utilizada por Absalão para tomar o governo do pai não foi inovadora e muito menos única. Certamente vimos semelhantes em filmes e/ou na história política de nosso país. Absalão passou a conquistar o amor do povo através de palavras delicadas, generosidade misturada com uma espécie do que poderíamos conceituar como “populismo”. Ele ficava à porta do local onde as pessoas iam trazer suas petições ao rei e as enchia de palavras doces, dizendo que Davi não estava interessado nas justas causas que o povo levava, mas que se ele fosse rei, certamente seria mais justo. Sendo belo e carismático, Absalão abraçava e beijava as pessoas quando elas se inclinavam para reverenciá-lo.

Após 4 anos, Absalão alcançou força política suficiente para ser proclamado rei. Cada dia que passava, Davi via-se mais sozinho e rejeitado pelo seu povo e conselheiros. Todos os dias crescia o número dos seus adversários. Para o povo, toda a situação só poderia apontar para uma direção: Deus havia rejeitado Davi da mesma forma que rejeitou Saul.

Diante dos numerosos pecados de Davi, como adultério, assassinato e passividade, quem acreditaria que as acusações de Absalão eram falsas? Quem iria defender a causa de um homem com tantas culpas em suas costas? Para o povo, Davi estava definitivamente perdido.

Porém tu, SENHOR, és o meu escudo, és a minha glória e o que exaltas a minha cabeça. Com a minha voz clamo ao SENHOR, e ele do seu santo monte me responde. (vv. 3, 4)

Não há nada que possa trazer mais esperança ao povo de Deus que o conhecimento de quem Ele é e como que Ele se revela a nós. Diante da condenação dos homens, de traição, desesperança, humilhação, pecados e das mais diversas mazelas que nos afligem, podemos confiantemente dizer para Deus: “Porém tu”, pois Deus nunca nos decepcionará.

Em Deus, um ser pessoal, poderoso, justo e misericordioso, Davi poderia confiar mesmo que todos o rejeitassem. Deus havia feito uma aliança com Davi e seus descendentes. O propósito, vocação, vida e identidade de Davi não eram definidos pela situação que lhe acontecia ou pelo julgamento das pessoas em sua volta, ou mesmo pela imensidão de suas falhas, mas pela misericórdia divina. Enquanto a glória e identidade de Davi estivessem em Deus, ninguém poderia afetá-lo. Confiando na fidelidade dEle à aliança, não existiam motivos para duvidar que Deus o responderia.

Deito-me e pego no sono; acordo, porque o SENHOR me sustenta. Não tenho medo de milhares do povo que tomam posição contra mim de todos os lados. (vv. 5, 6)

O tempo verbal original é passado. Davi dormiu e acordou no acampamento, enquanto fugia de Absalão. Dessa forma, este salmo soa mais como uma oração matinal onde Davi busca expressar sua confiança em Deus. Por conhecer ao Deus que servia, Davi podia descansar e dormir, confiando no sustento divino mesmo que milhares estivessem se levantando contra ele.

Este não é o único salmo onde Davi expressa esse tipo de confiança em Deus diante dos males deste mundo (Sl 4:8; 17:15; 24:4; 27:3). Tal confiança é relacionada pelo filho de Davi, Salomão, à verdadeira sabedoria e o descanso é apresentado como consequência desta sabedoria:

Quando te deitares, não temerás; deitar-te-ás, e teu sono será suave. Não temas o pavor repentino, nem a arremetida dos perversos, quando vier. (Pv 3:24, 25)

Assim como Davi, precisamos ter em mente que nossa confiança em Deus não deve estar baseada nas circunstâncias, mas na identidade de quem Ele é. Diferente de vários pretensos deuses que o mundo nos apresenta, o verdadeiro Deus é pessoal, relacionamental, justo, misericordioso e fiel às alianças que faz conosco.

Levanta-te, SENHOR! Salva-me, Deus meu, pois feres nos queixos a todos os meus inimigos e aos ímpios quebras os dentes. (v. 7)

É comum imaginarmos Deus reagindo a diversas situações. Algumas vezes cantamos Deus nos abraçar, cuidar, carregar e defender. No entanto, quando poderíamos imaginar Deus esbofeteando alguém a ponto de quebrar-lhe os dentes? Já vimos anteriormente que Deus zomba da prepotência daqueles que O desafiam. Em Sua justa ira, Ele põe os Seus inimigos em seu devido lugar.

