Tailândia-Brasil #03: A ideia de ser livre nos aprisiona

Matheus de Souza
Expresso Tailândia-Brasil
6 min readMay 22, 2020
Joaquin Phoenix em "Her" (2013).

Este texto faz parte de uma troca de correspondências entre os escritores Matheus de Souza e Murillo Leal. Durante a quarentena, toda sexta-feira, um dos autores escreve uma carta no Expresso Tailândia-Brasil.

Leia a carta anterior do Murillo aqui.

Meu querido amigo balzaquiano,

Exceto por uma dor nas costas que me atormenta há dois dias por conta de um exercício que do auge da minha ignorância fitness devo ter feito errado, a saúde vai bem. E tu, Murillo, tens te cuidado?

Vou te contar que, se fizessem um trailer de um filme sobre meu 2019, o ano em que completei 30 anos, a trilha sonora certamente seria Territorial Pissings, do Nirvana. Caótico, barulhento, confuso, ébrio. A estética seria psicodélica. Já meu 2020 está mais para No Time to Die, da Billie Eilish. Reflexivo, silencioso, melancólico, sóbrio. E em preto e branco. Filmado com uma 35mm.

Tu fizestes 30 e eu faço 31 na próxima segunda (25/05). Os hábitos desse lado do globo estão cada vez mais saudáveis. Me tornei vegetariano (dessa vez de verdade, sem o migué dos frutos do mar) e, para o desespero dos meus três leitores que invejavam a minha até então vida de escritor boêmio, cortei o álcool e comecei a fazer exercícios físicos. Até tapete de yoga comprei, tu acreditas? Sou praticamente um ex-rockstar literário aceitando que daqui pra frente é só pra trás.

Uma curiosidade da Tailândia, Murillo, é que eles chamam comida tailandesa apenas de "comida". Ok, essa foi péssima. Tenho uma curiosidade melhor. Mês passado foi o réveillon por aqui. O Songkran, ano novo tailandês, é celebrado entre 13 e 15 de abril. É o maior feriado do país e a galera emenda a semana inteira. É tipo o Carnaval dos caras. Infelizmente, esse ano a festança foi cancelada por conta do COVID-19.

Outra curiosidade é que eles não utilizam o nosso calendário. Estamos em 2563. Mas te confesso, Murillo, que as notícias desse futuro distópico não são animadoras. As pessoas seguem pensando apenas em seus próprios umbigos, Bolsonaro continua despejando merda pela boca e empreendedores de sapatênis colocam Amoêdo como salvação. Nada de novo no front.

Sapatênis, aliás, é uma das coisas mais horrendas inventadas pelo homem desde o Renault Twingo. É a materialização do cara que é conservador, mas quer ser cool. Família tradicional brasileira. Missa de domingo. Camisa da Dudalina por fora da calça jeans da Levi's. Cueca da Calvin Klein. Miami. Duty free. Hambúrguer do Madero. Globo News. Marido, esposa, filhos e amante.

Vamos falar de relacionamentos, então. E aqui serei obrigado a te parafrasear: "a mente está completamente confusa e a realidade cheia de carência". Que frase, hein, mano? Tu és foda. Mas, de fato, Murillo, não está fácil manter a sanidade. Cada vez mais tenho a estranha sensação de que estou vivendo numa realidade alternativa onde sou Theodore, o personagem de Joaquin Phoenix em Her. Sozinho num sábado à noite, luz baixa, Chet Baker (às vezes o Faker), conversando até altas horas com uma tela que preenche o vazio até a manhã seguinte.

E Chet Baker sempre me faz lembrar de ti, mano. Nosso gosto não é parecido apenas para as esquisitinhas; musicalmente a gente também dá match.

Greta Van Fleet é uma ótima trilha para correr. Safari Song está na minha playlist de workout — descobri que a galera fitness chama os exercícios físicos disso aí. Ah, e o nome daquela banda do festival memorável de São Paulo é Picanha de Chernobill. Melhor nome de banda depois de Plutão Já Foi Planeta.

