Emicida, 21 Savage, Jay Z e como somos vistos

João Rafael Venâncio
TRIUNFO
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6 min readMay 20, 2020
Emicida trouxe um questionamento não só dele (YouTube)

Primeiramente, gostaria de pedir desculpas por este texto sair apenas este ano. Eu precisava de um tempo para minha vida. Mas eu estive de olho em tudo na cena do rap e da música em geral. Este texto veio a partir deste frame do Emicida, neste vídeo.

Emicida, 21 Savage e Jay Z são de três gerações totalmente diferentes. Porém, apesar das diferenças, eles nos quiseram passar visões parecidas de vida, o que pode ser triste, se vermos que para um homem de 34, outro de 27 e um de 50 anos a realidade negra ainda não mudou muito.

Vamos falar primeiro de Jay Z. O icônico rapper que fez o boné do Yankees se tornar famoso lançou, em 2017, o seu 13° álbum. O 4:44 veio cheio de sentimentos, mostrando o que talvez seja o Jay Z mais maduro já visto, você pode conferir minha análise no texto que fiz anteriormente. Mas o que eu quero conversar com vocês é sobre uma faixa em específico, ou melhor: seu clipe.

The Story Of OJ é a segunda faixa do álbum e possui um vídeo à primeira vista para alguém mais despercebido, ele parece inofensivo. Uma animação em preto e branco, contando sobre JayBo. Personagem fictício da trama que desenha a história do homem negro nos Estados Unidos. Desde sua chegada e de outros personagens dos navios negreiros para a América.

O vídeo conta com uma carga de referências, desde o cartoon escolhido, até algumas falas dentro da música. A animação é feita a minstrel cartoon, que foi um tipo de desenho muito comum no século passado, que destacava muitos traços negros de maneira negativa. Lábios, o corpo, até mesmo a alguns atributos físicos, tendo relação com outro ato racista que, vez ou outra ainda vemos: o blackface.

O clipe é carregado de estereótipos. A mommy, o Tio Ben, o homem negro associado à malandragem, o escravo, a melancia (sim, a melancia também é um ícone para expressar o racismo dentro dos EUA). Mas o que fica marcado é o fato de JayBo caminhar por vários lugares do mundo durante a animação e confirmar no refrão que, independente de onde estiver, você ainda será negro e as pessoas vão olhar de determinada maneira para você.

21 Savage

Em dezembro de 2018, 21 Savage lançou o seu álbum I am > I was e logo na primeira música, um som que com certeza vai ficar na história. A Lot é uma faixa que tem o 21 falando sobre sua vida pessoal, os caminhos pelos quais ele passou, fala sobre o assassinato do irmão e mostrou as opções que ele tinha para seguir em frente. Ela conta com J. Cole que, por sua vez, fala sobre a indústria musical dos EUA, e também dá uma alfinetada em Tekashi 6ix9ine. O som foi premiado com o Grammy de melhor música de rap do ano, em 2019. Porém, quero pular para fevereiro do ano passado, quando 21 Savage lançou o clipe da música.

O vídeo é mostra bem sobre as consequências do caminho de Savage, caso ele tivesse escolhido o crime. A música segue rolando, enquanto os contrapontos são postos para quem assiste ao clipe. E isso toca no ponto que foi o que me motivou a escrever este texto: como as pessoas negras são vistas na sociedade. 21 Savage não usou os cartoons, como Jay Z usou, mas deixou muito nítido o que que ele queria dizer: caso ele tivesse escolhido o caminho do crime, toda aquela família feliz poderia se tornar a parte antagonista. Os jovens negros em caixões ou em cadeias, avós e pais preocupados, outro grupo de idosos morrendo, ou a própria mulher negra sendo usada, como indica o clipe.

É sempre importante lembrar que o racismo, de forma explícita ou estrutural, impõe alguns rótulos em pessoas pretas. Desde o clipe do Jay Z com o Jay Bo comendo a melancia, até a sociedade impor a imagem de um homem preto com a violência, são atos causados por este racismo. A construção de narrativas sobre as histórias, mesmo sem a pessoa ao menos saber quem você é, também é uma forma de como este preconceito age de maneira fugaz contra quem sofre.