A língua hebraica é consideravelmente menos abstrata do que os idiomas que estamos acostumados. Buscamos utilizar a essência das coisas que observamos para fazer nossas figuras de linguagem ou descrever as ações. Por exemplo, dizer “você é como uma flor” significa comparar alguém à beleza ou atributos que pertençam à essência da flor. Já os falantes do hebraico bíblico se expressavam por meio de pequenos movimentos concretos que traziam a sensação do que queriam dizer. A ação de cortar era usada para descrever a tomada de uma decisão e o cabelo da amada era comparado à sensação de observar o movimento de um rebanho de cabras descendo o monte de Gileade (Ct 4:1).

Tal característica da língua não é diferente da a ação de golpear o queixo ou quebrar os dentes de alguém. Ao dizer isso, Davi estava pedindo que Deus humilhasse os seus inimigos, que tanto o estavam humilhando. Tal expressão foi usada por Jó, ao expressar a humilhação que passava em seu sofrimento (Jó 16:10) e que anteriormente ele causava aos ímpios (Jó 29:17). Também foi usada por Jeremias ao expressar sua tristeza (Lm 3:16). O próprio Davi fez este pedido a Deus em outra ocasião (Sl 58:6). Diante de tudo isso, um dos versículos que mais deveria ecoar em nossa cabeça, especialmente para aqueles cujo orgulho é uma feroz tentação é:

Deus resiste aos soberbos, mas dá graça aos humildes. Sujeitai-vos, portanto, a Deus. (Tg 4:6b-7a)

Não há orgulho em uma oração que clame para que Deus se levante, da forma que Davi o fez, quando nosso coração sinceramente crê que só Ele pode nos salvar e que nenhum homem pode nos humilhar de forma maior do que já somos humilhados diante de Deus.

Deus, que é amoroso e misericordioso, é também justo, Aquele que vinga os homens e os humilha por sua rebeldia. Tal “tensão” nunca foi oculta ao povo de Deus. Está revelada em seu próprio nome da aliança, revelado a Moisés:

E, passando o SENHOR por diante dele, clamou: SENHOR, SENHOR Deus compassivo, clemente e longânimo e grande em misericórdia e fidelidade; que guarda a misericórdia em mil gerações, que perdoa a iniquidade, a transgressão e o pecado, ainda que não inocenta o culpado […] (Ex 33:6–7a)

Quando lemos o último versículo deste salmo à luz do que nos foi revelado no Evangelho, nos é revelado de forma mais plena que o Deus que pune e é vingador também perdoa e é misericordioso.

Do SENHOR é a salvação, e sobre o teu povo, a tua bênção. (v. 8)

Conforme Deus revelou Sua missão na história, o que entendemos por salvação foi ficando cada vez mais claro e completo. Hoje afirmamos com plena convicção de que Deus nos salvou de nós mesmos, perdoou nossos pecados e, caso Ele não tivesse decidido fazer isso, nós ainda seríamos os ímpios que Davi fala. Todos os que têm uma aliança com Deus, a nova aliança, são o Seu povo, e nEle encontram bênção.

Um bom exemplo da ação de Deus na salvação e da tensão que isso gera é a história do profeta Jonas. Ele recebeu a ordem de Deus para pregar em uma cidade, fugiu da missão e acabou dentro da barriga de um peixe. Lá dentro, Jonas faz uma oração que se encerra com a frase “Ao SENHOR pertence a salvação!” (Jn 2:9). Quando chegamos no capítulo 4 de Jonas, percebemos que essa afirmação não era apenas o motivo de louvor dele, mas também o motivo pelo qual Jonas tentou fugir de pregar na cidade que Deus o mandara, Nínive. Ele sabia, pelo nome de Deus da aliança revelado a Moisés, que Deus era misericordioso e que poderia perdoar os pecados dos ninivitas. Jonas odiava os ninivitas. Ele desejava a sua destruição, pois eram um povo cruel e imoral. No entanto, Deus quebra seus corações em arrependimento e não os destrói. Tal coisa levou Jonas a um profundo descontentamento e tensão. Implícito no acontecimento fica a pergunta: como Deus pode perdoar o pecador e não deixar o pecado impune, como disse em seu próprio nome?

