Folhetim: Descendo na boquinha da garrafa

Revista Siesta
SIESTA
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7 min readMay 27, 2021

[Terceiro capítulo do folhetim Alfredo. Para ler o capítulo segundo, clique aqui.]

Alfredo segurou a garrafa de cerveja imóvel por tanto tempo que o calor do conteúdo parece ter passado todo para seus dedos frios, já azulados. O gosto do gole é choco e ele afasta o bocal de sua cara, pousando a garrafa na mesa.

– O pessoal da empresa é legal, mas tem uns babacas… É clássico. Mas talvez faça sentido o que você falou mesmo! O Estêvão parecia legal, mas cagou comigo.

– Pois é. Mas se você mexer uns pauzinhos dentro da empresa talvez consiga reverter isso, não? Há quanto tempo você está lá dentro? Mais até do que esse seu chefe.

– Sabe que… Apesar de ele querer me afastar dali, eu não pensei muito na alternativa de ficar? É engraçado constatar isso agora. Quer dizer, o que me prende na empresa? Ou em São Paulo?

– Um emprego? Sua família e amigos?

– O emprego não é problema. Eu estou crescendo na empresa porque entrego tudo o que eles pedem, e eles sabem disso, apesar do Estêvão. Essa parece uma boa chance e, se der errado, posso procurar opções em outra empresa ou até fora do país enquanto moro no litoral… Família e amigos eu posso visitar aos fins de semana. Ou vocês podem descer pro litoral, né?

– Litoral de Itanhaém. Cara, eu adoro você, mas o que você tem a me oferecer no sábado à noite em Itanhaém que justifique eu pegar estrada e ficar na sua casa?

– Cerveja e um Play 5.

Alfredo coloca o computador de lado, inclina-se para frente e elabora:

– Acho que o que me incomoda mais não tem nada a ver com o trabalho. É não sair com nenhuma mina há tanto tempo… Sair na rua e ver o pessoal namorando é uma merda. Até os imbecis do RH namoram. Alguns, pelo menos…

– Sim! Até neonazistas têm namorada!

– Nossa… Eu não tinha pensado nisso, mas é verdade…

Wei percebe que está levando a conversa para um mau caminho e suspira. Joga o corpanzil para trás, fazendo o couro da poltrona roncar:

– Cara, você não cria muitas oportunidades para conhecer gente nova, né?

– É… Ao menos agora vou estar mais perto da Baixada para ver as minas na praia…

– Cara, pensa nas oportunidades inesperadas… Se você se abre um pouco, coisas que você nunca sequer imaginaria podem acontecer. Pensa no VALIS, escrito pelo Philip K. Dick. Manja VALIS?

– Quem?

– Porra, Fred! Eu até citei ele no conto que escrevi no ano passado para aquele blog!

Alfredo olhava intrigado.

– Aquele que eu assinei como Filipe K. Ralho… Lembra?

Alfredo arregala os olhos. Lembrava vagamente do nome e de contemplar a página aberta na tela do celular por uns dez segundos quando Wei noticiou a publicação. Para não ferir o amigo, avançou cautelosamente:

– Ah… Esse Dick é aquele dos robôs. Do…

– … Blade Runner! Ele mesmo. O VALIS é uma inteligência superior, que o escritor diz que experienciou operando dentro da cabeça dele. Ele achava que era a presença divina, uma inteligência total, que criava um atalho imediato para todos os tipos de pensamento humano possíveis.

– Tá, legal. Mas que porra isso tem a ver comigo?!

– Tem tudo a ver. O Philip K. Dick tinha tirado um dente do siso e esperava na cama a entregadora da farmácia levar um analgésico. Quando ela chegou, a luz do sol refletiu num pingente no pescoço dela e ofuscou a vista dele. Até aí, ok. Mas essa luz tirou a dor dele, deu uma balançada nele, que nunca mais foi o mesmo. Ele teve uma visão de si mesmo como um cristão na Roma antiga por um segundo e a percepção de que o mundo é um apanhado de fenômenos permanentes, que só se alteram nas suas formas aparentes. Ah, e ele começou a ouvir uma voz na cabeça e a invadir os pensamentos de gente de séculos atrás.

Alfredo suspira suavemente e esfrega a palma da mão da franja até o queijo. Estava ficando tarde e ele precisava ir embora.

– Cara… Sinceramente espero que isso nunca aconteça comigo.

– Você não entendeu. Depois lê os livros VALIS dele. O importante é: o cara arrancou um dente, foi pegar um remedinho na porta de casa numa tarde perfeitamente estúpida e teve um contato com Deus!

– Mas… Poderia ter acontecido esse contato ou ele poderia estar meio louco, né?

– Sim. O livro trata dessa possibilidade. Mas você não tá entendendo merda nenhuma, hein? Eu só estou dizendo que você tem que se abrir um pouco mais, cara.

– Vou abrir… Vários biquinis em Itanhaém, tá ligado? — e pisca o olhinho.

