SALA DE VISITAS

O sol na cabeça, de Geovani Martins

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5 min readMar 12, 2019

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Nota do editor: Alex Costa é professor e contista (e agora booktuber), apaixonado pro Literatura Brasileira e, especialmente, pela cearense. Quase colunista fixo do Ser Linguagem, ele volta à Sala de Visitas para conversar sobre o livro de estreia de Geovani Martins, O sol na cabeça. Alex já escreveu, aqui, sobre Hilda Hilst e João e Maria.

O Sol na Cabeça (Companhia das Letras, 2018), do carioca Geovani Martins, tem sido, até o presente momento, a mais gratificante surpresa de leitura nesse comecinho de ano. Reunindo treze contos em um volume que, de fato, esquenta os miolos do leitor desavisado, Geovani sintetiza experiências diversificadas e vivências descritas com um absurdo jogo de oralidade em curtas histórias que refletem com maestria o cotidiano de um lugar com o qual o autor tem bastante proximidade, e talvez por isso escreva com tamanha propriedade sobre ele: a comunidade, o gueto, a favela.

A literatura que se propõe a falar e/ou refletir sobre o dia a dia das comunidades, sejam elas cariocas, paulistas, baianas, cearenses etc., pode ser encontrada na escrita de outros de nossos autores e autoras, em seus distintos tempos e (a la Nina Simone) modos de mostrá-los — eles, os tempos. Eu mesmo, enquanto lia (vorazmente, confesso) os contos desse sol carioca, fazia múltiplas ligações com outras histórias, que iam desde Maria Carolina de Jesus e seu Diário a Rubem Fonseca e seu Feliz Ano Novo, conto que me causou forte impacto na época em que li, decerto por perceber nele tamanha verossimilhança com aquilo que me rodeava (e rodeia). Mas por que, então, em tempo este como o que vivemos, a escrita crua de uma realidade marginal, tão palpável a alguns de nós, ainda consegue se sobressair e nos surpreender, a ponto de ganhar a visibilidade que ganhou, estando presente no centro da programação da mais importante festa literária do país — Flip, em 2017, tendo seus direitos adquiridos por mais de nove países?

Foi com estes questionamentos que cheguei ao livro. E não demorou para que eu entendesse o que fazia a prosa deste sol carioca singular. Na verdade, eu já saquei o sucesso desse menino ao fim da leitura do primeiro conto, Rolezim, com a ida de um bonde adolescente à praia e a tensão de uma abordagem policial. A linguagem utilizada por Geovani para a descrição do que se passa dentro e ao redor das suas personagens é um negócio medonho. Poucas vezes na vida lembro de ter tido contato com coisa parecida. Que a literatura é capaz de transportar através da linguagem, disso eu já sabia de outros carnavais, mas o que Geovani faz vai além. Em Roleta Russa, vemos a fascinação de uma criança pela arma de fogo que o pai, vigilante, guarda dentro de uma gaveta velha, em casa, e o desejo do garoto de sentir o peso do ferro nas mãos, ao mesmo tempo que sabe que esse ato proibido, se descoberto, vai causar danos à relação que tem com o pai. Não só me vi sentado naquela cama com o menino Paulo, observando-o trêmulo com o revólver na mão, mas tive a impressão de que, se estivesse ali, pediria também para segurar o ferro por um instante Geovani me instigou a tentar entender aquela vontade.

Ora tecendo a realidade dos pivetes, ora jogando sem capa nem enfeite os conflitos da adolescência da molecada que se vê cercada pelas propostas que o cotidiano faz a quase todo jovem de comunidade ao menos uma vez na vida, ou dramas da fase adulta ou idosa (como em O Cego), Geovani convence. Talvez essa não tenha sido uma necessidade do autor propriamente dita em seu processo de produção, talvez Geovani tenha querido apenas contar suas histórias e seus corres, mas, como leitor, tenho que destacar a maravilha que é quando uma boa narrativa consegue me convencer em tantos aspectos como fui cativado com a leitura d’O Sol. Não fui simplesmente levado à realidade de uma comunidade carioca. A impressão que eu tinha era que, fechando os olhos, eu escutaria barulho de moto, de tiro, do cheiro da maconha, as conversas na calçada; que eu me juntaria à galera reunida para a linha do trem ou na praia, que eu choraria se a mãe de santo dona Iara (d’O mistério da vila) tivesse morrido, que eu corria dos marombas também n’A viagem.

A denúncia social também é aspecto forte, ao mesmo tempo que sutil, na escrita do carioca. Em Estação Padre Miguel, de longe meu conto favorito entre os treze, quando cinco jovens são escorados contra um muro com fuzis em suas cabeças por haverem desobedecido sem querer as ordens do traficante local, há um trecho que, dentro do diálogo entre os amigos, pode nos parecer cômico, mas, se refletimos com mais cautela, torna-se instantaneamente tragicômico:

– Vocês só falam em droga, nunca vi!
– Isso é porque o mundo tá drogado, irmão. Até parece que tu não sabe. Já te falei, vou falar de novo: uma semana sem drogas e o Rio de Janeiro para. Não tem médico, não tem motorista de ônibus, não tem advogado, não tem polícia, não tem gari, não tem nada. Vai ficar todo mundo surtando de abstinência. Cocaína, Rivotril, LSD, balinha, crack, maconha, novalgina, não importa, mano. A droga é o combustível da cidade.

Finalizo aqui com imensa satisfação e não me prolongando para não entregar a vocês, propositalmente, mais das impressões e viagens dessa leitura-chapação incrível e que com certeza merece ser feita, sem ressalvas, por todos e todas que gostam de sentir a quentura que toda boa literatura provoca. Com ou sem chapéu, não deixem de ler e sentir esse Sol na Cabeça, minha gente.

Alex Costa. Natural de Fortaleza/CE. Formado em Letras/Português pela Universidade Estadual do Ceará. Amante fiel da literatura — em especial a brasileira. Apaixonado pelas mulheres das nossas Letras, entre elas, uma em especial: Ana Miranda. Pretensões para o futuro? Terminar o primeiro romance que começou a escrever — enquanto isso, tome-lhe casos e contos! Também participa com colaborações literárias em sites e blogs que oferecem espaço para expor um pouco da arte que tanto ama.

Originally published at serlinguagem.wordpress.com on March 12, 2019.

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