Sobre bares, isolamento social e sistematização da paquera

Ana Paula Paiva
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25 de abril de 2021

A pandemia nos faz refletir diariamente sobre as atividades essenciais ao ser humano. Sobretudo, coloca-nos diante do que é fundamental à realidade de cada um. E o inventário individual de prioridades transforma-se na velocidade da publicação das contraditórias decisões do Supremo Tribunal Federal.

Embora os estabelecimentos comerciais e populares com balcão e bancos altos ou com mesas onde se servem bebidas e iguarias rápidas não sejam considerados, pelos governantes, locais dignos de habitar a categoria de empreendimentos indispensáveis, os bares, no imaginário, são locais primordiais para a socialização da plebe e ocasionam saudades imensas nos brasileiros que, inclusive, em muitos casos, se colocam em risco para poder frequentá-los clandestinamente.

Na conjuntura pandêmica, a ansiedade não atacou apenas a quem tem uma predisposição genética para o alcoolismo, ou uma capacidade emocional mais frágil, ou quem é mais suscetível a seguir bebendo após a quarentena e se transformar em dependente químico. Em paralelo ao distanciamento obrigatório dos botecos, a vida do indivíduo que ainda não se casou e que cumpriu as primeiras medidas sanitárias à risca também não foi fácil.

O solteiro que levou a sério o insulamento teve de se abster de uma atividade presencial fundamental à sobrevivência da nossa espécie, dona de uma das forças energéticas mais poderosas que ocorrem ao nosso corpo singelamente humano: o sexo. Ainda em prol da segurança sanitária, o celibatário teve em muitas ocasiões de recorrer a performances não presenciais, às vezes humilhantes, próximas à lembrança do ato, por meio de telas, registros pictóricos, áudios patéticos, objetos especializados à prova d’água, entre outras manifestações de autocuidado.

Embora às mentes modernas seja um precipício de obviedade, cabe repisar que homens e mulheres sofreram igualmente com estado feudalista de virgindade, potencializado pela falta de oportunidades de evasão mental ocasionada pelo fechamento dos bares. Acerca da dupla penúria, podemos falar com propriedade sobre o lado feminino da história. Vale dizer que a convivência virtual com as amigas ajudou bastante nesse processo, com trocas de dicas, angústias, receitas, orações e rituais de manifestação que ajudassem a passar, sem botequim e sem sexo, pelo périplo emocional do começo da pandemia em segurança.

A partir dessa fatia mínima da realidade pandêmica, e dando continuidade aos exercícios metafóricos em prol da manutenção da vida no selvagem mundo afetivo (iniciado com o cosmo masculino por meio de cafeterias), desta vez nos aventuramos em tentar comparar os serviços prestados pelos bares ao comportamento paquerante das mulheres.

Importante mencionar que não tivemos a pretensão de totalizar as atividades comerciais e, muito menos, os hábitos sexuais femininos, que resultam em um universo crescentemente rico, profundo, pungente e criativo. Trata-se de um registro exemplificativo, bem afastado da rigidez das cláusulas pétreas constitucionais, que tenta achar algum sistema comportamental em um ramo da existência tão salutar quanto polêmico, principalmente para nós, mulheres.

Assim, pretendemos compartilhar os primeiros passos da sistematização do comportamento feminino em face à libido e os mais diferentes tipos de serviço fornecidos pelos estabelecimentos especializados em vendas de bebida alcoólica ou cujo foco gira em torno de drinks.

Em metodologia semelhante à usada no ensaio anterior, neste momento é preciso esclarecer que bares serão as mulheres; a bebida alcoólica emparelha-se à cópula propriamente dita; petiscos, por sua vez, são os comportamentos acessórios e preliminares ao coito; arquitetura e decoração equiparam-se às características estéticas da moça; e assim por diante em interpretação livre dos leitores para incentivar o diálogo e o desenvolvimento do tema.

Vamos sem mais demorar às categorias:

Bar pé-sujo: perto de casa ou do trabalho, mesa e cadeiras amarelas de plástico, o garçom te conhece pela cara e as vezes pelo nome. A cerveja sempre está muito gelada, com preço justo. O nome do estabelecimento interessa menos que a localização e o horário de funcionamento, pois fica aberto até mais tarde. Petiscos são coadjuvantes, geralmente iguarias que qualquer bar tem. Ali, o que importa é encher a cara com o líquido que vai dentro de um copo americano gastando pouco. Destaca-se a conveniência, a comodidade, a simplicidade. Todavia, não espere um atendimento polido: despido de constrangimento, se necessário, o garçom expulsa o último bêbado com a vassoura mesmo, antes do amanhecer.