– Puta merda… Você não tá legal, já são cinco da manhã… Sai da minha casa, cara. Depois a gente conversa.

* * *

Era tudo muito cômodo e estranho. Estava de terno num novo cômodo à meia-luz e ele podia sentir o cheiro de vinho espargir do bocal da garrafa. Não tinha o típico cheiro fermentado, mas sim adocicado. Um suquinho de uva. Alfredo sentia-se leve, muito leve, como que flutuando num rio e a forma redonda do bocal se aproximava da boca, virando. O vinho fluía sem acabar, como uma cachoeira vindo de uma garrafa sem fundo.

Apertou o olho esquerdo e acurou o direito: de perto, o bocal era um buraco em expansão, cujo fundo negro ele só podia deduzir continuar além. Suas mãos gelavam e a sensação era de que tudo agora era líquido, gradualmente invadindo seu corpo. Diferente do calor ou torpor de uma bebida alcoólica. As pálpebras de Alfredo pesavam novamente e seu corpo mole ondulava, agora imerso no líquido. Ele freneticamente tentava afastar de si o bocal da garrafa — o buraco se expandira e já alcançava o tamanho de um vaso, despejando vinho ao seu redor. Deu um tapa desesperado no vidro e a escuridão da garrafa recuou um pouco. O bocal agora parecia bidimensional, um círculo negro. A cada tapa que ele dava no vidro, o círculo quicava mais um tanto para além, como uma bola de tênis que, depois da raquetada, interrompe sua trajetória no ar.

Conforme recuava a ameaça, sentia-se mais frio. Era novamente o mago preso em seu mundo de espelho, preenchido de éter. Seu vigor era incansável, mas cada novo tapa marcava o amolecimento mais acentuado de seus membros, rumo à sensação de dormência. Sentiu a mão arder num derradeiro tapa no vidro e um gemido… da garrafa?

O objeto nivelou-se de frente, revelando, em pé, o corpo. Parecia mais arredondada, mais feminina. De fato, ela se tornara uma mulher de ancas largas, sem membros e com um bocal no lugar da cabeça. Emanava calor e se aproximava. Quanto mais perto, mais quente.

Fechou os olhos. Um bafo quente sobre roupas molhadas e Alfredo de olhos fechados e rosto descontraído. Um som de corneta faz com que abra os olhos e veja chamas ao redor e um frango frito dançarino com cabeça de bocal se esfregando nele.

Alfredo dá um tapa na janela. Na janela de verdade. Ele acorda todo molhado no ônibus noturno. O interior estava escuro, então ninguém via sua pequena ereção, julgou. Mas alguém ligou o ar condicionado quente em sua cara. Olhou para o lado e a vizinha, uma gordinha adolescente de toca azul felpuda, roncava ao seu lado, com a cabeça tombada e a língua para fora. Decerto tinha estapeado a moça em algum momento… Não dava para saber agora. Ele coçava a cara, menos constrangido do que incomodado com a chuva entrando pela janela azulada.

A viação não avisara na hora de vender a passagem, mas algum marginal atirara uma pedra contra o veículo numa viagem anterior, na tentativa de assaltá-lo — cena infelizmente comum na descida da serra. O remendo de fita no rombo resultante claramente não cumpria sua função. O Dramin fechara uma cortina de veludo em sua mente, mas até seus efeitos tinham um limite. Em todo caso, o trecho de serra já estava superado e, ao menos, ele não perigava passar mal antes de desembarcar na Amazônia paulista.

Agora já não adiantava nem tentar dormir. Com o ônibus embicando na rodoviária, Alfredo vislumbra o típico ambiente cinzento, embebido pela luminosidade fluorescente pálida que faz doer os olhos à noite. Lembrou do sorriso da loira esquisitinha de seu escritório.

Pela única porção de janela através da qual se enxergava algo, ele podia ver que as cabines de lojinhas estavam quase todas fechadas e que um botequinho estava aberto. É impressionante como os pequenos bêbados fazem a economia girar. O ônibus manobrava e apitava para acertar a ré e ele apertava os olhos: à distância, a clientela parecia um bando de bonequinhos numa conversa. Bonecos de ação num bar: no lugar de Falcon e os Power Rangers, um senhorzinho de boné vermelho se escorava no balcão, observado pelo velhinho dono do bar e… aquele rapaz negrão do comercial da C&A! Alto, esguio e vestido de modo extravagante, gesticulava animado. Mas seria mesmo ele? Num bar da rodoviária de Itanhaém no domingo à noite?

– Obrigado pela viagem.

O cinquentão de cara chupada ruborizada e metido numa camisa branca arrancou-lhe o canhoto da mão e foi descarregar sua mala do compartimento inferior. Alfredo virou-se novamente. Não havia ninguém além do velho balconista e do sujeito de chapéu. Na parede atrás de onde estava o homenzarrão, pendia um timão de barco.

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