Tanto no salmo quando na declaração de Jonas, o nome de Deus usado é יְהוָֹה (Yhvh). Este nome era usado dentro do contexto do povo e sua aliança com Deus, pelo povo com o qual Deus tinha escolhido incondicionalmente para uma aliança e se relacionava. A salvação pertence ao Deus que se relaciona conosco por alianças e o povo que tiver Ele por Deus terá a bênção desta salvação. Sabendo que não há nada que possamos fazer para agradar a Deus e, por causa do nosso coração corrupto, todos merecemos o juízo de Deus, como podemos lidar com o dilema de Jonas e a salvação oferecida por Deus ao Seu povo?

João, no primeiro capítulo de seu evangelho, nos traz a resposta definitiva a este dilema. Jesus, o Verbo que criou tudo, sendo Ele mesmo Deus, origem e sustento de toda a vida, luz que as trevas não podem vencer, se fez homem. Encarnou e deu aos seus o poder de serem adotados como filhos de Deus, os fazendo nascer da vontade dEle.

E o Verbo se fez carne e habitou entre nós, cheio de graça e de verdade, e vimos a sua glória, glória como do unigênito do Pai. (Jo 1:14)

Em Jesus nos é revelada a justiça imputada e a justiça aplicada de Deus. Enquanto a vida sem pecado de Jesus, como um segundo Adão e nosso representante nos é dada, imputada, fazendo com que Deus, ao olhar para nós, veja a retidão de Cristo, a justiça que deveria ser aplicada em nós é derramada sobre Cristo na cruz. Ele carregou, sofreu e morreu por nossos pecados.

Porque Deus amou ao mundo de tal maneira que deu seu Filho unigênito, para que todo o que nele crê não pereça, mas tenha vida eterna. (Jo 3:16)

Conclusão

Davi buscou em Deus a salvação e a justiça para o que estava sofrendo, especialmente as humilhações. Mesmo diante de todas as suas falhas, ele sabia que Deus tinha uma aliança com ele e não o deixaria desamparado. Ele conhecia o Deus a quem servia.

Aplicações

Se Davi, que ainda não tinha recebido a revelação da encarnação de Cristo, confiava em Deus desta forma, quanto mais nós deveríamos confiar, tendo diante de Deus um representante que conhece todas as nossas dores.

Se somos traídos, Jesus também foi traído por alguém que se declarou amigo.
Se somos humilhados, Ele também o foi, diante de todo o povo.
Se formos rejeitados, Ele também foi.
Se somos intensamente tentados, Jesus foi ainda mais, tendo o próprio Diabo buscado corrompê-lo.

Ele sabe, em Sua própria pele, o que nós passamos e sentimos e, sabendo disso, podemos ter confiança de que Ele sempre nos amparará, se nossa vida estiver entregue à Sua autoridade.

Por isso mesmo, convinha que em, todas as coisas, se tornasse semelhante aos irmãos, para ser misericordioso e fiel sumo sacerdote nas coisas referentes a Deus e para fazer propiciação pelos pecados do povo. Pois, naquilo que ele mesmo sofreu, tendo sido tentado, é poderoso para socorrer os que são tentados. (Hb 3:17, 18)

Nossa esperança final está baseada no fato de que, mesmo sofrendo tudo o que sofremos, em nenhum momento Ele se entregou ao pecado e, sendo inocente, carregou os do Seu povo de forma definitiva. Ao ressuscitar, a morte que nos pertencia, nEle está morta, e a vida que antes rejeitamos, somos agora cheios dela.

Referências

  1. Bíblias de estudo: Genebra, Gospel Transformation Bible e MacArthur.
  2. Comentários Bíblicos: Matthew Henry e The Wycliffe Bible Commentary.
  3. Pregação Leandro Peixoto (3 de Março de 2016). Salmo 3 | Oração da manhã: https://www.youtube.com/watch?v=XKJLRmsgW9o
  4. The origin of the Bible - F. F. Bruce.

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Salatiel Bairros
Salatiel Bairros

Cristão, marido, pai e programador. Trabalha como Engenheiro de Dados. Especialista em IA (PUC Minas) e pós-graduando em Teologia Filosófica (STJE).