Tame Impala é provavelmente a banda que mais ouvi este ano. O novo deles, The Slow Rush, é sensacional. As letras não poderiam ser mais atuais. Destaque para On Track. Estou ouvindo ela no repeat enquanto te escrevo. E, cara, adoro Terno Rei. Indiquei o álbum Violeta na minha newsletter há duas ou três semanas, o que mostra que tu não lês — pega essa concordância — o que escrevo.

Estou lendo um livro chamado Na Sala dos Roteiristas que me fez entender um pouco melhor a situação atual do cinema. Não se fazem mais Allen’s porque os bons roteiristas de hoje estão na TV e em serviços de streaming escrevendo séries. O próprio Woody Allen lançou uma série (meia boca, é verdade) no Prime da Amazon. E, falando em Prime, assista Beautiful Boy caso não o tenha feito. Drama de 2018 com Steve Carell e Timothée Chalamet que sabe-se lá porquê não recebeu sequer uma indicação ao Oscar.

A saudade que tenho é de viver, Murillo. E como vivivemos bons momentos em São Paulo, não é mesmo? Hoje me vejo preso dentro da minha própria ideia de ser livre. Afinal, o que é ser livre? O que é essa tal de liberdade que tanto buscamos? Ela existe? A própria busca pela liberdade é uma prisão que nos cega. Fiz tantos planos dentro dessa possibilidade infinita de conhecer novos lugares, cores, amores e sabores que minha visão ficou turva e não enxerguei o que estava diante de mim. No sul, como tu sabes. A vida nômade é maravilhosa, mas começo a me questionar se não chegou a hora de criar raízes. Talvez sejam meus quase 31 e essa maldita dor nas costas falando por mim.

Mas, chega de filosofia barata. Deixa eu te contar uma novidade legal. Estamos naquela fase pós-quarentena em que as coisas estão voltando ao normal aos poucos. O tal do novo normal. Algo que estava me irritando profundamente no último mês era que eu estava trancado num apartamento minúsculo em Chiang Mai. Com o retorno dos voos domésticos consegui me mudar de cidade. Agora tô morando numa praia chamada Ao Nang. Como as fronteiras internacionais seguem fechadas e os turistas sumiram da Tailândia, consegui um bom acordo de aluguel. Paguei metade do preço numa casa bem acima do meu padrão –– com piscina e tudo. Já rolou até churrasco vegetariano. Olha a foto aí.

Acredito que algo que tem feito as pessoas surtarem durante a quarentena e terem uma experiência ruim com o trabalho remoto é justamente a falta de um espaço adequado. Quero dizer, mesmo eu, veterano do home office, estava puto da vida lá em Chiang Mai. Agora numa casa bacana, com internet boa, um espaço legal pra trabalhar, piscina, quintal, não tenho mais aquele sentimento de que preciso sair. Tudo bem ficar em casa. Gosto daqui.

Tu sentes isso aí em Londrina? Como está sendo o teu confinamento?

No mais, fico no aguardo da atualização sobre as namoradinha. Espero que tua visão não esteja turva.

Ideia para um novo livro:

Creep: um guia para você passar vergonha em qualquer lugar do mundo.

Nele eu narro minha turnê internacional cantando Radiohead em karaokês decadentes.

Ideia para podcast:

PodRanço.

30 minutos de um monólogo onde despejo ódio gratuito disfarçado de opinião.

Ideia para série de TV:

De quarentena com o ex.

10 episódios, 30 minutos cada, que narram a história de ex-casais passando a quarentena juntos. 1 ex-casal por episódio. 1 terapeuta para todos eles.

Em Her é a voz de Samantha, a personagem virtual interpretada por Scarlett Johansson, que dá cores ao mundo de Theodore. Por aqui também tem sido uma voz a responsável por colorir o meu 2020 filmado em preto e branco com uma 35mm. E ela fala "tu" ao invés de "você". Assim como eu, Murillo.

Um abraço,

Matheus

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Matheus de Souza
Expresso Tailândia-Brasil

Escritor, educador e palestrante. Autor de “Nômade Digital”, livro finalista do Prêmio Jabuti.