Bar da moda: ambiente descolado, levemente arrumado, atendimento bacana. O bar inaugura com um cardápio variado de petiscos e aperitivos alcoólicos, com preço condizente com a localização e o público-alvo, geralmente playboy, do estabelecimento. Porém, o bar tem um defeito grave: fecha cedo e sempre te deixa com um drink caro na mão, em um copo de plástico. Ainda com vontade de beber, ruma-se a outro bar, muito provavelmente um pé sujo a caminho de casa.

Bar de cervejas especiais: o diferencial é a variedade de rótulos, nacionais e importados. Com a possibilidade de degustar e conhecer a maior quantidade de marcas e sabores possíveis, o consumidor frequenta-o quando quer conhecer coisas novas e sair da rotina. A experiência é inesquecível, todavia um detalhe estratégico coloca o cliente em estado reflexivo que, em alguns casos, prejudica a fidelização, uma vez que ele pode se sentir ameaçado. Entre tantos rótulos desconhecidos, nem sempre o que chega à mesa agrada. As vezes é frutado demais, tem trigo de menos, é amargo na medida errada. Por preguiça ou na ancestral fuga do medo, da ansiedade e do risco, o sujeito parte para o estabelecimento conhecido e com a cerveja preferida.

Bar de hotel cinco estrelas: vista belíssima em uma localização privilegiada, caríssimo, utópico, aquele que qualquer um morre de vontade de ir. Tem álcool? Os drinks são elaborados por mixologista de bom gosto. Tem petisco? Os melhores. É super bem frequentado? Só gente interessante. O atendimento é perfeito? Mais que isso. A pessoa então junta uma grana, muitas vezes viaja até a cidade do bar sonhado. Ademais, tirar foto e poder contar para os amigos que esteve naquele local seleto é parte relevante da experiência. E ao deitar a cabeça no travesseiro, o cidadão realiza, nas profundezas de sua autoconsciência, que infelizmente, nem nessa vida e nem na próxima, poderá dirigir-se àquele estabelecimento sempre que quiser.

Bar turístico: geralmente é uma rede de bares cuja marca é consolidada na cidade. Quase sempre cheio, com o preço do cardápio longe de ser justo, conta com um público local limitado e vários turistas de todas as tribos. Por isso, se quiser sentar, tem que chegar cedo ou fazer reserva. Apesar de ser famoso por conta dos petiscos — muito gostosos, aliás –, os clientes geralmente vão ao estabelecimento na intenção de apenas tomar um chopp. Pede ao garçom uma caldereta e ele oferece pasteis. “Doutor, hoje eu vou só de chopp, valeu?”, reitera o consumidor, na boa. Não adianta. A partir daí, empadas, coxinhas, quibes, balinhas de menta, churrasquinhos, fichas de karaokê, talheres aparecem na mesa, menos a porra do chopp, que quando chega, tá cheio de espuma. Exausto e sóbrio, o ex-futuro cliente fiel desaparece do local para todo sempre.

Cervejaria “food truck”: o consumidor adorou a cerveja que conheceu na feira de produtos artesanais da cidade. Além de estar super gelada, encorpada, com o rótulo maneiro, o sabor uma delícia e o atendimento personalizado na carrocinha charmosa nota dez. Inclusive, adorou que tinha ali disponível uma bandejinha com uns pedacinhos de queijos e embutidos que harmonizavam perfeitamente com as variações do líquido fermentado. Começa então a seguir a marca no Instagram e a frequentar as feiras em que o pequeno automotor com quatro mangueiras anuncia breve estadia. Descobre-se então que, no sábado seguinte, ele estará no evento semanal da praça próxima à sua casa. Mas, na data agendada, dirige-se ao local e a marca não está lá. Checa em todas as barraquinhas e nem sinal da cervejaria móvel. Começa a saga atrás do microempreendimento itinerante, que some do nada e é totalmente dependente das condições climáticas. Choveu, não tem. Para tentar saber onde o carrinho está, é preciso acompanhar religiosamente o perfil oficial da cervejaria na rede social.

NOTAS DE RODAPÉ

1 A metáfora e algumas das premissas que deram origem a este ensaio provêm de conversas com um macho masculino da convivência sexual de uma das amigas que compõem o círculo de amizades das autoras.

2 O desenvolvimento teórico deste ensaio é, novamente, de Ana Paula Paiva e Camila Chrispim.

3 Este ensaio contou com o apoio dos seguintes colaboradores fixos do recém-criado Programa de Bolsas de Iniciação Cientifica em Assuntos Afetivos: Paulo Fontes, Cristine Küffer, Laura Goes, Roberta Vianna, Raquel Filgueiras.

4 Lembramos que esta também é uma lista exemplificativa que está longe de ser dona da verdade. Estamos à disposição da sociedade para ajustes, acréscimos e reflexões.

5 Estamos cientes de que nem todos os brasileiros fazem uso de álcool ou de sexo (ao mesmo tempo ou alternadamente).

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