Contato abusivo: tocar o corpo com distância afetiva
No contato abusivo, alguém se beneficia de um contato físico com outra pessoa, usando de um desnível de força. Nessa situação, os segredos do corpo são despertados em um contato que se dá de uma forma desleal.
O desfrute de uma das partes é satisfeito sem precisar que a outra parte esteja de acordo com as condições em que o os corpos irão se aproximar. Estupros e bolinações são situações nas quais é fácil perceber o que há de abusivo no contato, mas há situações menos explícitas e que não necessariamente têm o menor teor sexual. Imagine uma mãe que não dá atenção ao mundo interno do filho e não percebe de forma corriqueira os sentimentos dele. Mesmo assim, ela pode querer abraçar este filho. Mas para ele, abraçá-la é como se fosse abraçar um desafeto, já que ele não se sente reconhecido por ela e provavelmente guarda muitas mágoas. Quando ela tenta abraçá-lo, ele pode fugir ou aceitar meio contrariado, tolerando o desconforto do abraço para evitar a raiva dela ou alguma represália.
A parte que abusa não considera como o outro se sente — ou pode vir a sentir — a partir de um gesto como realidade merecedora de respeito. Não há curiosidade ou interesse em saber como a parte abusada se sente e quais necessidades básicas que ela precisa que sejam consideradas. Isto porque a parte que abusa está com a atenção nos próprios desejos e em como se sente quando eles não são atendidos. O carinho fica então descontextualizado afetivamente. E este tipo de “carinho” pode ser iniciado tanto a partir de coerção quanto ou sedução.
Contato abusivo por coerção
O contato pode acontecer em uma situação de coerção declarada, em que a parte abusada não tem condições físicas para impedir o contato, como quando alguém maior e mais forte agarra ou estupra alguém menor e mais fraco. Porém, na maior parte do tempo, a parte abusada permite o contato por perceber que pode ser pior não deixar. Alguém pode permitir um abraço constrangedor de um superior por medo de causar um desagrado com alto custo social. O menino da história lá de cima permite um abraço por medo de tudo o que pode lhe acontecer se a mãe ficar brava. Uma mulher que tem medo de que não acreditem nela pode “permitir” um abuso no transporte público ficando em silêncio. Na maioria das vezes a parte que abusa não avalia com clareza os sinais da outra pessoa, não a toa quem viveu um abuso pode se perguntar por muito tempo o que ocorreu. Mas é claro que existem sádicos que avaliam claramente mas têm prazer com a aflição que causam.
Todo mundo está procurando alguma coisa
Alguns deles querem te usar
Alguns deles querem ser usados por vocêErga a cabeça, seguindo em frente
Mantenha a cabeça erguida, seguindo em frente
— Eurythmics
A mistura da distancia afetiva e carinho físico pode gerar um sentimento de repulsa. A distância afetiva torna a aproximação física desprazerosa, pois partes do corpo reagem a ela com o desprazer de uma ameaça e, ao mesmo tempo, outras partes respondem com um prenúncio de prazer (excitação ou mansidão) que o contato com outro corpo deperta. Ela pode rir nervosamente ou mostrar que está tudo bem de outro jeito em situações mais leves. Nas mais graves, pode tensionar o corpo ou respirar de forma mais contida em uma tentativa de não sentir aquilo que está sendo feito a ela. Quanto mais a situação se prolonga no tempo e quanto mais íntimo for o contato indesejado, maior o impacto no dia-a-dia desta pessoa. Se este tipo de situação ocorre com frequência ou intensidade suficiente, a atenção pode passar a estar constantemente repousada em lugares outros que não nas próprias sensações físicas. E não podendo contar com suas próprias sensações para saber o que é ou não suspeito, uma pessoa que passou por isso ficará mais vulnerável ao perigo, correndo o risco de uma revitimização.
Contato abusivo por sedução
Existe o contato — como um toque ou um abraço — usado para influenciar alguém e distraí-lo de ter conhecimento de algo. Depois do toque amistoso, sedutor ou gentil, quem foi tocado percebe que foi alvo de uma brincadeira, que lhe foi tirado algo sem seu consentimento ou que foi levado a fazer algo que não faria caso não tivesse sido distraído. Encostar, neste caso, é usado como uma maneira de seduzir e o toque pode inclusive ser recebido com normalidade.
Já no contato abusivo favorecido por meio de sedução, a parte abusada deseja a proximidade. Porém, parte do que fundamenta este desejo e a permissão para se entregar de maneira muito íntima é o encantamento que se tem diante da realização de uma promessa. A parte que abusa age de maneira a deixar a parte abusada acreditando que receberá algo, agindo ativamente para isso ou se esquivando de reiterar o que é ou não possível para ela naquela relação. Ela o faz captando, consciente ou inconscientemente, e se adaptando à necessidades emocionais significativas, da parte abusada. Há um promessa, velada ou declarada, que pode ser a concretização de um compromisso social — namoro, casamento— ou a realização de sonhos íntimos, como ser amado, percebido em algo importante ou ser tratado de uma maneira muito desejada.
Seja obscena, seja, seja obscena
Seja obscena, querida, e não ouvida”
— Marilyn Manson, cantando mOBSCENE
Quem leu o Pequeno Príncipe conhece a famosa frase “Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas”. No caso de uma sedução abusiva, a desonestidade reside em cativar sem considerar-se responsável — aí vem outra frase, mais popular, “ema ema ema, cada um com seus problemas”. A deslealdade nem sempre se dá então por um plano maquinado, ela pode se dar por uma omissão moral. Seja por essa omissão moral, seja por um plano, a sedução rende um desfrute íntimo em uma medida que a parte que abusa não teria conseguido se tivesse havido zelo e franqueza. A parte abusada se permite tocar sem estar consciente do que aquela relação é, de fato, para a outra pessoa. É fácil, novamente, pensar numa situação sexual, mas vamos voltar ao caso do filho e da mãe. Ele pode ter desejado o abraço muitas vezes pela promessa subentendida de que a mãe o reconheceria e seria amiga dele como ele de fato precisaria, mas esse reconhecimento e esta amizade tão sonhada nunca chega.
Como consideramos alguém tempera o acontece na cama. A sensação da parte abusada, após se dar conta da deslealdade, pode se assemelhar à de ter sido sexualmente abusado no sentido mais usual do termo. Misturam-se no corpo o mal estar da exploração e as reminiscências do prazer. A mistura dessas sensações pode gerar culpa, vergonha, humilhação e repulsa de si mesmo.
Não ter discernimento com relação ao próprio poder e não ter atenção com o que é dito pode levar a alguém a desfrutar de uma pessoa sem o cuidado que seria justo. A vergonha que advém de contatos abusivos se dá por alguém ter se encostado em nós e despertado sensações sem o devido respeito. A sensação de dignidade é maculada quando temos um prenúncio involuntário de excitação sexual ou de mansidão nas mãos de alguém que nos maltrata — ou quando deixamos correr livremente esses prazeres nas mãos de alguém que conseguiu nossa confiança de forma desleal ou irresponsável.
O contato abusivo desconsidera a identidade porque viola a intimidade, pois a parte abusada vive sensações e emoções profundos despertados por alguém que não tem o devido respeito pelo que aquilo significa para ela. A combinação entre uma distância afetiva e contato física é então, num caso leve, um descuido possível de ser reparado. Num caso mais dramático, uma brutalidade custosa de se superar.