Folhetim: Peixe na correnteza

Revista Siesta
SIESTA
Published in
7 min readFeb 16, 2021

[Segundo capítulo do folhetim Alfredo. Para ler o capítulo primeiro, clique aqui.]

Ilustração: André Silva

Quem me dera ser um peixe
Para em seu límpido aquário mergulhar
Fazer borbulhas de amor pra te encantar
Passar a noite em claro…
… Dentro de ti

A imagem turva da avenida Henrique Schaumann torna-se novamente clara, quando Alfredo esfrega a mão fechada no vidro, sobre o qual acabara de suspirar, absorto. O ruído chegava baixinho àquela altura do prédio, mas ele podia entender que alguém encarnava Fagner naquele bar com karaokê a algumas quadras de distância. Isso queria dizer que o som estalava alto já às cinco da tarde. Eles só ligam o karaokê nas sextas-feiras, e essa era sua a última naquele escritório em São Paulo.

Não apenas no escritório, mas em sua casa. Nunca tinha arredado pé da cidade, pela qual não nutria grandes simpatias ou antipatias. Portanto, não sabia se a mudança era boa ou ruim. Era como um peixe no aquário — ele gosta do cárcere de água onde vive ou simplesmente nunca teve outra referência?

– Já pode passar a régua! — exclamou Jorginho, peludo e suado, com a camisa desabotoada até o peito e fazendo “aviãozinho” de braços abertos.

Jorginho era expert em romper sua concentração dos jeitos mais bizarros. Nesse momento, trazia a lembrança de que o clima esquentou no escritório muito além de suas expectativas, francamente mornas. Mais cedo, tiraram fotos em grupo. Todos os outros ainda discutem em grupinhos após a pequena festa de despedida. A bela e morena Luana tomava uma cerveja perto da recém-instalada máquina de pebolim, arrancando até mesmo uns risos da loirinha esquisita e calada de óculos grandes. Um gaiato da sala ao lado chegou mesmo a penetrar na comemoração, tomar umas cervejas e rodar a camiseta no ar. Era mais reconhecimento do que ele poderia imaginar ter no escritório!

Alfredo senta-se à mesa comunal e faz tilintar a garrafinha de cerveja sobre a superfície, enquanto voltava a imergir no reflexo convexo de sua esfera prateada. A orbe ficava apoiada ao lado do pêndulo de Newton e de seu grampeador. Elevou o objeto como na imagem de Escher e o ângulo baixo tornava sua cara ainda mais redonda e batatuda, de modo que ele preferiu trazer o sólido para junto de si, quase à altura do olho.

A vista era ligeiramente melhor e o efeito da observação era quase terapêutico: imaginava-se momentaneamente preso no mundo do espelho, em primeiro plano, e comandando as dimensões de tudo ao mover milimétrico da mão. Imaginou-se mago, deformando telepaticamente os colegas de trabalho o resto do universo ao fundo.

Vibra o celular. Deve ser Wei. O mago decide decifrar a mensagem do amigo de longa data no universo do espelho, trazendo a tela junto da esfera. Espreme os olhos, tentando penetrar as letras invertidas do ecrã naquele mundo mágico, mas uma onda súbita cresce no fundo.

– Uma brejinha e já empapuçou, Fredão?

Seu chefe saíra diretamente do nada e aparecia agora às costas do mago. Desarmado, Alfredo emite um ganido agudo:

– Hã?

Take it easy, bro! Só vim te sondar para o barzinho que o pessoal está armando depois daqui.

Desde que começara a trabalhar aqui, saiu meia dúzias de vezes com os colegas e achou um pouco limitador. Sua personalidade não era algo para se compartilhar com aquele pessoal, sob pena de protagonizar piadas. Por outro lado, faltavam mulheres em sua vida. A promessa de perfumes doces exóticos, amor e aventura gelou seu estômago de excitação até ele verificar na tela do celular, que um marmanjo de trinta anos o convidava para uma festinha particular de videogame, pizza e cerveja. O martelo estava batido.

– Poxa, Estêvão! Acho superlegal, mas já marquei um jantar familiar de despedida.

– “Familiar”, sei… Te entendo, Fredão. Eu também vou para uma casa bem “familiar” depois que o pessoal pirar o cabeção no barzinho. Só moças de família!

– Cara, não vai dar mesmo, mas valeu muito a festinha de despedida, Tevão — rebateu, temperado com um riso constrangido — quero dizer: Estêvão.

No worries, Fredão. Pode me chamar de Tevão mesmo. Todo mundo aqui é especial e merece uma farewell party. É a minha nova política aqui na empresa.