Então, chegamos ao ápice do texto: maio de 2019. Emicida lança o primeiro single do seu novo álbum. Foi uma exibição de gala, no Museu AfroBrasil, contando com a presença de fãs. Lá, ele lançou o clipe de Eminência Parda. O lançamento da música veio cheio de conceitos, o rapper explicou em seu Instagram o que queria dizer o termo. E isso é fundamental para entendermos a letra e o clipe dessa música, que é a minha favorita do AmarElo.

“Em política, eminência parda é o nome que se dá quando determinado sujeito não é o governante supremo de tal reino ou país, mas é o verdadeiro poderoso.”

E isso foi visto no clipe. A produção foi a de um filme de quase seis minutos, com a mensagem de empoderamento com um belo soco na sociedade. Eminência Parda possui elementos como carimbó, representada por Dona Onete, entoando um verso de O Canto dos Escravos, até à ligação com Jé Santiago, sensação do trap no Brasil, e com a participação do rapper português Papillon. A escolha dos estilos pode passar do ponto estético e mostrar também o conceito do AmarElo. O amor pela música seria a ponte, ou o elo, para o encontro deles e a música acontecer.

O vídeo mostra uma família negra indo a um restaurante, comemorar uma conquista da família. O discurso de vitória, todos felizes, parecendo um comercial de margarina. O que era para ser comum para qualquer família na sociedade. E, chegando ao restaurante, a gente vê a família feliz, enquanto todas as outras famílias e amigos brancos do local se sentindo claramente incomodados, receosos, indicando que lá não era o lugar deles. O que é algo, também, muito comum, infelizmente. Só que em nenhum momento aquela família é incomodada diretamente, explicitando o racismo velado dentro do Brasil.

Em entrevista ao site Huffpost Brasil (leia aqui), o rapper falou que o clipe teria outro final, mas o contexto o impediu. Em abril do ano passado, a família Santos Rosa teve seu carro baleado no Rio de Janeiro pelo Exército. Isto acendeu a necessidade urgente para o rapper abordar o tema em seu clipe, ainda segundo a entrevista.

Outro ponto interessante é que a dualidade presente no clipe do 21 também aparece na obra de Leandro. As imagens se alternam entre a família feliz, e os estereótipos dados às pessoas pretas. Desde eles como mendigos, até a mulher sendo utilizada como objeto de prazer dos homens brancos, enquanto os homens pretos e a mãe eram tratados como meros serviçais, sendo apenas assim a maneira delas estarem presentes naquele local. Também há o bônus de que o único negro que consegue sair vivo do restaurante naquele filme é o que começa como garçom, ou seja: ele “soube seu lugar” e conseguiu sair de lá são e salvo, pisando nas poças de sangue. É um clipe muito reflexivo e acabo recomendando sempre.

Falando um pouco sobre a letra: empoderamento puro. São linhas que mostram valor à trajetórias de sucesso, de resistência e também de religiões de matriz africana. Tudo isso num mix excelente entre os artistas.

E, particularmente, o fato de serem escolas diferentes de rimas e elas falarem sobre o mesmo tipo de problema me chamou muito a atenção. Me chama a atenção porque foi criada uma narrativa e para desconstruí-la vai muito tempo. Vai muita educação. Mostra que, enquanto sociedade, estamos longe de resolver o problema de estereótipos ligados às pessoas negras.

Precisei explicar, relacionar e contextualizar que são três clipes, três obras e artistas de dois países diferentes e também diferentes gerações para explicar que o rap continua sendo protesto. O rap evolui conforme a sociedade evolui, mas continua sendo rap e tendo sua raiz ligada ao protesto, ganhando elementos como recursos visuais e até se estendendo ao trap também, para atrair os mais jovens e o movimento se manter.

Quero agradecer muito ao Vagner Soares, por ter feito esse texto maravilhoso sobre o clipe de The Stoy Of OJ, que me ajudou muito na construção deste conteúdo.

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João Rafael Venâncio
TRIUNFO

Graduado em jornalismo. Gosto de NBA, Rap e Futebol. Escrevo sobre o que acompanho.