O chefe sai rumo à mesa de pebolim. Alfredo sente um afago na alma pelo carinho de ser o motivo de uma festa e pela intimidade aberta pelo chefe. Um segundo: foi o tempo necessário para se desanimar, pensando que a festa virara um protocolo da empresa. Mas agora já não fazia diferença, pois o mago ia reafirmar sua supremacia no mundo dos jogos.

* * *

A luz branca do telão era o único luar sobre aquelas escarpas de carne. Encaixado naquela papada, entretanto, o rosto do chinês era até bem formatado. Aquele homem de pulôver, mais largo do que gordo, contraía as ventas e dava um tranco em seu formoso relógio prateado ao descer o punho na mesinha de centro da sala e ganir:

– O controle estava engordurado, pô! Você, parece que o mergulha num pacote de salgadinhos para ver se conserva melhor!

– Não sei se você percebeu, mas a gente tá comendo pizza, Einstein. Agora escolha o Sub Zero, que é o único personagem que te faz ganhar.

– O cacete! E põe aí o Medal of Honor, que vamos jogar de timinho.

O sujeito corpulento levantou do sofá escoiceando e fechou a porta do banheiro num pequeno baque. Ele não sabe perder, é sempre assim. Só aquieta o facho quando saem do console e fica cada um no seu computador, organizando quests no RPG. Alfredo medita um segundo sobre a expansão de sua própria pancinha após ver aquela montanha rugindo passar e termina por abocanhar um pedaço de pizza. Já ajeita seu DS portátil, deixando de lado a ideia do Medal of Honor.

– Cara, nem acredito que sejam meus últimos dias aqui.

– O quê? — a voz de Wei ultrapassa abafada a porta do banheiro.

– EU DISSE QUE NÃO ACREDITO QUE SEJAM MUITOS ÚLTIMOS DIAS AQUI!

– Tudo bem, também não precisa gritar — disse, abrindo a porta num sorriso maroto — Mas em que sentido você quer dizer?

– É que eu sempre vivi aqui, todo mundo que eu conheço vive aqui e…

– … E o seu chefe puxou seu tapete e te mandou para a puta que pariu depois de onde o vento faz a curva?

– Itanhaém não é tão longe assim, vai. Além disso, tem fama de ser bonita! Até chamam o lugar de “Amazônia paulista, cara!

Wei absorve o comentário amazônico apenas com uma careta e uma coçada no queixo. Senta e toma prumo na poltrona, e segue tateando o assunto:

– Então você está feliz de deixar tudo para trás?

– Não, é mais estranho. Estou de mudança e é até fácil. Se eu quiser rever você ou alguém, vir para São Paulo, é só pegar um ônibus… Você realmente acha que ele puxou meu tapete?

– Não sei… Por que um gerente realoca alguém em Itanhaém para trabalhar com um sistema eletrônico que provavelmente vai poder se operado de qualquer lugar em alguns meses? E, numa boa: pelo que você me conta, para onde você acha que tem espaço para crescer dentro da empresa?

– Puta merda. É… pode até ser. É que essa é uma das unidades mais próximas da empresa, né? E o meu chefe não apresentou outras opções… Certeza que ia encarar mal mudar os planos da diretoria! Tá ligado?

– Entendi o que você está me falando, mas então por que você não recusou, cara? Alguém colocou um revólver na sua cabeça e falou “vai”? Você perderia o emprego se negasse?

– Não sei… Para falar a verdade, não pensei na alternativa de ficar.

– Porra, Fred…

Alfredo toma uma golada contemplativa de cerveja. Wei rompe o silêncio:

– É foda isso, né? Uma hora você abre mão de fazer um nome. Aprende a tirar o melhor do que a vida dá.

– Mas se eu não tivesse para onde crescer, por que ia chamar a atenção da diretoria para implantar esse sistema, hein?

– Cara, tenho certeza que você trabalha bem na empresa. Não está em questão você conseguir implantar o sistema. O que eu estou falando é que às vezes as pessoas se importam mais com a maneira que a gente faz no ambiente de trabalho e que não é o trabalho em si. Tipo criar afinidades ou assinar um trabalho de merda de um colega só porque o chefe pede.

De olhos bem abertos e mandíbula tracionada para frente, Alfredo parecia estar ouvindo afinal. Conclui Wei:

– Além disso, pelo que você falou… O seu chefe era o “amigão” da firma, mas qual era sua proximidade com ele?

– Bom… Não muita. Mas ele me chamou para comemorar minha saída!

Touché.

--

--